INTRODUÇÃO
A esclerose sistêmica é uma doença rara, autoimune com evolução progressiva, que
afeta os tecidos conectivos e órgão internos por inflamação, fibrose ou
vasculopatias1. É mais comum em mulheres
(4:1) com início de doença entre os 30-50 anos1. Calcinose subcutânea é um achado frequente na esclerose sistêmica,
mas seu espectro é reportado como anedotal nos relatos2.
Quando presente, a calcinose pode evoluir para quadros dolorosos e incapacitantes,
podendo tornar-se infectados, principalmente quando ulceram pela pele, evolução esta
que aproxima a afecção da cirurgia como forma de tratamento3. Até hoje, a calcinose relacionada à esclerose sistêmica
recebeu pouca atenção entre as pesquisas, incluindo patogênese e doenças
associadas3. Enquanto existem relatos de
tratamentos cirúrgicos de calcinoses em subcutâneos de mãos e dedos, pouca
literatura é encontrada sobre outras áreas, como no caso deste relato de calcinoses
presentes em região inguinal4.
RELATO DE CASO
Paciente feminina 53 anos, encaminhada e tratada pelo serviço de reumatologia do
Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (HU/UFSC), em
Florianópolis, SC, com o diagnóstico de esclerose sistêmica há 20 anos, sendo
portadora de calcinoses em região inguinal bilateral sugestivas de calcinose
distrófica.
Solicitado procedimento cirúrgico para retirada das calcinoses por quadro álgico
moderado/grave contínuo sem fator desencadeante e sem fator de alívio, possuindo
risco de ulceração e infecção das mesmas por caráter progressivo da doença
local.
Tentativa de tratamento clínico medicamento sem sucesso para remissão ou cessão da
evolução das calcinoses. Em uso de azatioprina e prednisona para estabilização da
doença de base. Nega cirurgias prévias. Ao exame físico, apresenta em região
inguinal e flancos bilateral cordão endurecido, aderido, presente em tecido
subcutâneo com confluências compatível com calcinose, com desconforto ao
deslocamento passivo leve. Sem sinais de infecção ou ulceração local. Acometendo
região de 20 por 5cm (Figura 1).
Ultrassonografia da região inguinal apresentou: focos lineares e irregulares
hiperecogênicos projetados no tecido subcutâneo em porções inferiores da parede
abdominal lateral, sendo as maiores com 36mm de extensão, compatíveis com
calcificação.
Figura 1 - Raio X antero-posterior e obliquo de regição inguinal apresentando
calcinoses em subcutâneo em região inguinal direta, flancos e
perianal.
Figura 1 - Raio X antero-posterior e obliquo de regição inguinal apresentando
calcinoses em subcutâneo em região inguinal direta, flancos e
perianal.
Frente ao quadro progressivo da doença local, com falha na tentativa de tratamento
clínico medicamentoso e importante algia da paciente, foi indicada ressecção
cirúrgica.
Realizada marcação da região inguinal contemplando toda a área acometida auxiliada
pela palpação no exame físico e exame de imagem (aproximadamente 15x4cm de extensão
marcação cutânea). Anestesia local com 50ml de solução contendo lidocaína 2% 20ml,
adrenalina 1:120.000 e soro fisiológico 100ml. Realizada ressecção cutânea e
subcutânea, retirando as calcinoses, que formavam cordões de calcinose, algumas com
aderências à fáscia do músculo oblíquo externo, sem necessidade de resseção da
fáscia ou músculo oblíquo externo.
Retirada peça em monobloco contendo tecido cutâneo e subcutâneo associados às
calcinoses. Realizado fechamento primário, após hemostasia, com nylon 2.0 pontos
simples subdérmicos e ponto intradérmico contínuo nylon 3.0 para fechamento estético
e menor reação inflamatória (Figura 2).
Figura 2 - Em sentindo anti horário. A: Marcação pré opeatória
(15x4cm) da região inguinal; B: Realizada ressecção das
calcinoses em monobloco de pele e subcutâneo, mantida fáscia do músculo
obliquo externo; C: Fechamento por planos com pontos
intradermicos.
Figura 2 - Em sentindo anti horário. A: Marcação pré opeatória
(15x4cm) da região inguinal; B: Realizada ressecção das
calcinoses em monobloco de pele e subcutâneo, mantida fáscia do músculo
obliquo externo; C: Fechamento por planos com pontos
intradermicos.
Curativo local com neomicina e leve compressão cutânea realizando trocas pós-banho
diário. Paciente seguiu acompanhamento pós-operatório retirando ponto intradérmico
no 12o dia. Neste momento paciente já apresentava cessão das dores diárias locais
causadas pela calcinose, realizada análise subjetiva da algia da mesma (pré e
pós-operatória).
No 2º mês de pós-operatório evoluiu com extrusão de um ponto subdérmico sem
necessidade de reabordagem, ferida operatória sem outras intercorrências ou
complicações.
Fotos demostram resultado estético favorável no 90o dia do pós-operatório (Figura 3). A avaliação histológica comprovou
serem calcificações sem nenhum grau de malignidade (Figura 4). A paciente encontra-se em acompanhamento pelo Serviço de
Cirurgia Plástica do HU/UFSC sem apresentar novas calcificações em área cirúrgica
e
não tendo apresentado cicatriz atrófica durante a evolução.
Figura 3 - A e B: Imagens de região inguinal pré
operatório (anterior e perfil); C e D: Imagens
de pós operatório de 3 meses de evolução, apresentando cicatrização
tópica e trófica. Apresenta local de extrusão de ponto subdérmico em
evolução de cicatriz em segunda intenção
Figura 3 - A e B: Imagens de região inguinal pré
operatório (anterior e perfil); C e D: Imagens
de pós operatório de 3 meses de evolução, apresentando cicatrização
tópica e trófica. Apresenta local de extrusão de ponto subdérmico em
evolução de cicatriz em segunda intenção
Figura 4 - Calcificação presente em Hipoderme. HE, 100x
Figura 4 - Calcificação presente em Hipoderme. HE, 100x
DISCUSSÃO
A esclerose sistêmica é uma doença incapacitante, que envolve a participação de
médicos nas diversas áreas da medicina, porquanto atinge indistintamente todos os
sistemas do corpo. Basicamente, é o reumatologista que realiza o acompanhamento
clínico, por tratar-se de uma desordem do tecido conjuntivo, todavia, há momentos
que é inquestionável a colaboração de outras especialidades5.
A calcificação dos tecidos moles é geralmente categorizada em 4 tipos: calcificação
distrófica, calcificação metastática, calcificação idiopática e calcifilaxis. Na
calcificação distrófica os níveis de cálcio sérico e fosfato são normais; esta é
comumente relacionada com doenças de tecido conectivo/conjuntivo como dermatomiose
e
esclerodermia5.
A calcinose causada pela esclerose sistêmica é uma afecção na qual o último ato na
escada de tratamento é a ressecção cirúrgica, devido à dúvida de evolução do trauma
cirúrgico frente à doença de base. O tratamento medicamentoso, ainda não
padronizado, busca conter a evolução da calcinose em tamanho e ulceração cutânea.
A
intervenção medicamentosa tem mostrado resultados mistos em sua eficácia e seus
resultados variam de acordo com os estudos.
Os bloqueadores dos canais de cálcio têm demonstrado possuir a maior eficácia em
comparação com qualquer outra intervenção medicamentosa, pois promovem uma
diminuição no influxo de cálcio na célula, diminuindo, assim, a formação de cristais
intracelulares. Foi relatado que a colchicina não tem efeito sobre a própria lesão
de calcinose, mas sim na diminuição da inflamação secundária6-9.
Alguns pacientes, como no caso relatado, apresentam algia moderada a grave devido
ao
acometimento de feixes da inervação sensitiva cutânea, acelerando a busca por
tratamentos cirúrgicos. No entanto, escassa é a literatura cirúrgica frente ao
quadro de calcinose em paciente com doença do tecido conjuntivo, principalmente em
região inguinal, topografia incomum de acometimento, vide tropismo por extremidades
e zonas articulares6,7.
Mesmo que exista um risco de recorrência da dor e calcificação adicional pelo trauma
cirúrgico, é favorável tratar a calcinose antes que a mesma progrida, levando a uma
ulceração e infecção local7.
O presente relato de caso serve como referência para futuros trabalhos. O melhor
tratamento da calcinoses ainda não é claro, não existindo tratamento totalmente
efetivo, sendo realizada tentativa clínica medicamentosa de parar ou cessar
progressão da doença e em última opção tratamento cirúrgico, devido à dúvida da
evolução do trauma cirúrgico2.
Consequentemente, o tratamento das complicações se torna essencial para reduzir a
morbidade e aumentar a qualidade de vida do paciente. Vale citar que frente a uma
afecção de evolução imprecisa pós-cirúrgica a relação médico-paciente deve chefiar
conduta para evitar futuro descontentamento.
COLABORAÇÕES
CPG
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Concepção e desenho do estudo, gerenciamento do projeto, metodologia,
redação - preparação do original.
|
NBR
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Coleta de dados, redação - preparação do original.
|
CMM
|
Coleta de dados, redação - preparação do original.
|
FCNG
|
Coleta de dados.
|
JBE
|
Conceitualização, redação - revisão e edição, supervisão.
|
REFERÊNCIAS
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A, et al. A case of a generalized symptomatic calcinosis in systemic sclerosis.
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2. Vayssairat M, Hidouche D, Abdoucheli-Baudot N, Gaitz JP. Clinical
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9709184 DOI: http://dx.doi.org/10.1136/ard.57.4.252
3. Mahmood M, Wilkinson J, Manning J, Herrick AL. History of surgical
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calcinosis in patients with systemic sclerosis. Scand J Rheumatol.
2016;45(2):114-7. DOI: http://dx.doi.org/10.3109/03009742.2015.1086432
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http://dx.doi.org/10.1016/j.bjps.2013.06.035
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2009;145(2):212-3. PMID: 19221282 DOI: http://dx.doi.org/10.1001/archderm.145.2.212-b
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1. Hospital Universitário, Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
Autor correspondente: Caio Pundek
Garcia Madre Benvenuta, nº 322 - Trindade, Florianópolis, SC, Brasil
CEP 88036-595 E-mail: caio_pgarcia@hotmail.com /
caio@polski.com.br
Artigo submetido: 23/3/2018.
Artigo aceito: 11/11/2018.
Conflitos de interesse: não há.