INTRODUÇÃO
O trajeto dos tendões flexores é dividido em cinco zonas, conforme proposto por
Verdan. A zona I se estende imediatamente após a inserção do flexor superficial
(FSD), até a inserção do flexor profundo, incluindo as polias C3 e A51. As lesões na zona I afetam somente o tendão
flexor profundo do dedo (FPD), sendo relativamente comuns e prevalentes em jovens
e
atletas. O mecanismo de trauma geralmente é devido a lacerações ou avulsões
fechadas, ocorrendo com maior frequência no quarto e quinto dedos da mão1,2.
A zona II é compreendida pela região entre a polia A1 e o início da zona I. Nela se
localizam o túnel osteofibroso e o quiasma de Camper, sendo conhecida como Bunnell’s
“no man’s land”, devido ao elevado risco de complicações após
lesões tendinosas, como aderências e re-rupturas1.
O objetivo deste trabalho é descrever o caso raro de paciente que sofreu avulsão
traumática do tendão flexor superficial e profundo do 5º dedo, nas zonas 1 e 2
de
Verdan, respectivamente, e foi tratado cirurgicamente pela técnica de
Pull-Out, descrita por Bunnell3.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 25 anos, procurou a emergência com relato de trauma no
5º
dedo da mão esquerda, durante partida de futebol, ao tentar segurar a camisa de
outro jogador, do dia anterior. Ao exame físico, apresentava dor na região palmar,
edema e incapacidade de fletir as articulações interfalangianas proximal e distal
do
quinto quirodáctilo, sem alterações do status neurovascular.
Foram realizadas radiografias de urgência que confirmaram a integridade óssea. A
ecografia do dedo evidenciava ruptura total dos tendões flexores superficial e
profundo do 5º dedo com retração tendínea (Figura 1).
Figura 1 - Imagens ecográficas da ruptura total dos tendões flexores do 5º
dedo.
Figura 1 - Imagens ecográficas da ruptura total dos tendões flexores do 5º
dedo.
A cirurgia foi realizada com paciente sob sedação, com bloqueio dos nervos do plexo
braquial e isquemia do membro superior esquerdo. Foi realizado acesso palmar em
“Z”
de “Brunner” no 5º dedo e observada desinserção completa dos tendões flexores
superficial e profundo (Figura 2). Após reparo
dos cotos tendíneos com sutura tipo Krackow com Nylon 4-0, foram confeccionados
túneis ósseos nas falanges média e distal com fio K 1.0mm.
Figura 2 - Ruptura completa e simultânea dos tendões flexores do 5º
dedo.
Figura 2 - Ruptura completa e simultânea dos tendões flexores do 5º
dedo.
Com auxílio de uma agulha hipodérmica n° 40 x 12 foram atravessados os fios de reparo
dos cotos tendíneos para a região dorsal das falanges, os quais foram fixados
às
suas respectivas regiões de inserção pela técnica de Pull Out com
auxílio de “botões” confeccionados com a base de uma seringa de 10 ml (Figura 3). Por fim, foi realizado o reparo das
polias A3 e A5. Após sutura, foi realizado curativo e imobilização com tala dorsal
com 10º de extensão do punho e flexão de 90º das articulações metacarpofalangianas
(Figura 4).
Figura 3 - Botões confeccionados com seringa e agulha hipodérmica.
Figura 3 - Botões confeccionados com seringa e agulha hipodérmica.
Figura 4 - Resultado intra-operatório após a reinserção dos tendões pela técnica
de Pull-Out.
Figura 4 - Resultado intra-operatório após a reinserção dos tendões pela técnica
de Pull-Out.
Foi instituído o protocolo descrito por Duran e mantivemos a imobilização dorsal por
seis semanas, com troca a cada 15 dias e extensão progressiva da tala. Na 6ª semana
foi retirada a imobilização e iniciada fisioterapia com terapeuta da mão.
Após 12 meses da cirurgia, o paciente se encontrava assintomático, cicatrizes com
bom
aspecto e sem aderências tendíneas. A sensibilidade permanecia sem alterações
e o
arco de movimento das articulações do dedo eram articulação interfalangiana proximal
(AIFP) 10-90º, articulação interfalangiana distal (AIFD) 10-85º, articulação
metacarpofalangiana (AMF) 0-90º (Figura 5).
Este resultado é considerado bom pela escala da Sociedade Americana de Cirurgia
da
Mão (ADM > 75%) e excelente pela escala ajustada de Strickland4.
Figura 5 - Avaliação clínica pós-operatória.
Figura 5 - Avaliação clínica pós-operatória.
DISCUSSÃO
A lesão por avulsão do tendão flexor profundo de sua inserção na base da falange
distal do dedo é comum, principalmente em atletas e homens, com prevalência no
dedo
anular de 75% dessas lesões5. Já as injúrias
no tendão flexor superficial dos dedos são incomuns, mais frequentemente afetando
o
dedo anelar ou médio5. A lesão fechada de
ambos os tendões é rara, tendo sido descritos somente nove casos na literatura
desde
19846.
Desses casos, todos os pacientes eram homens, com idades variando entre 16-49 anos
(média de 26,9 anos). Em sete casos, houve o acometimento de um dedo (anular em
quatros casos, dedo médio um caso, dedo mínimo em dois), um caso com dois dedos
afetados (anular e mínimo) e um caso envolvendo três dedos (indicador, médio e
anular)6. Em nosso caso, concordando com a
pequena epidemiologia disponível na literatura mundial, o paciente era do sexo
masculino, jovem (25 anos) e somente o dedo mínimo foi acometido.
Com relação ao mecanismo de trauma, o mais comum, ocorrido em três dos nove pacientes
com a lesão de ambos os tendões, foi o Jersey finger (termo criado
para designar a lesão fechada do tendão flexor profundo de sua inserção na falange
distal do dedo, por ser comum entre jogadores de futebol americano e rúgbi ao
tentar
segurar a camisa ou jersey do adversário)6, assim como relatou nosso paciente, durante uma partida de
futebol.
O trauma direto ocorreu em um caso, assim como o microtrauma repetitivo. Tração
hiperextensão foi responsável por dois casos. Em todos os casos, exceto um, a
lesão
do FSD ocorreu na zona 26. No trabalho de Soro
et al.6 a ruptura ocorreu na zona 3. Já em
relação ao FPD, em dois casos o tendão foi acometido na zona 2, no restante, ocorreu
na zona 1.
As radiografias do dedo acometido devem ser sempre solicitadas para avaliar a
presença de fraturas nas falanges. Exames de imagem como ecografia e ressonância
magnética (RM) auxiliam no diagnóstico do local onde o tendão foi lesado,
facilitando a abordagem cirúrgica e evitando a exploração para localizar o coto
do
tendão rompido1,2,5.
No presente caso, as radiografias do dedo mínimo descartaram fraturas e a ecografia
realizada nos auxiliou no diagnóstico da ruptura simultânea dos tendões, e ainda
permitiu o planejamento adequado da operação. Dos relatos anteriores, somente
Toussaint et al.7 utilizaram a ecografia
pré-operatória como ferramenta para o diagnóstico, facilitando o procedimento
cirúrgico realizado.
Foram descritas na literatura diversas técnicas para o reparo dos tendões flexores,
todavia, sem um consenso sobre a melhor forma de reinserção do tendão. Alguns
estudos relataram que a técnica de Pull Out está associada a um
grande número de complicações. Kang et al.8
relataram uma taxa de infecção de 22%, e crescimento anormal da unha em 35% dos
pacientes.
De fato, a presença do botão pode dificultar a higiene e prender nas roupas, pode
provocar dor e necrose na pele pela pressão e lesão do leito ungueal se fixado
muito
proximalmente na reinserção do FPD. Em nosso caso, operado após dois dias da lesão,
a técnica foi realizada conforme a descrição de Bunnell3 em ambos os tendões flexores do 5º dedo, e o paciente evoluiu
sem complicações até a retirada dos botões.
Dos casos descritos com a lesão simultânea, a reconstrução com
Pull-Out foi realizada em cinco dos seis casos operados
agudamente, contudo, em dois casos o FSD foi ressecado. Em um caso agudo foi
realizado o reparo em dois estágios, com excisão dos tendões no primeiro tempo
e a
utilização do enxerto do palmar longo como enxerto para reconstrução após nove
semanas.
Todos os pacientes tratados agudamente, a cirurgia foi realizada entre 0-4 dias. Em
dois casos, a reconstrução foi realizada subaguda, com a cirurgia ocorrendo com
14 e
20 dias após a lesão. No primeiro, foi feito o reparo termino-terminal do FPD
e
ressecção do FSD, e no outro, o reparo em dois tempos com o enxerto do palmar
longo.
No único caso tratado cronicamente, já com quatro semanas da lesão, foi utilizado
enxerto do palmar longo para reconstrução6.
Em sete dos nove casos descritos, os autores afirmaram que seus pacientes retornaram
ao trabalho, com boa função dos dedos lesionados, mesmo nas reconstruções tendíneas
tardias, em dois estágios. Em oito casos, os autores citaram alguma rigidez ou
limitação da mobilidade da articulação interfalangiana distal, sem comprometimento
significativo da função do dedo.
O resultado foi descrito como bom ou excelente em cinco dos casos. Em quatro casos
os
autores acreditam que o resultado final não foi bom devido a lesão do FPD ter
ocorrido na zona 2 ou devido à dilaceração na zona 16. Nosso paciente, apesar da perda parcial da flexão da AIFD, evoluiu
com retorno completo às suas atividades militares, sem limitações.
As diversas técnicas cirúrgicas empregadas nos casos previamente descritos não
permitem um consenso para o tratamento da lesão. Acreditamos que a reconstrução
mais
anatômica possível, com o reparo dos dois tendões lesados, permite um melhor
resultado funcional. Concordando com nossa opinião, em três dos casos publicados
foi
realizada a reinserção do FSD e FPD com ótimos resultados funcionais e com mínima
perda de movimentos6.
Avaliando os três casos em que o FSD foi ressecado, nossa opção de tratamento se
ratifica. Um deles evoluiu com rigidez da articulação interfalangiana distal (AIFD)
e flexão residual da interfalangiana proximal (AIFP); outro permaneceu com limitação
do arco de movimento em todas as articulações do dedo operado (AMF, AIFP e AIFD);
e
o terceiro caso, que teve dois dedos lesados, evoluiu com limitação de movimentos
e
flexão residual nas AIF dos dois dedos (IFD 15º, IFP 10º dedo anular e IFD 10º
e IFP
40º dedo mínimo)6. Assim, defendemos que o
tratamento com poucos dias da lesão, ausência de fraturas, técnica de Pull
Out e programa fisioterápico coadjuvante favoreceram o resultado, mesmo
na zona 2.
A lesão do tendão flexor profundo do dedo foi primeiramente classificada por Leddy
e
Packer em três tipos baseada no nível de retração do coto proximal, na presença
e no
tamanho de fragmento ósseo avulsionado9.
Posteriormente, novos subtipos foram adicionados a classificação original (tipos
4,
5A, 5B e 5C). Recentemente, Azeem et al.10
criaram uma nova classificação (Quadro 1)
mais abrangente, para facilitar o entendimento do padrão da lesão e, assim,
proporcionar o tratamento mais adequado para um melhor desfecho.
Quadro 1 - Classificação de Azeem
10.
Tipo I |
Avulsão isolada do tendão FPD, sem fratura da falange
distal
|
Tipo Ia |
Avulsão do tendão e retração até o nível da AIFP |
Tipo Ib |
Avulsão do tendão com um mínimo fragmento ósseo que
previne a retração do tendão até a palma da mão
|
Tipo Ic |
Avulsão do tendão e retração até a palma da mão |
Tipos II e III |
Avulsão associada a fratura da falange distal |
Tipo IIa |
Tendão avulsionado aderido a um fragmento ósseo único
da falange distal, extra- articular
|
Tipo IIb |
Tendão avulsionado aderido a um fragmento ósseo único
da falange distal, intra- articular
|
Tipo IIc |
Tendão avulsionado está aderido a um fragmento ósseo da
falange distal, intra ou extra-articular, com fratura da cortical
dorsal
|
Tipo III |
Similar ao tipo II, mas com retração secundária do
tendão do fragmento ósseo avulsionado, estando ou não aderido a
outro fragmento ósseo
|
Tipo IIIa |
Tendão encarcerado na polia A4 |
Tipo IIIb |
Tendão retraído até a palma da mão |
Tipo IIIc |
Fratura da falange distal envolvimento articular |
Tipo IIId |
Fratura da falange distal com acometimento da cortical
dorsal
|
Quadro 1 - Classificação de Azeem
10.
Esses autores defendem que sua classificação é mais compreensiva e inclui todas os
padrões de lesão dos tendões flexores. Todavia, a lesão descrita em nosso caso,
com
a avulsão do FPD associada ao FSD não está presente na classificação de Azeem10. Acreditamos que a lesão combinada dos
flexores poderia ser incluída como um novo subtipo dessa classificação.
CONCLUSÃO
A avulsão por trauma fechado, simultânea, dos tendões flexores superficial e profundo
dos dedos é uma lesão rara, tendo sido descritos somente nove casos na literatura
mundial. Apesar dos bons resultados apresentados previamente, as diferentes técnicas
empregadas por cada autor não permitem definir a melhor forma de tratar essa lesão.
Neste relato de caso, a técnica de Pull-Out, originalmente descrita
por Bunnell, associada a protocolo específico, proporcionou a fixação adequada
de
ambos os tendões, com baixo custo, e um ótimo resultado funcional.
COLABORAÇÕES
HM
|
Análise e/ou interpretação dos dados; coleta de dados; concepção e
desenho do estudo; gerenciamento do projeto; investigação; metodologia;
realização das operações e/ ou experimentos; redação - preparação do
original; redação - revisão e edição.
|
CG
|
Aprovação final do manuscrito.
|
IC
|
Aprovação final do manuscrito.
|
JLD
|
Aprovação final do manuscrito.
|
REFERÊNCIAS
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13th ed. Philadelphia: Elsevier/Mosby; 2016.
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3. Hospital Naval Marcílio Dias, Ortopedia, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
4. Instituto Nacional de Traumatologia e
Ortopedia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Autor correspondente: Henrique Mansur, Área Militar do Aeroporto
Internacional de Brasília - Lago Sul - Brasília, DF, Brasil, CEP 71607-900.
E-mail: henrimansur@globo.com
Artigo submetido: 3/4/2018.
Artigo aceito: 1/10/2018.
Conflitos de interesse: não há.