INTRODUÇÃO
As perdas de substância no terço inferior da perna costumam exigir elaboradas
estratégias cirúrgicas para sua reconstrução1-3. Especialmente os
defeitos complexos da região do tendão de Aquiles, intercorrências comuns após
cirurgias ortopédicas, figurando como verdadeiros desafios para os cirurgiões
plásticos, devido às altas taxas de complicações e intercorrências2-4.
Várias são as opções disponíveis para reconstrução de lesões como essas, sendo sempre
preferível o método mais simples1,5. Para a escolha da
estratégia de reconstrução, deve-se considerar, entre outros, os seguintes fatores:
lesão (localização, tamanho), área doadora, paciente (histórico clínico) e cirurgia
(experiência do cirurgião, estrutura hospitalar)1.
Dentre as opções existentes para essa reconstrução, a técnica utilizando o retalho
sural reverso de pedículo fasciossubcutâneo3,6,7 ou adipofascial reverso é citada na literatura
há mais de 20 anos como interessante alternativa7,8, entretanto, pouco
relatada, se comparada às outras técnicas mais utilizadas. As principais vantagens
desta abordagem estão na execução, por ser simples e rápida; na vascularização, que
é constante e segura; na baixa morbidade da zona doadora, bastante aceitável e que
tem excelente arco de rotação9, colocando-a
como escolha interessante em diversas oportunidades.
O objetivo deste estudo é apresentar o resultado do tratamento de uma lesão complexa
no terço inferior da perna, com exposição do tendão de Aquiles, realizado com
retalho sural reverso de pedículo fasciossubcutâneo, associado à enxertia de pele
total no mesmo tempo cirúrgico, discutindo as alternativas técnicas e as vantagens
do procedimento.
RELATO DO CASO
Paciente A.D., 28 anos, do sexo masculino, branco, sem comorbidades, apresentando
lesão com necrose tecidual de aproximadamente 6,0x4,0cm em região de terço distal
de
perna direita com exposição de tendão no pós-operatório tardio de cirurgia
ortopédica para reconstrução de ruptura subtotal do tendão de Aquiles pós-acidente
automobilístico. No trigésimo dia de pós-operatório, o paciente foi encaminhado ao
serviço de cirurgia plástica, sendo submetido a desbridamento (Figura 1).
Figura 1 - Aspectos do pré-operatório. A: Antes do desbridamento;
B: Quinze dias após o desbridamento.
Figura 1 - Aspectos do pré-operatório. A: Antes do desbridamento;
B: Quinze dias após o desbridamento.
Quinze dias depois, com paciente em decúbito ventral horizontal, sob raquianestesia,
após demarcação de sítio operatório na região da panturrilha do membro inferior
direito, foi realizada a reconstrução do terço inferoposterior da perna com um
retalho sural reverso de pedículo fasciossubcutâneo fixado sem tensão, associada à
enxertia de pele total, a qual foi retirada da região poplítea ipslateral no mesmo
tempo cirúrgico da confecção do retalho (Figuras 2 e 3).
Figura 2 - Aspectos do transoperatório da confecção do retalho sural com
pedículo fasciossubcutâneo. A: Demarcação do sítio
operatório; B: Amplo descolamento cutâneo; C:
Dissecção da fáscia sobre o músculo sural e rotação do retalho em 180
graus, no eixo do pedículo fasciossubcutâneo, cobrindo a área exposta;
D: Fixação do retalho na área receptora, sobre dreno de
Penrose; E: Resultado pós-operatório imediato, após
enxertia de pele total, no mesmo tempo cirúrgico.
Figura 2 - Aspectos do transoperatório da confecção do retalho sural com
pedículo fasciossubcutâneo. A: Demarcação do sítio
operatório; B: Amplo descolamento cutâneo; C:
Dissecção da fáscia sobre o músculo sural e rotação do retalho em 180
graus, no eixo do pedículo fasciossubcutâneo, cobrindo a área exposta;
D: Fixação do retalho na área receptora, sobre dreno de
Penrose; E: Resultado pós-operatório imediato, após
enxertia de pele total, no mesmo tempo cirúrgico.
Figura 3 - Ilustração do transoperatório da confecção do retalho sural com
pedículo fasciossubcutâneo. A: Demarcação do sitio
operatório; B: Amplo descolamento cutâneo; C:
Dissecção da fáscia sobre o músculo sural e rotação do retalho em 180
graus, no eixo do pedículo fasciossubcutâneo, cobrindo a área exposta;
D: Fixação do retalho na área receptora, sobre dreno de
Penrose; E: Resultado pós-operatório imediato, após
enxertia de pele total, no mesmo tempo cirúrgico.
Figura 3 - Ilustração do transoperatório da confecção do retalho sural com
pedículo fasciossubcutâneo. A: Demarcação do sitio
operatório; B: Amplo descolamento cutâneo; C:
Dissecção da fáscia sobre o músculo sural e rotação do retalho em 180
graus, no eixo do pedículo fasciossubcutâneo, cobrindo a área exposta;
D: Fixação do retalho na área receptora, sobre dreno de
Penrose; E: Resultado pós-operatório imediato, após
enxertia de pele total, no mesmo tempo cirúrgico.
O procedimento cirúrgico teve duração de 90 minutos, não sendo encontrada dificuldade
na realização da técnica. O paciente recebeu alta médica hospitalar oito horas após
o procedimento, sem imobilização gessada, apenas com curativo oclusivo local, sem
referir déficit motor, queixas sensitivas ou álgicas relevantes e com orientações
para evitar deambulação com carga total por um período de uma semana. O
pós-operatório evoluiu sem intercorrências, apenas com curativos ambulatoriais. O
resultado cicatricial foi gradualmente alcançando o aspecto esperado (Figura 4).
Figura 4 - Aspectos do pós-operatório. A: 60 dias; B:
120 dias; C: 150; D: 180 dias de
pós-operatório.
Figura 4 - Aspectos do pós-operatório. A: 60 dias; B:
120 dias; C: 150; D: 180 dias de
pós-operatório.
DISCUSSÃO
Quando abordamos as reconstruções do terço inferior da perna, a necessidade da
popularização de alternativas técnicas mais efetivas, menos complexas e com
resultados superiores, é referida por diversos autores há anos, especialmente para
lesões em terço distal da perna1,7.
A partir da crescente elevação no grau de exigência dos pacientes em relação ao
resultado da cirurgia, a determinação da qualidade do desfecho obtido vem ganhando
cada vez mais destaque na literatura e incitando grande discussão entre os
cirurgiões plásticos e seus pacientes2-4.
O retalho sural reverso de pedículo fasciossubcutâneo ou adipofascial reverso é
seguro por nutrição constante dos ramos perfurantes cutâneos das artérias fibular
e
tibial posterior1, preserva a inervação
sensitiva do nervo safeno, fibular superficial e sural, pois apenas uma fina parte
do subcutâneo é deixada sob a derme para evitar lesão do plexo subdérmico da região
doadora, enquanto a maior parte do subcutâneo facilmente dissecada em um plano
cirúrgico garante a viabilidade do retalho, facilitando sua rotação no próprio eixo
de forma simples e sem necessidade de liberação do pedículo para regularização das
bordas em segundo tempo cirúrgico como no retalho fasciocutâneo2, mantendo baixa morbidade e resultados satisfatórios, sem
sequelas funcionais1,6,8.
O retalho sural reverso de pedículo neurocutâneo, descrito inicialmente por Masquelet
et al., em 1994, geralmente é uma das opções mais difundidas2 para correções de lesões nessas áreas em casos como o aqui
apresentado. No entanto, esta alternativa recebe críticas pela perda da
sensibilidade cutânea e cicatriz inestética da área doadora2.
Os retalhos perfurantes também vêm ganhando mais destaque nos últimos anos. Descritos
inicialmente por Donski & Fogdestam5, em
1983, entretanto, essa técnica apresenta desvantagens como a grande variação no
diâmetro e posição dos vasos perfurantes.
O uso das reconstruções microcirúrgicas, como o retalho miocutâneo livre do grande
dorsal, entre outras possibilidades que despontaram há alguns anos como alternativas
cirúrgicas para o tratamento de lesões em áreas críticas2,3, são
geralmente reservados para lesões mais extensas e necessitam de uma infraestrutura
mais sofisticada com equipe altamente experiente.
Em revisão na literatura publicada na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica em
janeiro de 2017 foram citadas e descritas algumas opções mais utilizadas para
reconstrução de lesões complexas dos membros inferiores10, no entanto, o retalho que ressaltamos não foi citado.
O retalho sural reverso de pedículo fasciossubcutâneo ou adipofascial, devido ao bom
prognóstico desenhado tanto pela literatura relativamente escassa nos últimos anos
quanto pelo nosso caso em questão, mostrou-se eficaz, seguro, com excelente
resultado estético, funcional e sem recidivas ao longo do período avaliado. Merece,
desta forma, mais atenção dos cirurgiões plásticos devido às possibilidades que
vislumbra, especialmente quando comparado com as técnicas alternativas mais
utilizadas rotineiramente e aqui citadas.
CONCLUSÃO
O retalho sural reverso de pedículo fasciossubcutâneo, associado à enxertia de pele
total no mesmo tempo cirúrgico, apresentou-se como uma boa opção, com resultado
satisfatório para reconstrução da lesão complexa no terço inferoposterior da perna
com exposição do tendão de Aquiles.
COLABORAÇÕES
DNS
|
Análise e/ou interpretação dos dados; análise estatística; aprovação
final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; realização das
operações e/ou experimentos; redação do manuscrito ou revisão crítica de
seu conteúdo.
|
MR
|
Aprovação final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; realização
das operações e/ou experimentos.
|
AABMR
|
Análise e/ou interpretação dos dados; análise estatística; aprovação
final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; redação do
manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.
|
ICP
|
Análise e/ou interpretação dos dados; análise estatística; concepção e
desenho do estudo; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu
conteúdo.
|
REFERÊNCIAS
1. Braga-Silva J, Martins PDE, Román JA, Gehlen D. Utilização do
Retalho Adipofascial Reverso nas Perdas de Substância Cutânea do Terço Distal da
Perna e Pé. Rev Bras Cir Plást. 2005;20(3):182-6.
2. Garcia AMC. Retalho sural reverso para reconstrução distal da perna,
tornozelo, calcanhar e do pé. Rev Bras Cir Plást.
2009;24(1):96-103.
3. Weber ES, Franciosi LFN, Mueller SF, Dalponte M, Heurich NR,
Gonçalves SCS. Retalho sural para reconstrução do pé. ACM Arq Catarin Med.
2007;36(Supl. 1):1-4.
4. Belém LFMM, Lima JCSA, Ferreira FPM, Ferreira EM, Penna FV, Alves
MB. Retalho sural de fluxo reverso em ilha. Rev Soc Bras Cir Plást.
2007;22(4):195-201.
5. Donski PK, Fogdestam I. Distally based fasciocutaneous flap from the
sural region. A preliminary report. Scand J Plast Reconstr Surg.
1983;17(3):191-6. PMID: 6673085
6. Vendramin FS. Retalho sural de fluxo reverso: 10 anos de experiência
clínica e modificações. Rev Bras Cir Plást. 2012;27(2):309-15. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1983-51752012000200023
7. Gumener R, Zbrodowski A, Montandon D. The reversed
fasciosubcutaneous flap in the leg. Plast Reconstr Surg. 1991;88(6):1034-41.
DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199112000-00013
8. Franco T, Couto P, Gonçalves LFF, Franco D, Silva CC. Tratamento das
exposições ósseas e tendinosas no terço distal da perna e no pé utilizando
retalho fasciossubcutâneo reverso de panturrilha. Rev Bras Ortop.
1996;31(3):247-52.
9. Kneser U, Bach AD, Polykandriotis E, Kopp J, Horch RE. Delayed
reverse sural flap for staged reconstruction of the foot and lower leg. Plast
Reconstr Surg. 2005;116(7):1910-7. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/01.prs.0000189204.71906.c2
10. Anlicoara R, Barbosa FAMA, Sá JZ, Braga ACCR, Sá GT. Reconstrução de
feridas complexas de membros inferiores com retalhos fasciocutâneos reversos.
Rev Bras Cir Plást. 2017;32(1):116-22.
1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande, MS, Brasil.
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São
Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Daniel Nunes e
Silva, Av. Alto Porã, nº 51 - Chácara Cachoeira, Campo Grande, MS,
Brasil. CEP 79040-045. E-mail:
dermatoeplastica@gmail.com
Artigo submetido: 4/2/2018.
Artigo aceito: 22/6/2018.
Conflitos de interesse: não há.