INTRODUÇÃO
O carcinoma de células escamosas (CEC) é uma neoplasia cutânea maligna comum que
frequentemente se apresenta como uma lesão endurecida, elevada com graus variados
de
ulceração e crosta. O CEC pode surgir em qualquer local, mas é mais comum em pele
danificada, como nas lesões actínicas de pele, em cicatrizes pós-queimaduras (úlcera
de Marjolin), cicatrizes traumáticas, úlceras de estase, dermatite crônica por
radiação, lesões por lúpus eritematoso, líquen plano na mucosa oral e lesões
infectadas pelo papilomavírus humano (HPV), ceratose seborreica, queratoacantoma e
imunossupressão1.
Esses tipos de lesões apresentam como característica um odor desagradável causado
pela queratina macerada e por tecidos necróticos com infecção bacteriana1.
O CEC é o segundo tumor de pele mais comum ao nível mundial, após o carcinoma
basocelular (CBC).
Ao momento do diagnóstico, a maioria das lesões estão circunscritas à pele, no
entanto algumas podem apresentar metástase regional ou à distância3.
Tumores que surgem em áreas não expostas ao sol e com diâmetro < 2 cm têm risco
limitado de progressão. Pelo contrário, lesões acima de 2 cm diâmetro com espessura
≥ 4 mm com formas pobremente diferenciadas têm pior prognóstico e risco de
metástase3-7. A recomendação geral é o manejo cirúrgico,
mas também existem protocolos de manejo que utilizam radioterapia. Na raça negra,
os
cânceres de pele são, em sua maioria, CECs dos membros inferiores (70-85%).
Pacientes imunossuprimidos por qualquer causa têm maior incidência de CEC, CBC,
sarcoma de Kaposi, e o risco aumenta com a duração de imunossupressão2. Dentro dos cânceres de pele, 20% são CEC e,
destes, 1-2% têm probabilidade de disseminação ganglionar2. O diagnóstico é clínico (tipo de pele, tempo de aparecimento,
antecedentes pessoais e familiares, características das lesões) e por meio de
biópsia2. A radioterapia deve ser
considerada como tratamento nos casos de margens comprometidas, em situações de
carcinomas localizados em áreas de difícil reparação estética ou em pacientes com
limitações ao tratamento cirúrgico2. Nos casos
que for diagnosticado o CEC, é importante a avaliação dos linfonodos regionais, em
especial aqueles com maior risco de disseminação2. O tratamento cirúrgico deve ter margens de segurança de 3-4 mm em
todas as suas margens e, se essas estiverem confirmadas como livres de neoplasia ao
exame anatomopatológico, nenhum tratamento adicional será necessário2.
OBJETIVO
Apresentar um caso clínico de um paciente com lesão tumoral tipo CEC em perna direita
com antecedente de transplante renal, imunossupressão e hepatite C, submetido à
ressecção e reconstrução com emprego de retalho fáscio-cutâneo mais enxerto de pele
total. A cirurgia foi realizada no serviço de cirurgia plástica do Hospital
Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina.
MÉTODO
Relato de caso baseado na revisão do prontuário e registros fotográficos, além de
revisão bibliográfica.
Relato de caso
Paciente masculino, 67 anos de idade, natural de Florianópolis, Santa Catarina,
com antecedente de transplante renal há 31 anos, terapia inmunossupresora com
prednisona e azatioprina, hepatite C tratada com daclatasvir e sofosbuvir
durante 2 anos, apresenta lesão tumoral há 9 meses com crescimento acelerado, de
bordas irregulares, odor fétido, localizada no terço superior da perna direita.
Diâmetro de lesão de 15 cm × 10 cm, com centro ulcerado e necrótico, com
sangramento ocasional (Figura 1). Dor
intensa associada, sem evidência clínica de linfonodos inguinais, pulsos
normais, deambulação normal. Resultado anatomopatológico prévio à cirurgia
reporta carcinoma de células escamosas invasivo, moderadamente diferenciado. O
paciente foi submetido a ressecção total da lesão com margens de segurança de 1
cm e reconstrução com retalho fáscio-cutâneo e enxerto de pele total.
Figura 1 - Características clínicas do CEC na região superior da perna
direita.
Figura 1 - Características clínicas do CEC na região superior da perna
direita.
Técnica cirúrgica
O paciente foi posicionado em decúbito dorsal, submetido à raquianestesia,
antissepsia, assepsia e infiltração local com solução contendo adrenalina e soro
fisiológico em relação 1:500.000. Foi realizada ressecção do CEC com margens de
segurança, ampliação das margens cirúrgicas profundas da ressecção incluindo
músculo e periósteo (Figura 2), e
posteriormente foi feita marcação do retalho com base na descrição do retalho
fáscio-cutâneo (Figura 3).
Figura 2 - Aspecto após ressecção tumoral, com evidente exposição
óssea.
Figura 2 - Aspecto após ressecção tumoral, com evidente exposição
óssea.
Figura 3 - Marcação do retalho fáscio-cutâneo.
Figura 3 - Marcação do retalho fáscio-cutâneo.
Procedeu-se à incisão e à dissecção do retalho fáscio-cutâneo na panturrilha
direita para cobertura do defeito ósseo. Realizou-se cuidadosa hemostasia com
bisturi elétrico e procedeu-se à fixação do retalho com pontos simples com PDS
3-0. Após, captou-se enxerto de pele no abdome inferior, que então recebeu
preparo com aparelho skin graft mesher (Figura 4), e foi fixado à zona receptora com sutura com PDS
3-0 em pontos contínuos. Posteriormente, realizou-se curativo compressivo de
Brown.
Figura 4 - A: Rotação do retalho fáscio-cutâneo; B: Elaboração de enxerto de
pele total no abdome inferior ; C: Fixação do enxerto de pele
fenestrado na área receptora.
Figura 4 - A: Rotação do retalho fáscio-cutâneo; B: Elaboração de enxerto de
pele total no abdome inferior ; C: Fixação do enxerto de pele
fenestrado na área receptora.
No pós-operatório imediato, o paciente apresentou piora da anemia crônica em
função da perda sanguínea no procedimento cirúrgico, manejada com transfusão de
uma unidade de concentrado de hemácias. Paciente recebeu tratamento antibiótico
profilático com cefazolina 1 g e analgesia com dipirona, de forma pré-emptiva, e
morfina, quando necessário. Exames séricos para avaliação da função renal e
eletrólitos não sofreram mudanças significativas.
O procedimento ocorreu sem intercorrências, sem complicações e bem tolerado pelo
paciente durante o pós-operatório. Não foram observados sofrimentos do retalho
nem hematomas; retirou-se o curativo de Brown em 5 dias após cirurgia, com boa
integração do enxerto (Figura 5). O
paciente, durante as duas primeiras semanas de pós-operatório, passou a
deambular com auxílio de muletas. O anatomopatológico evidenciou CEC invasivo
com comprometimento profundo e com margens livres periféricas na mostra.
Figura 5 - A: Curativo de Brown para estabilização do enxerto de pele total;
B: Aspecto no 5º dia pós-operatório; C: Aspecto no 10º dia
pós-operatório.
Figura 5 - A: Curativo de Brown para estabilização do enxerto de pele total;
B: Aspecto no 5º dia pós-operatório; C: Aspecto no 10º dia
pós-operatório.
O paciente mantém acompanhamento no ambulatório de cirurgia plástica sem queixas,
e é orientado a fazer hidratação da pele com AGE (óleo de girassol) três vezes
ao dia e evitar exposição solar. Devido ao resultado anatomopatológico, o
paciente foi encaminhado para radioterapia.
RESULTADO
Após reconstrução, paciente manteve os movimentos oculares e palpebrais, apresentando
leve retração palpebral, mas sem presença de lagoftalmo. O aspecto estético ficou
agradável e o paciente satisfeito com o resultado.
DISCUSSÃO
Os pacientes transplantados necessitam de terapia imunossupressora cronicamente, o
que lhes acarreta uma maior incidência de manifestações oncológicas. Semelhantemente
à população geral, a grande maioria dos tumores são de tipo CEC ou CBC, porém em
risco aumentado em 100 vezes para CEC e 10 vezes para CBC4.
Precursores ou simuladores do CEC são, em particular, induzidos por diferentes
causas, tais como lesões actínicas de pele, em cicatrizes pós-queimaduras (úlcera
de
Marjolin), cicatrizes traumáticas, úlceras de estase, dermatite crônica por
radiação, lesões por lúpus eritematoso, líquen plano na mucosa oral e lesões
infectadas por HPV, ceratose seborreica, queratoacantoma e imunossupressão1.
No CEC, se o exame revelar margens exíguas, deve-se realizar uma ampliação ou
discutir o tratamento complementar com radioterapia, tanto em situações de
carcinomas localizados em áreas de difícil reparação estética como em paciente com
limitações ao tratamento cirúrgico2.
Como conceito geral, os retalhos fáscio-cutâneos são compostos por porções variadas
de pele e seus anexos, além de tecido subcutâneo acompanhado de segmentos da fáscia
muscular adjacente. Seu importante papel na reparação de grades feridas deve-se ao
fato de incorporar tecido profundo e possibilidade de utilização de vasos
fáscio-musculares como pedículos (aumentando a irrigação e vitalidade do retalho),
como, nesse caso, o uso da artéria tibial posterior para nutrição do retalho.
Outra grande vantagem desse tipo de retalho foi a utilização de uma estrutura
vascularizada e extremadamente resistente como é a fáscia muscular, incrementando
segurança e resistência à cobertura de estruturas nobres.
CONCLUSÃO
A técnica proposta pelos autores, por ser de fácil e rápida execução e possuir baixo
risco de complicações intraoperatórias, é uma boa alternativa para esse tipo de caso
de pacientes com exposição óssea após ressecção tumoral em região superior da perna,
além de oferecer resultado estético aceitável e manter margens oncológicas
seguras.
REFERÊNCIAS
1. Rei Ogawa, Tumores não melanocíticos benignos e malignos da pele e
de partes moles, Peter C. Neligan. Principios de Cirurgia plástica. 3 ed, Nova
Iorque: Elsevier. 2017; p. 1903-6.
2. Machado DP, Dunshee I. Neoplasias da Pele, Capítulo 25, Mélega,
Cirurgia Plástica Os Principios e Actualidade. 1 ed. Rio de Janeiro, Guanabara
Koogan; 2011. p. 169-72.
3. Ribero S, Osella Abate S. Squamocellular Carcinoma of the Skin:
Clinicopathological Features Predicting the Involvement of the Surgical Margins
and Review of the Literature. Dermatology. 2016; 232:279-84. PMID: 27028227 DOI:
https://doi.org/10.1159/000444051
4. Mendez BM, Thornton JF. Current Basal and Squamous Cell Skin Cancer
Management. Am Soc Plast Surg. 2018; 142:373.
5. Piérard GE, Piérard-FranChimont C. La Cancérogenèse Dans La Peau De
Patients Transplantés Rénaux. Rev Med Liege. 2017;
72(3):146-50.
6. Maloney F, Comber H, O'Lorcain P, et al. A population based study of
skin cancers in renal transplant recipients. Br J Dermatol. 2006;
154:498-504.
7. Dharnidharka VR, Naik AS, Axelrod D, et al. Clinical and economic
consequences of early cancer after kidney transplantation in contemporary
practice. Transplantation; 2016.
1. Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, SC, Brasil.;
Endereço Autor: Guilherme Luiz Pacher
Schmitz Rua José Joao Martendal, nº 385 - Carvoeira, Florianopolis,
SC, Brasil CEP 88040-420 E-mail:
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