INTRODUÇÃO
O pioderma gangrenoso (PG) é uma dermatose neutrofílica inflamatória, de etiologia
desconhecida, que acomete principalmente adultos entre 20 e 50 anos. Foi descrito
em
1930 por Brusting et al.1. O PG é idiopático
em 25-50% dos casos. Em aproximadamente 50% dos casos tem sido descrita a associação
com doenças sistêmicas, tais como: doença de Crohn, gamopatias monoclonais, artrites
soropositivas, colagenoses, doença de Behcet, granulomatose de Wegener, doenças
mieloproliferativas e infecciosas, principalmente hepatites e AIDS1-4.
Alguns pacientes com PG apresentam alteração da imunidade celular e humoral, com
aumento da expressão de interleucinas (IL), em especial IL-8 e fator de necrose
tumoral (TNF-α). Clinicamente, apresenta quatro variantes:
ulcerada, bolhosa, vegetante e pustulosa. A forma mais frequente é a ulcerativa, que
se inicia com pápula ou nódulo e evolui rapidamente para lesões ulceradas e
dolorosas4,5.
Em até 25% dos casos de PG, o surgimento de novas lesões pode ser desencadeado por
traumas, tais como picadas de insetos, injeções intravenosas e biópsia - fenômeno
conhecido por patergia6.
Nesse trabalho, é apresentado um caso de PG extenso das mamas em pós-operatório de
mamoplastia redutora, de difícil diagnóstico, e ótima resposta ao tratamento com
corticoterapia (corticoterapia intra e perilesionais com triancinolona no ato do
desbridamento, e introdução de corticoterapia (prednisona) via oral em esquema
escalonado de desmame.
MÉTODOS
O caso apresentado trata de uma mulher de 56 anos de idade submetida à mamoplastia
redutora em outro serviço, por motivo estético. Evoluiu com aparecimento de
vesículas ao redor das cicatrizes operatórias, que evoluíram para rompimento e
posterior surgimento de áreas hiperêmicas com ulceração. As feridas então
progrediram para áreas de necrose com exposição de tecido mamário e secreção
purulenta. Tal acometimento percorria a ferida operatória bilateralmente e progredia
para além das margens da ferida operatória bilateralmente.
A paciente foi tratada com antibioticoterapia via oral pelo médico assistente à
época. Após três meses de tratamento com antibióticos (diversos esquemas), sem
resultados satisfatórios e com piora global do quadro, a paciente procura nosso
serviço (Figuras 1A e 1B).
Figura 1 - A: Início do caso - Três meses pós-operatório de
mamoplastia redutora com piora progressiva e múltiplos esquemas
antibióticos. Notar aspecto das bordas da incisão e padrão exuberante da
forma ulcerativa do PG; B: Início do caso - Aspecto em
detalhe ampliado da mama direita no início do caso. Três meses após
mamoplastia redutora e múltiplos esquemas antibióticos.
Figura 1 - A: Início do caso - Três meses pós-operatório de
mamoplastia redutora com piora progressiva e múltiplos esquemas
antibióticos. Notar aspecto das bordas da incisão e padrão exuberante da
forma ulcerativa do PG; B: Início do caso - Aspecto em
detalhe ampliado da mama direita no início do caso. Três meses após
mamoplastia redutora e múltiplos esquemas antibióticos.
Para o diagnóstico, foi proposto inicialmente um desbridamento em ambiente hospitalar
com coleta de múltiplos fragmentos das mamas, após discussão multidisciplinar que
envolveu dermatologista e infectologista. Foram coletados 12 fragmentos de tecidos
no total: seis fragmentos da mama esquerda e seis da direita. Destes seis
fragmentos, dividimos em quatro fragmentos enviados para cultura e antibiograma e
dois fragmentos enviados para análise anatomopatológica.
Ao término do desbridamento e coleta dos materiais para estudo, foi feita
empiricamente injeção peri e intralesional de triancinolona (20mg/ml) 5ml, diluídos
em 20ml de SF0,9% totalizando uma solução de 25ml e divididos entre múltiplas
aplicações nas duas mamas. Imediatamente após o desbridamento, por orientação da
Infectologia, iniciou-se tratamento antibiótico por via oral em esquema empírico até
que as culturas e análises de patologia nos guiassem (Figura 2).
Figura 2 - Peças anatômicas - Doze peças anatômicas coletadas: seis peças da
mama direita e seis da esquerda. Quatro amostras enviadas para culturas
e antibiograma. Duas amostras enviadas para análise
anatomopatológica.
Figura 2 - Peças anatômicas - Doze peças anatômicas coletadas: seis peças da
mama direita e seis da esquerda. Quatro amostras enviadas para culturas
e antibiograma. Duas amostras enviadas para análise
anatomopatológica.
Não foi realizado fechamento por sutura. Apenas suturas de contenção nas margens da
cavidade (Figura 3). O desbridamento também foi
limitado aos tecidos desvitalizados, evitando-se ao máximo um dano tecidual
maior.
Figura 3 - Desbridamento, coleta de peças para estudo e infiltração peri e
intralesional de triancinolona. Na suspeita de PG previamente ao ato do
desbridamento, já foi programada a infiltração de triancinolona peri e
intralesional. Notar suturas apenas de contenção.
Figura 3 - Desbridamento, coleta de peças para estudo e infiltração peri e
intralesional de triancinolona. Na suspeita de PG previamente ao ato do
desbridamento, já foi programada a infiltração de triancinolona peri e
intralesional. Notar suturas apenas de contenção.
RESULTADOS
Após receber resultados de culturas e análises anatomopatológicas; foi interrompido
o
uso de antibiótico, iniciada corticoterapia via oral, uma vez que o diagnóstico de
PG havia sido corroborado pela patologia. O esquema utilizado de corticoterapia foi
baseado empiricamente da seguinte maneira: início 20 mg prednisona por 1 semana,
após; 15 mg por mais 1 semana, após; 10 mg por 1 semana, após; 5 mg por 3 semanas,
totalizando 6 semanas de tratamento com corticoide em esquema escalonado (Figuras 4A e 4B).
Figura 4 - A: Término do esquema com corticoide via oral - esquema
escalonado. Notar melhora significativa após cessar uso de antibiótico
via oral e iniciar corticoterapia via oral com prednisona - 6 semanas de
tratamento. B: Término tratamento com corticoterapia via
oral (prednisona).
Figura 4 - A: Término do esquema com corticoide via oral - esquema
escalonado. Notar melhora significativa após cessar uso de antibiótico
via oral e iniciar corticoterapia via oral com prednisona - 6 semanas de
tratamento. B: Término tratamento com corticoterapia via
oral (prednisona).
A paciente apresentou gradativamente melhora das lesões, que já se iniciaram no
primeiro período após as injeções de triancinolona no intraoperatório (Figura 5), sugerindo que a afecção em questão
estaria de fato relacionada com o sistema imunológico da própria paciente, uma vez
que, em se tratando de doença infecciosa bacteriana, ao realizar imunossupressão
(com corticoides injetáveis e orais) esperaríamos piora do quadro infeccioso. A
paciente foi investigada para doenças autoimunes, colagenases, hepatites e HIV. No
entanto, a pesquisa não evidenciou doença subclínica.
Figura 5 - Primeira semana de corticoterapia via oral com prednisona - 20mg.
Houve melhora significativa já na primeira semana de tratamento com
prednisona e retirada dos antibióticos orais.
Figura 5 - Primeira semana de corticoterapia via oral com prednisona - 20mg.
Houve melhora significativa já na primeira semana de tratamento com
prednisona e retirada dos antibióticos orais.
Nas áreas cruentas seguiram-se cuidados locais com curativos diários à base de óleos
cicatrizantes (Pielsana®) e gaze. Foi proposta para a paciente a terapia
hiperbárica, porém a mesma não conseguiu aderir ao tratamento devido ao custo.
Portanto, não foi realizada qualquer sessão de terapia em câmara hiperbárica, mas
entendemos que esta seria uma modalidade de extrema valia na recuperação das áreas
cruentas.
Mantivemos o uso do sutiã modelador pós-cirúrgico que servia como suporte para os
curativos, evitando o uso de micropore ou outras fitas adesivas em contato com a
pele, para evitar qualquer traumatismo subsequente, mesmo que mínimo; nas
adjacências das feridas.
DISCUSSÃO
Estamos diante de uma afecção pouco conhecida e com a capacidade de devastar a vida
de uma pessoa. Uma paciente que procura um cirurgião plástico na expectativa de uma
redução mamária (por exemplo), e no seu período de recuperação pós-operatório
enfrenta uma destruição tecidual progressiva e descontrolada, vai exatamente à
contramão daquilo que a paciente desejava: mamas esteticamente mais agradáveis.
A relação médico-paciente fica abalada, uma vez que o paciente sem entender o motivo
acredita ter sido erro de técnica do cirurgião, e do outro lado; o cirurgião sem
estabelecer um diagnóstico, acredita se tratar de uma infecção de ferida operatória.
Processos jurídicos surgem nesse momento.
Na literatura os dados fornecidos são confrontados com a prática de cirurgiões
plásticos, dermatologistas e, principalmente; feridólogos (médicos especializados
no
tratamento de feridas). Não é uma doença comum; pesquisa retrospectiva feita no
Brasil mostrou um índice de 0,38 casos por 10.000 atendimentos. O PG pode
associar-se a outras doenças, embora 50% dos casos surjam isoladamente6,7.
O diagnóstico do PG é clínico, pois não existem achados específicos, sejam eles
sorológicos ou histológicos. Quando úlceras necróticas destrutivas e dolorosas
complicam a evolução pós-operatória, especialmente em pacientes que sofram ou
sofreram de doença da autoimunidade, hepatites, AIDS, doenças mieloproliferativas,
entre outras, deve-se considerar a possibilidade de PG.
A melhora rápida do PG, em vários casos, com o uso de ciclosporina, sugere o
envolvimento de linfócitos T na sua patogênese, pois o principal mecanismo de ação
desta droga é a inibição da ativação deste tipo de linfócitos, com redução da
produção de interleucina-2 (IL-2) - embora a ciclosporina também iniba a fagocitose
de neutrófilos e monócitos, bem como a produção de superóxido pelos
polimorfonucleares. Um mecanismo similar (sobre os linfócitos T) acontece com o
tacrolimo, que também é eficaz no tratamento do PG8.
No caso apresentado, a melhora foi considerada rápida (seis semanas) com a utilização
de triancinolona injetável ao redor e dentro das lesões, juntamente com
corticoterapia sistêmica oral (prednisona).
Embora a histopatologia não produza achados específicos e sempre exista o risco de
aumentar as lesões pelo mecanismo da patergia, a biópsia é útil. Os achados mais
comuns são: infiltração neutrofílica supurativa, necrotizante e leucocitoclase. Tais
características, conquanto inespecíficas, serão indícios adicionais à hipótese de
PG. A cultura e os testes de sensibilidade podem ser úteis no diagnóstico
diferencial; fungos e bactérias atípicas devem ser procurados. Também serão úteis
os
estudos microbiológicos para o diagnóstico de infecções, complicando o PG4-10.
Levando em consideração tudo o que foi exposto diante deste caso, cabem dois
questionamentos:
Estaria a casuística do PG realmente correta?
Quantos casos dentre aqueles diagnosticados como PG receberam a devida
investigação para doenças da autoimunidade ou outras doenças
correlacionadas, no período subsequente?
Sobre as questões levantadas, faço as seguintes observações: existe um número enorme
de casos que deixam de ser diagnosticados. Ainda, existe um número maior de casos
não notificados. Não encontramos um colega cirurgião plástico que tenha efetuado a
devida notificação para a vigilância sanitária competente. Ou seja, as informações
que temos hoje sobre o PG provavelmente estão erradas. Precisamos rever nossa
casuística sobre PG, pois estamos diante de uma doença capaz de destruir a vida de
um paciente e, também, prejudicar a carreira de um cirurgião.
Sobre a segunda questão levantada; vale ressaltar que existe uma gama de pacientes
com doenças subjacentes a qual não estão recebendo tratamento. Sabe-se pela
literatura que apenas 50% dos casos têm correlação com doenças da autoimunidade,
hepatites, AIDS, entre outros. Porém, também confrontamos esse dado.
O argumento para esse confronto vem do fato de que o cirurgião plástico e até mesmo
o
dermatologista não são os profissionais mais habilitados para exaurir e investigar
um paciente que teve o diagnóstico de PG. Muitas vezes, o cirurgião depois de
resolver o problema, seja após o correto diagnóstico, seja sem o diagnóstico e
baseado em curativos por longas datas, promove a alta do paciente, e outras vezes,
devido à quebra da relação médico-paciente, o próprio paciente sequer retorna ou
segue as recomendações do seu cirurgião.
Entendemos que os profissionais de Medicina Interna (clínico geral) e Reumatologia
são os mais indicados para o devido encaminhamento do/a paciente após um diagnóstico
de PG. Estes profissionais serão capazes de promover a correta investigação
subclínica e exaurir as possibilidades diagnósticas.
A mensagem principal, portanto, é de que todo o paciente em pós-operatório que inicia
quadro de úlceras dolorosas e que progridem mesmo na vigência do uso de
antibióticos, deve-se colocar o PG dentro das possibilidades diagnósticas. Uma
biópsia é recomendada. O patologista não obrigatoriamente deverá incluir no seu
laudo o diagnóstico de PG, mas se a descrição dos achados histológicos
corresponderem a infiltrado neutrofílico ou infiltrado de neutrófilos, o cirurgião
deverá cada vez mais considerar o diagnóstico de PG.
Esse paciente deve ser investigado por clínico geral, ou especialista qualificado
(em
nossa opinião a melhor especialidade para essa investigação seria o reumatologista)
para exaurir as comorbidades que podem estar presentes de maneira subclínica. E por
último, se o quadro da paciente melhorar com a corticoterapia sistêmica; então
estamos diante de um caso de pioderma gangrenoso.
COLABORAÇÕES
CJGJ
|
Análise e/ou interpretação dos dados; coleta de dados; concepção e
desenho do estudo; investigação; redação - revisão e edição.
|
CJG
|
Análise e/ou interpretação dos dados; supervisão; visualização.
|
REFERÊNCIAS
1. Meyer TN. Pioderma Gangrenoso: Grave e Mal Conhecida Complicação da
Cicatrização. Rev Bras Cir Plást. 2006;21(2):120-4.
2. Soares JM, Rinaldi AE, Taffo E, Alves DG, Cutait RCC, Estrada EOD.
Pioderma gangrenoso pós-mamoplastia redutora: relato de caso e discussão. Rev
Bras Cir Plást. 2013;28(3):511-4.
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2001;68(4-5):287-97.
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review. Med Gen Med. 2001;3(3):6.
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6. Powell FC, Su WP, Perry HO. Pyoderma gangrenosum: classification and
management. J Am Acad Dermatol. 1996;34(3):395-409.
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gangrenoso: casuística e revisão de aspectos clínico-laboratoriais e
terapêuticos. An Bras Dermatol. 1999;74(5):465-72
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2002;16(2):148-51.
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2001;72(9):1043-7.
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1989;115(2):142-5.
1. Faculdade de Medicina de Jundiaí, Jundiaí, SP,
Brasil.
2. Clínica Particular, Dermatologia e Medicina
Interna, Osasco, SP, Brasil.
Autor correspondente: Carlos Jose Gaspar-Junior, Rua Ana Pereira
Melo, nº 253 - Sala 1010 - Vila Campesina - Osasco, SP, Brasil, CEP 06028-030.
E-mail: dr.gaspar.jr@gmail.com /
clinica.gaspar@outlook.com
Artigo submetido: 15/5/2018.
Artigo aceito: 1/10/2018.
Conflitos de interesse: não há.