INTRODUÇÃO
A reconstrução da língua pós-glossectomia total ou parcial permanece uma tarefa
desafiadora para o cirurgião plástico. A língua é uma estrutura complexa essencial
para deglutição, fala e proteção da via aérea. Suas funções são frutos do esforço
coordenado da musculatura intrínseca, extrínseca e inervação motora e sensitiva que
proporcionam mobilidade, sensação e gosto.
Retalhos musculares têm sido utilizados para reconstrução da língua; no entanto, sem
a inervação adequada, ocorre atrofia das fibras musculares e consequentemente
redução significativa do volume do retalho, prejudicando o contato entre a neolíngua
e o palato, que é essencial para uma boa deglutição e proteção das vias aéreas.
Assim sendo, a reconstrução da língua necessita de muito mais que simplesmente
adicionar volume na cavidade oral. Para que o processo de deglutição seja adequado,
é necessário que haja um processo ativo de elevação do osso hioide por meio da
contração da musculatura local.
Na tentativa de obter a melhor reconstrução funcional pós-glossectomia, utilizamos
o
retalho inervado do músculo grácil em seis pacientes submetidos a tratamento
cirúrgico de neoplasia de cavidade oral. O retalho do músculo grácil é um retalho
seguro, com pedículo confiável, baixa morbidade e cicatriz escondida na região da
coxa interna. O retalho muscular é inervado para preservar a massa muscular, de modo
que a contração voluntária eleve a nova língua, mantendo a fala inteligível enquanto
protege a via aérea (contato palatoglosso).
OBJETIVO
Demonstrar a experiência de um centro terciário de tratamento de câncer na
reconstrução de língua com retalho livre e funcional do músculo grácil.
MÉTODO
No período de 2009 a 2018, seis pacientes foram submetidos a reconstrução de língua
com retalho livre e inervado do músculo grácil (Figura 1). A idade dos pacientes variou de 15 a 77 anos. Todos os pacientes
foram submetidos a glossectomia por carcinoma espinocelular de cavidade oral. Cinco
pacientes foram submetidos a glossectomia parcial e somente um paciente a
glossectomia total (Figura 2). Dois pacientes
tiveram um segmento de mandíbula ressecado junto do tumor primário e foram
submetidos a reconstrução com retalho fibular livre, sendo que um deles necessitou
de um terceiro retalho para cobertura cutânea do pescoço (Figuras 3 a 5). Os
pacientes foram avaliados no pós-operatório quanto à capacidade de fala e deglutição
e o acompanhamento variou de 4 meses a 108 meses (Tabela 1).
Figura 1 - Retalho miocutâneo grácil dissecado. No detalhe, o pedículo do
retalho.
Figura 1 - Retalho miocutâneo grácil dissecado. No detalhe, o pedículo do
retalho.
Figura 2 - Defeito de língua parcial.
Figura 2 - Defeito de língua parcial.
Figura 3 - Pelveglossomandibulectomia – peça cirúrgica.
Figura 3 - Pelveglossomandibulectomia – peça cirúrgica.
Figura 4 - Pelveglossomandibulectomia – defeito.
Figura 4 - Pelveglossomandibulectomia – defeito.
Figura 5 - Reconstrução funcional com retalho osteosseptocutâneo fibular
associado a retalho muscular do grácil.
Figura 5 - Reconstrução funcional com retalho osteosseptocutâneo fibular
associado a retalho muscular do grácil.
Tabela 1 - Dados epidemiológicos, tipo de tumor, vasos receptores, nervos
receptores, tipo de defeito e retalho selecionado.
Paciente |
Idade |
Sexo |
Data |
Patologia |
Vaso receptor |
Nervo receptor |
Glossectomia |
Retalhos |
W.A.S. |
15a |
M |
28/01/09 |
Anemia de Fanconi + CEC borda lateral da língua
esquerda
|
Vasos faciais direitos |
Nervo Hipoglosso direito |
Parcial |
Grácil |
T.S.F. |
59a |
M |
07/03/16 |
CEC língua |
Artéria facial esquerda + veia jugular esquerda +
enxerto de veia cefálica
|
Nervo Hipoglosso esquerda |
Parcial |
Grácil |
O.P. |
57a |
M |
08/08/16 |
CEC assoalho de boca |
Vasos tireoidianos superiores direitos |
Nervo Hipoglosso direito |
Parcial |
Grácil + fíbula + peitoral |
D.A. |
77 |
F |
11/12/17 |
CEC de língua |
Vasos faciais esquerdos |
Nervo Hipoglosso esquerdo |
Parcial |
Grácil |
B.H.V. |
34a |
M |
30/06/18 |
CEC de língua |
Vasos faciais direitos |
Nervo Hipoglosso direito |
Total |
Grácil |
R.S.C. |
51 |
M |
11/07/18 |
CEC assoalho de boca |
Vasos faciais esquerdos |
Nervo Hipoglosso direito |
Parcial |
Grácil + fíbula |
Tabela 1 - Dados epidemiológicos, tipo de tumor, vasos receptores, nervos
receptores, tipo de defeito e retalho selecionado.
RESULTADOS
Todos os seis pacientes tiverem sucesso na transferência do retalho do músculo grácil
para o defeito (Figuras 6 a 8). Nenhum paciente apresentou trombose dos vasos
anastomosados ou sofrimento do retalho. Dois pacientes apresentaram sinais
flogísticos na ferida operatória, sendo manejados com antibioticoterapia com
resolução do quadro. Todos os pacientes foram capazes de deglutir e falar no
pós-operatorio sem sinais clínicos ou radiológicos de broncoaspiração.
Figura 6 - Pós-operatório de 3 anos
Figura 6 - Pós-operatório de 3 anos
Figura 7 - Pós-operatório de 2 anos
Figura 7 - Pós-operatório de 2 anos
Figura 8 - Pós-operatório de 9 anos
Figura 8 - Pós-operatório de 9 anos
Dois dos seis pacientes desenvolveram recidiva do tumor e metástase à distância e
morreram em consequência da doença de base.
DISCUSSÃO
A reconstrução de elementos da cavidade oral após câncer de cabeça e pescoço avançou
significantemente nas últimas décadas com o uso de retalhos musculocutâneos,
fasciocutâneos e técnicas de transferência livre de tecidos. No entanto, refinamento
nas técnicas de reconstrução ainda são necessários. A língua é um órgão complexo,
com muitas funções, e sua reconstrução somente posicionando tecido no local do
defeito é insuficiente. Sultan e Coleman1
descreveram uma série de casos utilizando o retalho do músculo peitoral maior para
a
reconstrução da língua. Katsantonis2 utilizou
retalho miocutâneo neurotizado do músculo peitoral maior, porém sem evidências de
reinervação no pós-operatório. Urken e cols3
reconstruíram a língua com retalho do músculo reto abdominal inervado por um
segmento motor do nervo intercostal anastomosado ao nervo hipoglosso. Embora essa
técnica tenha diminuído a atrofia muscular, nenhuma conclusão sobre a contração da
neolíngua foi obtida. Outras opções descritas na literatura são: o uso do retalho
do
músculo grande dorsal, tensor da fáscia lata e anterolateral da coxa inervado para
reconstrução pós-glossectomia. No entanto, em nenhum caso o estudo eletromiografico
foi realizado4-6.
O retalho do músculo grácil tem se tornado a opção de escolha para reconstruções
funcionais com tecidos livres. Ele é usado amplamente para reanimação da face nos
casos de paralisia facial, no membro superior para tratamento de isquemia de Volkman
e também em casos de reconstrução pós-trauma. Seu nervo motor, ramo anterior do
nervo obturatório, é confiável e tem demonstrado excelente recuperação funcional
após a transferência.
Na série descrita utilizamos o retalho funcional livre do músculo grácil em seis
pacientes com bons resultados quanto a deglutição e fala. Quando comparados com a
literatura, a maneira com que posicionamos o retalho no defeito difere de alguns
autores7,8. Posicionamos o retalho longitudinalmente no defeito, entre a
região anterior da mandíbula e o osso hioide, formando uma alça, e a porção distal
do músculo grácil é dobrada para recriar a ponta da língua e o assoalho da boca. A
sutura do retalho ao osso hioide garante a elevação da laringe durante o processo
de
deglutição. O uso de toda a extensão do músculo grácil proporcionou volume
suficiente para a neolíngua tanto nos casos de reconstrução parcial quanto no caso
de reconstrução total da língua.
Em dois casos utilizamos mais um retalho para reconstruir o defeito devido a
ressecção de segmento anterior da mandíbula e pele externa junto da língua e do
assoalho da boca. Nesses casos o retalho do músculo grácil foi fixado no corpo da
mandíbula remanescente bilateralmente, bem como no osso hioide inferiormente. O
segmento de mandíbula ressecado foi reconstruído com retalho osteosseptocutâneo da
fíbula com bom resultado estético e funcional no pós-operatório.
CONCLUSÃO
A reconstrução da língua pós-glossectomia parcial ou total com retalho livre e
funcional do músculo grácil é uma opção segura, com bons resultados em longo prazo
e
baixa morbidade para área doadora.
REFERÊNCIAS
1. Sultan MR, Coleman JJ. Oncologic and functional considerations of
total glossectomy. Am J Surg. 1989; 158:297. DOI: https://doi.org/10.1016/0002-9610(89)90119-0
2. Katsantonis GP. Neurotization of pectoralis major myocutaneous flap
by the hypoglossal nerve in the tongue reconstruction: Clinical and experimental
observations. Laryngoscope. 1988; 98:1313. PMID: 2974113
3. Urken ML, Turk JB, Weinberg H, Vickery C, Biller HF. The rectus
abdominis free flap in head and neck reconstruction. Arch Otolaryngol Head Neck
Surg. 1991; 117:857. DOI: https://doi.org/10.1001/archotol.1991.01870200051007
4. Haughey BH. Tongue reconstruction: concepts and practice.
Laryngoscope. 1993; 103:1132. PMID: 8412450 DOI: https://doi.org/10.1288/00005537-199310000-00010
5. Cheng N, Shou B, Zheng M, Huang A. Microvascular transfer of the
tensor fasciae latae musculocutaneous flap for reconstruction of the tongue. Ann
Plast Surg. 1994; 33:136. DOI: https://doi.org/10.1097/00000637-199408000-00003
6. Yu P. Reinnervated anterolateral thigh flap for tongue
reconstruction. Head Neck. 2004; 26:1038-44. DOI: https://doi.org/10.1002/hed.20106
7. Yousif NJ, Matloub HS, Kolachalam R, Grunert BK, Sanger JR. The
transverse gracilis musculocutaneous flap. Ann Plast Surg. 1992; 29:482. DOI:
https://doi.org/10.1097/00000637-199212000-00002
8. Yoleri L, Mavioglu H. Total tongue reconstruction with the free
functional gracilis muscle transplantation: a technical note and review of the
literature. Ann Plast Surg. 2000; 45:181-6. DOI: https://doi.org/10.1097/00000637-200045020-00016
1. Hospital Erasto Gaertner, Curitiba, PR,
Brasil.
2. Universidade Positivo, Curitiba, PR,
Brasil.
3. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR,
Brasil.
4. Faculdade Evangélica do Paraná, Curitiba, PR,
Brasil.
Endereço Autor: André Luiz Bilieri Pazio Rua Moyses
Marcondes, nº 213 - Juveve, Curitiba, PR, Brasil CEP 80030-410 E-mail:
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