INTRODUÇÃO
As queimaduras durante a gestação necessitam ser melhor estudadas devido às
alterações fisiológicas particulares da gravidez. A incidência de gestantes vítimas
de queimaduras não é bem estabelecida na literatura, mas estima-se que varie entre
3% e 7%, concentrada principalmente nos países em desenvolvimento1,2. Os cuidados da gestante queimada representam um grande desafio com
impacto significante no prognóstico materno-fetal. No presente estudo relatamos dois
casos tratados na unidade de tratamento de queimaduras da Escola Paulista de
Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/UNIFESP), em São Paulo, SP.
RELATO DE CASO
Caso Clínico 1
Paciente de 36 anos de idade, sem comorbidades, vítima de queimadura acidental
com álcool líquido e chama, na 10ª semana de gestação, com 29% de superfície
corporal queimada, de 2º e 3º graus, em face, tórax, abdome, membros superiores,
mãos e coxas bilateralmente. Submetida à intubação orotraqueal na admissão por
insuficiência respiratória secundária a provável lesão inalatória, que foi
posteriormente confirmada por broncoscopia.
Durante a internação, foi submetida a tratamento clínico e cirúrgico, com
desbridamento e enxertia das áreas queimadas com sucesso. A equipe de
Obstetrícia acompanhou o caso em conjunto e realizou ultrassom para confirmação
da idade gestacional. Paciente recebeu alta hospitalar após finalização do
tratamento das queimaduras e foi encaminhada para seguimento obstétrico
ambulatorial até o nascimento do feto a termo (Figuras 1, 2, 3 e 4).
Figura 1 - Admissão Caso 1 - Aspecto das queimaduras na admissão, com maior
parte de 2º grau, porém já apresentava áreas de 3º grau nas mamas e
no braço direito.
Figura 1 - Admissão Caso 1 - Aspecto das queimaduras na admissão, com maior
parte de 2º grau, porém já apresentava áreas de 3º grau nas mamas e
no braço direito.
Figura 2 - Admissão Caso 1 - Queimaduras de 2º grau nos membros inferiores
na admissão.
Figura 2 - Admissão Caso 1 - Queimaduras de 2º grau nos membros inferiores
na admissão.
Figura 3 - Pós-operatório Tardio Caso 1 - Paciente no pós-operatório tardio
com áreas de enxerto de pele parcial nas mamas, axila e braço
direito.
Figura 3 - Pós-operatório Tardio Caso 1 - Paciente no pós-operatório tardio
com áreas de enxerto de pele parcial nas mamas, axila e braço
direito.
Figura 4 - Pós-Operatório Tardio Caso 1 - Paciente no pós-operatório tardio
com queimaduras de 2º grau restauradas e área doadora de enxerto de
pele parcial na lateral da coxa esquerda cicatrizada.
Figura 4 - Pós-Operatório Tardio Caso 1 - Paciente no pós-operatório tardio
com queimaduras de 2º grau restauradas e área doadora de enxerto de
pele parcial na lateral da coxa esquerda cicatrizada.
Caso Clínico 2
Paciente com 29 anos de idade e 31 semanas de gestação, vítima de agressão pelo
parceiro com queimaduras causadas por álcool líquido e chama. Apresentava
queimaduras de 2º e 3ºgraus em 15% de superfície corpórea, em face, pescoço,
tronco anterior e membro superior direito.
Durante a internação, foi submetida a tratamento clínico e cirúrgico, com
desbridamento e enxertia das áreas queimadas com sucesso. Durante as abordagens
cirúrgicas, foi realizada cardiotocografia fetal contínua pela equipe da
obstetrícia para monitorização da vitalidade fetal. Recebeu alta da unidade de
tratamento de queimados e foi transferida para a unidade de obstetrícia, onde
permaneceu internada até o nascimento a termo do feto (Figuras 5, 6, 7 e 8).
Figura 5 - Admissão Caso 2 - Aspecto de lesões de 3º grau no tórax da
paciente na admissão.
Figura 5 - Admissão Caso 2 - Aspecto de lesões de 3º grau no tórax da
paciente na admissão.
Figura 6 - Admissão Caso 2 - Queimadura de 2º grau na mão direita, com área
profunda na região tenar.
Figura 6 - Admissão Caso 2 - Queimadura de 2º grau na mão direita, com área
profunda na região tenar.
Figura 7 - Pós-operatório Tardio Caso 2 – Pós-operatório de enxerto de pele
parcial no tórax.
Figura 7 - Pós-operatório Tardio Caso 2 – Pós-operatório de enxerto de pele
parcial no tórax.
Figura 8 - Pós-operatório Tardio Caso 2 - Mão direita após enxerto de pele
parcial na região tenar com objetivo de preservar a função de
pinça.
Figura 8 - Pós-operatório Tardio Caso 2 - Mão direita após enxerto de pele
parcial na região tenar com objetivo de preservar a função de
pinça.
DISCUSSÃO
A superfície corporal queimada (SCQ) constitui o principal fator prognóstico da
mortalidade materna e fetal, aproximando-se a 50% de mortalidade quando acima de 40%
de SCQ1. Em segundo lugar, a lesão inalatória
é outro importante fator prognóstico relacionado à mortalidade materna e fetal3-5. As complicações mais comuns para o feto são o sofrimento fetal,
seguido de aborto espontâneo e trabalho de parto prematuro3,4.
O correto tratamento da gestante queimada está intimamente relacionado ao sucesso
e à
sobrevivência do feto. No atendimento inicial, sempre devem ser calculados a SCQ da
gestante e a idade gestacional (IG) do feto, de preferência pela ultrassonografia,
confirmando a viabilidade fetal. Parikh et al.1, em 2015, descreveram algoritmo elaborado para auxiliar na
condução das gestantes vítimas de queimaduras (Figura 9).
Figura 9 - Algoritmo de tratamento da gestante queimada. Adaptado de Parikh et
al.
1.
Figura 9 - Algoritmo de tratamento da gestante queimada. Adaptado de Parikh et
al.
1.
Gestantes cujos fetos já são viáveis e que apresentam mais de 55% de SCQ devem ser
submetidas à cesárea de urgência, o que melhora de forma significativa o prognóstico
materno e fetal. Nos casos com menos de 55% de SCQ deve-se continuar com as medidas
de ressuscitação e suporte da paciente queimada, com monitorização fetal contínua
e
aplicação de corticosteroides para maturação pulmonar fetal se elegível1.
A hipovolemia consiste num dos maiores desafios no tratamento dos queimados, em
geral. Não existe ainda na literatura guia para ressuscitação volêmica da gestante
queimada, mas de maneira geral utiliza-se a fórmula de Parkland como guia e opta-se
por aumentar em 30% o volume de ressuscitação, devido ao aumento fisiológico da
volemia na gestação1,2. Nas gestantes, a hipovolemia pode ter
implicações diretas na evolução da gestação6.
A desidratação que se instala após a queimadura pode desencadear trabalho de parto
prematuro2.
Outra peculiaridade encontrada nas vítimas de queimaduras e que se encontram
gestantes é a vulnerabilidade da via aérea1,6. O estado de edema
fisiológico já encontrado na via aérea superior das gestantes pode acelerar o
processo de obstrução de via aérea nos casos de lesão inalatória e dificultar uma
eventual intubação1,5.
O caso clínico 1 relata o tratamento direcionado para o primeiro trimestre da
gestação, em que as medicações utilizadas foram o fator que mais influenciou nas
decisões tomadas. As medicações comumente utilizadas para o tratamento de queimados
foram avaliadas quanto sua segurança no uso em gestantes no primeiro trimestre. No
segundo caso clínico, o risco de parto prematuro devido ao estresse causado pelo
trauma e pelas cirurgias foi o principal determinante na condução do caso.
A profilaxia química da trombose venosa profunda é fortemente recomendada devido ao
estado de hipercoagulabilidade próprio da gestante. No primeiro caso clínico foi
utilizada a heparina de baixo peso molecular e no segundo a heparina não fracionada,
ambas consideradas de uso seguro na gestação1.
O uso de inibidores de bomba de prótons ou inibidores H2 também é considerado seguro
e recomendado para as gestantes devido ao risco de úlcera péptica gástrica.
Em ambos os casos foi escolhida a ranitidina1.
Dos antimicrobianos usualmente utilizados no tratamento dos queimados, a amicacina
é
sabidamente teratogênica e seu uso deve ser evitado no tratamento das gestantes,
mesmo na sua forma tópica1.
A enxertia precoce, de preferência antes de 48 horas, mostrou melhorar a mortalidade
materna, sem impactar negativamente na sobrevida do feto7. Por esta razão, devemos sempre, quando as condições da
paciente gestante e do feto permitirem, não postergar os procedimentos cirúrgicos,
sendo de grande importância os cuidados não só intraoperatórios, como também no
pós-operatório7.
No intraoperatório e pós-operatório imediato é recomendada a monitorização da
frequência cardíaca fetal com ultrassonografia a partir de 16 semanas e com
cardiotocografia contínua a partir de 25 semanas8. A realização de um ultrassom Doppler fetal na admissão e 2 semanas
após o trauma, devido ao risco de morte fetal tardia, é recomendado6,9.
CONCLUSÃO
Os casos relatados ilustram o tratamento da gestante queimada em dois momentos
distintos da gestação, a primeira no início da gestação e a segunda se aproximando
do termo. Nas gestantes de primeiro trimestre especial atenção deve ser dada às
medicações que serão utilizadas durante o seu tratamento, devido ao risco de
teratogenicidade.
Já no segundo caso clínico, em que a gestante se apresenta no terceiro trimestre,
passa a ter maior importância a monitorização fetal com a cardiotocografia devido
ao
risco de sofrimento fetal, abortamento e parto prematuro. Diante de tantas
peculiaridades trazidas pela gestação, fica clara a complexidade do tratamento da
gestante vítima de queimadura. Embora a queimadura seja um problema de saúde cuja
principal forma de atuação deve ser focada na sua prevenção, sabemos que o maior
conhecimento da fisiologia da gestação nos permite melhorar a assistência médica à
gestante queimada.
COLABORAÇÕES
JRNLF
|
Análise e/ou interpretação dos dados; análise estatística; aprovação
final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; redação do
manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo; suplemento especial
(apresentador do artigo).
|
ELF
|
Análise e/ou interpretação dos dados; realização das operações e/ou
experimentos; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu
conteúdo.
|
GFT
|
Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito;
concepção e desenho do estudo; redação do manuscrito ou revisão crítica
de seu conteúdo.
|
AFO
|
Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito;
concepção e desenho do estudo; redação do manuscrito ou revisão crítica
de seu conteúdo.
|
LMF
|
Análise e/ou interpretação dos dados; análise estatística; aprovação
final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; realização das
operações e/ou experimentos; redação do manuscrito ou revisão crítica de
seu conteúdo.
|
REFERÊNCIAS
1. Parikh P, Sunesara I, Lutz E, Kolb J, Sawardecker S, Martin JN Jr.
Burns During Pregnancy: Implications for Maternal-Perinatal Providers and
Guidelines for Practice. Obstet Ginecol Surv. 2015;70(10):633-43. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/OGX.0000000000000219
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http://dx.doi.org/10.1016/j.ijgo.2008.10.003
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Burns. 2006;32(2):246-50. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.burns.2005.10.003
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1. Universidade Federal de São Paulo, Escola
Paulista de Medicina, São Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Andrea Fernandes de
Oliveira, Rua Napoleão de Barros, 737 - 14º andar, Vila Clementino -
São Paulo, SP, Brasil. CEP 04024-002. E-mail:
dra.afo@gmail.com
Artigo submetido: 24/9/2017.
Artigo aceito: 5/9/2018.
Conflitos de interesse: não há.