INTRODUÇÃO
Queimaduras elétricas, definidas como lesão tecidual por exposição a correntes
elétricas suprafisiológicas, estão incluídas na entidade de trauma elétrico1. Essa patologia vem aumentando nas últimas
décadas acompanhando o desenvolvimento industrial, o que gerou maior exposição à
corrente elétrica principalmente de alta tensão2,3.
O ambiente de trabalho é o local onde o trauma elétrico ocorre mais frequentemente
na
população adulta em idade ativa, como na bibliografia internacional. No Uruguai,
registrou-se uma média de 92 lesões por ano, com 0,002% das consultas devido a
acidentes de trabalho4,5. Por outro lado, na população pediátrica, o
trauma elétrico domina o nível doméstico4.
Embora seja uma etiologia rara em centros de queimados, representa 0,04% a 5% da
renda em países desenvolvidos e até 27% em países em desenvolvimento6; é uma patologia grave com mortalidade de 5,2%
para lesões de alta voltagem (maior que 1.000 V) e 2,6% para baixa voltagem (menos
de 1.000 volts)7, com sequelas funcionais
graves e um grande número de amputações dos membros8.
A magnitude da lesão é determinada pelo tipo e quantidade de corrente, caminho da
mesma, área e duração do contato, resistência do tecido e voltagem6,9. Diferentemente de outros tipos de queimaduras, em que o total da
superfície corporal queimada (QTTO) é um dos principais fatores prognósticos, os
produzidos pela corrente elétrica são um grande desafio, pois são feridas complexas.
Isso não só afeta a cobertura, como pode apresentar lesões profundas, em músculos,
nervos e ossos, assim como alta taxa de síndrome compartimental; além de dano
miocárdico e arritmias, insuficiência renal secundária a rabdomiólise, resultando
em
alto índice de complicações e lesões complexas6.
Conhecer a epidemiologia do trauma elétrico é fundamental para poder elaborar
políticas de saúde e programas de prevenção em diferentes populações, reduzindo a
incidência dessa patologia2.
OBJETIVO
O objetivo desse trabalho é descrever a epidemiologia de pacientes com queimados
elétricos internados no Centro Nacional de Queimados do Uruguai (CENAQUE), centro
nacional de referência em queimaduras graves.
MÉTODO
Foi realizado um estudo descritivo retrospectivo, incluindo pacientes internados por
queimadura elétrica no Centro Nacional de Queimados do Uruguai (CENAQUE), desde a
fundação do centro até 2018, com um seguimento de 23 anos.
As variáveis demográficas registradas foram: sexo e idade; e clínicas: instituição
de
origem, voltagem (alta ou baixa), localização do incidente (doméstico, trabalho,
manuseio de cabos de alta tensão inoperantes, raio), número de cirurgias, número de
amputações, tempo de permanência e mortalidade, sendo o tempo de seguimento
equivalente ao período de permanência.
A coleta de dados foi realizada a partir do programa de computador do CENAQUE e dos
prontuários clínicos em planilha do Excel, obedecendo aos regulamentos do Comitê de
Ética.
Em análise, foi realizado por meio de estatística descritiva. As variáveis
quantitativas contínuas são apresentadas como “média ± desvio-padrão”, e as
frequências das variáveis qualitativas são apresentadas como frequências absolutas
e
percentuais. Para comparar as proporções das variáveis quantitativas, utilizou-se
o
teste de Student e, para as variáveis qualitativas, o teste do qui-quadrado.
RESULTADOS
No período 1995-2018, 3.490 pacientes queimados foram internados no CENAQUE, dos
quais 185 foram queimados por eletricidade, representando 5,3% da renda. Em relação
aos dados demográficos (Tabela 1), o sexo
masculino representou 92% das queimaduras elétricas, com idade de 15 a 25 anos
(34%), seguido do grupo de 25 a 35 anos (31%). A idade média foi de 32 ± 14,4
anos.
Tabela 1 - Sexo.
|
Sexo |
|
Frequência |
Feminino |
Masculino |
Total |
Frequência absoluta |
15 |
170 |
185 |
Porcentagem |
8% |
92% |
100% |
Com relação ao provedor de saúde a quem os pacientes pertenciam, 69% eram de saúde
pública, seguidos de seguro de saúde para trabalhadores no Uruguai, com 22% (Tabela 1). A maior parte da renda dentro das
queimaduras elétricas foi devida à exposição a corrente de alta voltagem (61%),
dobrando a baixa voltagem. Ao mesmo tempo, o manejo irregular de cabos de alta
voltagem (MCAT) predomina como um mecanismo de lesão com 36% dos casos,
significativamente maior que outras causas (doméstica, laboral, acidentes naturais).
Dentro desse grupo, 47% ocorrem em crianças menores de 25 anos (Tabela 2 e Figura 1).
Tabela 2 - Idade.
Frequências |
15-25 |
25-35 |
35-45 |
45-55 |
55-65 |
Más de 65 |
Total |
Frequência absoluta |
62 |
57 |
27 |
20 |
13 |
6 |
185 |
Porcentagem |
34% |
31% |
15% |
11% |
7% |
3% |
|
Em relação ao tratamento, 50% necessitaram de pelo menos uma cirurgia. De todos os
pacientes com indicação cirúrgica, 71% corresponderam a lesões por alta voltagem
significativamente maiores que os de baixa voltagem (29%) (p <
0,05%). O número médio de cirurgias realizadas foi de 1,6 ± 2,5. Entre as
cirurgias realizadas, foram registrados 31 amputados (17% do total de queimaduras
elétricas), dos quais 29 corresponderam a pacientes internados por alta voltagem
(p < 0,05) (Figura 2).
A permanência hospitalar no CENAQUE foi de um dia em 49% das queimaduras elétricas,
enquanto 26% exigiram quatro ou mais dias. O número médio de dias de hospitalização
foi de 16 ± 22 dias. Finalmente, a mortalidade em queimados elétricos do
CENAQUE foi de 6% do total e, destes, 92% correspondem a pacientes com lesões de
alta voltagem (p < 0,05). (Figura 3)
DISCUSSÃO
O trauma elétrico é uma patologia grave devido ao mecanismo de lesão tecidual,
transformando a energia elétrica em térmica, alterando o potencial de membrana e a
tetania, e direcionando o dano tecidual6. A
porcentagem de amputações observada em nossa série foi de 26% para alta voltagem,
sendo maior que em lesões de baixa voltagem (0,3%)10. Em relação à mortalidade, os valores observados são semelhantes aos
dos centros regionais11,12 e estão relacionados a fatores como idade,
comorbidades, voltagem13.
A extensão de planos de cobertura ferida, medida por meio de SCTQ, em média, foi 5%
para o segundo grau e 1% para o terceiro grau. Ao contrário de queimaduras térmicas,
nesse caso, o SCTQ não é considerado um fator de prognóstico, uma vez que o
mecanismo de dano de tecidos profundos, lesão e a gravidade do paciente são mais
elevados que o esperado para a magnitude do nível da lesão observada na pele13. O grau de lesão é refletido pela
necessidade cirúrgica desses pacientes, sendo estes escarretomia, amputações,
limpezas cirúrgicas e cobertura de áreas queimadas. Um maior número de cirurgias foi
encontrado nos casos devido à alta voltagem, com uma média de 2,5 cirurgias por
paciente. Apesar de representar uma pequena percentagem das receitas para o CENAQUE,
com 5,3%, esses pacientes geram altos custos sociais e socioeconômicos por
exigências médicas cirúrgicas, dias de internação e sequelas de lesões que
incapacitam os pacientes social e ocupacionalmente14,15.
O ambiente de trabalho é o 2º lugar onde ocorre o trauma elétrico, destacando-se que,
internacionalmente, é a 4ª causa de morte por acidentes de trabalho, com alto índice
de incapacidade que determina o abandono ou a realocação das atividades
laborais16. Com isso, destaca-se a
importância na exigência de regulamentação trabalhista, como as já existentes em
nosso país, para a manipulação de corrente elétrica17. Em nosso trabalho, a faixa etária predominante é a idade ativa de
trabalho, sabendo que há uma limitação no estudo dessa variável, visto que apenas
pacientes com mais de 15 anos entram no CENAQUE.
Em nosso estudo, o gerenciamento de cabos de alta tensão fora do ambiente de trabalho
foi a principal causa de renda para o centro – 36%, no qual estão incluídos atos
criminosos, como assalto a cabo para comercialização de cobre e roubo de
eletricidade, situação denunciada em nível estadual18,19. É possível que
exista um registro insuficiente do MCAT, pois às vezes o paciente não relaciona os
detalhes do incidente, porque é um gerenciamento informal de cabos de alta tensão.
Em outros países, o aumento desses casos também está relacionado a tempos de crise
econômica20.
CONCLUSÕES
No Uruguai, os pacientes com queimadura elétrica representam 5% da renda do CENAQUE,
sendo em sua maioria homens em idade ativa, sendo a mortalidade e a porcentagem de
amputações semelhante aos países desenvolvidos. A queimadura elétrica representa um
problema grave em saúde pública. Por isso, é essencial conhecer a sua epidemiologia,
para nos permitir continuar trabalhando nas políticas de prevenção, diminuindo o
MCAT e estabelecendo diretrizes para o pessoal que manipula a corrente, bem como
elaborar diretrizes para o manejo e tratamento dessas lesões.
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1. Cátedra de Cirurgia Plástica, Hospital de
Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade da República.
Endereço Autor: Maximiliano Juri Rua
Lorenzo fernandez, nº 2966 - Jacinto Vera, MVD, Uruguay CEP 11800 E-mail:
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