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Special Article - Year2017 - Volume32 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2017RBCP0100

RESUMO

INTRODUÇÃO: O procedimento denominado de bichectomia consiste na remoção parcial de uma estrutura adiposa na região das bochechas e ganhou recente popularidade entre a classe odontológica, que passou a executá-lo amplamente, com demandas predominantemente estéticas e, com isso, dúvidas e incertezas surgiram a respeito dos seus aspectos éticos e legais.
OBJETIVO: O objetivo deste trabalho foi buscar legislações nacionais, bem como normativas e resoluções emitidas por conselhos profissionais, visando abordar tais controvérsias, alumiando os profissionais quanto à legitimidade do procedimento.
RESULTADOS: Verificou-se que desde 1978, os Conselhos Federais de Medicina e de Odontologia vêm emitindo resoluções para determinar limiares de atuação profissional, em especial, com enfoque na especialidade Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial, visto que é a especialidade odontológica clínica que mais se aproxima de campos de atuação médica. Com o tempo, estes Conselhos foram atualizando estas Resoluções, tendo em vista os avanços técnicos e científicos da área, porém todas as resoluções analisadas são unânimes em afirmar que a realização de bichectomia com finalidade estritamente estética é atribuição médica.
CONCLUSÃO: Desta forma, com base nos documentos atualmente vigentes, verifica-se que o cirurgião-dentista que estiver disposto a realizar a cirurgia de bichectomia com finalidade exclusivamente estética estará incorrendo em transgressões administrativas e, consequentemente, tais interpretações podem ser vislumbradas em outras esferas (cíveis e criminais).

Palavras-chave: Odontologia; Odontologia legal; Estética; Cirurgia plástica; Legislação médica; Legislação odontológica.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Bichectomy consists of removing part of a fat structure in the region of the cheeks, and it recently gained popularity in the field of odontology, which began to widely perform the procedure, with predominantly aesthetic demands and, with that, doubts and uncertainties arose with respect to its ethical and legal aspects.
OBJECTIVE: The objective of this work was to seek national laws, as well as normative and resolutions issued by professional councils, aiming to address such controversies, enlightening professionals to the legitimacy of the procedure.
RESULTS: Since 1978, the Federal Councils of Medicine and Dentistry have issued resolutions to determine thresholds for professional performance, which particularly focused on Oral and Maxillofacial Surgery and Traumatology because it is the closest clinical dental specialty of medical practice. Over time, these Councils have been updating these resolutions, considering the technical and scientific advances of the area, but all the resolutions analyzed were unanimous in affirming that the accomplishment of bichectomy with a strictly aesthetic purpose is a medical attribution.
CONCLUSION: Subsequently, based on the documents currently in force, it is verified that the dental surgeon who is willing to perform bichectomy surgery for aesthetic purposes will be incur administrative infractions and, consequently, such interpretations can be seen in other legal areas (civil and criminal).

Keywords: Odontology; Legal odontology; Aesthetics; Plastic Surgery; Medical legislation; Odontology legislation.


INTRODUÇÃO

A bola de Bichat é uma estrutura adiposa, em formato tubular e recoberta por uma fina cápsula fibrosa que se situa em um espaço entre a pele e o lado externo do músculo bucinador, ocupando uma posição proeminente no terço médio facial1,2. Possui diversas funções como sucção, auxílio à mastigação, preenchimento e deslizamento facial e proteção de estruturas importantes, como agrupamentos neurovasculares1-3. Costumeiramente, é mais desenvolvida em adultos e pessoas idosas do que em jovens2,3.

A bichectomia é um procedimento que consiste na remoção de parte da bola ou corpo adiposo de Bichat e visa à obtenção de uma estética facial mais favorável nos terços médio e inferior da face, visto que, com a remoção, o rosto se torna mais delgado, devido à redução do volume das bochechas3,4. Por se tratar de cirurgia na cavidade oral, complicações provenientes são intrínsecas ao procedimento, como dor e edema5, infecções6 e hemorragias7. Apesar disso, o procedimento traz benefícios cosméticos e esses contratempos são geralmente improváveis2,8. Para a realização desse procedimento, é necessário conhecimento anatômico e cirúrgico, além de um bom diagnóstico para sua execução, pois o aspecto volumoso do rosto pode ter outras causas que não envolvam a estrutura supracitada1.

Esta cirurgia vem ganhando espaço, atualmente, principalmente em razão da busca incansável pela estética ideal, e uma das técnicas que vem sendo utilizada constitui em uma abordagem intraoral para a remoção da bola de Bichat4,8 e, desta forma, a Odontologia iniciou a execução de várias destas cirurgias, já que a área jugal corresponde à região de cabeça e pescoço e possui íntimo contato com a cavidade oral.

E essa interface de procedimentos realizados majoritariamente por médicos com áreas correspondentes à atuação do cirurgião-dentista gera dúvidas e controvérsias sobre a legitimidade do ato.


OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é buscar, em dispositivos legais, normas administrativas e resoluções, os aspectos éticos e legais que permeiam o procedimento de bichectomia na atividade odontológica.


ATÉ AONDE PODEMOS IR?

Sobre o campo de atuação do cirurgião-dentista no corpo humano


Legalmente, a Odontologia brasileira é regulada pela Lei nº 5.081, de 24 de agosto de 19669, e, nesta Lei estão suas competências e qualificações profissionais. Acerca do campo de atuação, a referida Lei não especifica áreas anatômicas, mas somente traz em seu Art. 6º, inciso I: "Compete ao cirurgião-dentista: praticar todos os atos pertinentes a Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso regular ou em cursos de pós-graduação".

Nesses termos, entende-se que um cirurgião-dentista é apto a realizar procedimentos que tenha sido capacitado não apenas durante sua graduação, como também em cursos após esse nível, como atualizações, aperfeiçoamentos, especializações, entre outros. Desde que foi publicada, a referida Lei9 não foi revista e/ou atualizada, apesar do longo tempo de sua promulgação. E, assim, o CFO (Conselho Federal de Odontologia) compôs uma extensa normativa, que se trata de uma compilação de regras e normas a serem seguidas pelos CROs (Conselhos Regionais de Odontologia) e por toda a classe odontológica, denominada Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia10, em sua versão mais atual, a Resolução CFO Nº 63/2005. Dentre sua redação, no Capítulo VIII, do Título I, constam as regras relativas ao exercício de cada uma das especialidades odontológicas reconhecidas, incluindo suas áreas de atuação.

É importante destacar que os únicos artigos da Consolidação10 que mencionam algo em relação às áreas de atuação do cirurgião-dentista, que podem ser correlacionados diretamente à bichectomia, situam-se na parte que delimita as competências da especialidade de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofaciais, segundo seu art. 43: "É vedado ao cirurgião-dentista o uso da via cervical infra-hióidea, por fugir ao domínio de sua área de atuação, bem como a prática de cirurgia estética, ressalvadas as estético-funcionais do aparelho mastigatório".

A normativa10 faz ressalvas também em seu art. 48:"É da competência exclusiva do médico o tratamento de neoplasias malignas, neoplasias das glândulas salivares maiores (parótida, sublingual, submandibular), o acesso da via cervical infra-hióidea, bem como a prática de cirurgias estéticas, ressalvadas as estético-funcionais do sistema estomatognático que são da competência do cirurgião-dentista". Percebe-se, então, que o intento da Consolidação foi traçar uma linha divisória entre a atuação médica e odontológica, derivada de normativas conjuntas emitidas pelos Conselhos Federal de Medicina (CFM) e Odontologia (CFO).

A leitura dos artigos acima mencionados permite afirmar que a Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia10 estabelece dois parâmetros para definição da competência de atuação do cirurgião-dentista: o primeiro é um critério relacionado à área de atuação; o segundo está relacionado à finalidade do procedimento.

O CFO, mais recentemente, em 6 de setembro de 2016, emitiu a Resolução nº 176/201611, no escopo de elucidar a classe odontológica em relação à utilização de toxina botulínica na região de cabeça e pescoço. Seu artigo 1º, §1º descreve, pela primeira vez, a delimitação anatômica da área de atuação do cirurgião dentista, como segue: "A área anatômica de atuação clínico-cirúrgica do cirurgião-dentista é superiormente ao osso hioide, até o limite do ponto násio (ossos próprios de nariz) e anteriormente ao tragus, abrangendo estruturas anexas e afins".

Quanto à finalidade dos procedimentos de competência do cirurgião-dentista, a Resolução CFO nº 176/201611 apresenta conclusões conflitantes com o disposto na Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia10, ao afirmar, no caput do art. 1º, que está autorizada "a utilização da toxina botulínica e dos preenchedores faciais pelo cirurgião-dentista, para fins terapêuticos funcionais e/ou estéticos".

Assim, se pela Consolidação10 é vedada a realização de procedimentos estritamente estéticos, pela Resolução CFO nº 176/20168 é permitida a utilização de toxina botulínica, ainda que para fins exclusivamente estéticos. Também são verificadas divergências entre as duas normas citadas em relação à área de atuação do cirurgião-dentista, eis que pela Resolução CFO nº 176/201611 a área de atuação odontológica pode se estender até o terço superior da face, conforme disposto no §2º, do art. 1º desta norma ética.

Estas divergências decorrem de um erro de premissa, isto é, nos "Considerandos" da Resolução CFO 176/201611 afirma-se que o cirurgião-dentista atua em estética da face dos pacientes, nos seguintes termos: "Considerando que o cirurgião-dentista atua também na face (artigos 41, 42, 53, 54, 59, 60, 62, 73, 74, 77, 78, 81 e 82 da Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia, aprovada pela Resolução CFO-63/2005) e em estética (artigos 43, 48, 52, 74, 81 e 83 da Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia, aprovada pela Resolução CFO 63/2005)". No entanto, todos os artigos da Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia10 citados para justificar a atuação "em estética" (43, 48, 52, 74, 81 e 83) mencionam claramente que a atuação estética está ligada, obrigatoriamente, à busca de melhora funcional. Em nenhum destes artigos está escrito que o cirurgião-dentista pode atuar exclusivamente na busca de melhora estética do paciente. Os artigos 43 e 48 acima transcritos são suficientemente claros quanto à impossibilidade de atuação estritamente estética dos cirurgiões-dentistas.

Da mesma forma, a leitura dos artigos 81 e 83 também leva à conclusão de que a atuação do cirurgião-dentista não pode ter como finalidade única a abordagem estética. Diz o Art. 81: "Prótese Buco-Maxilo-Facial é a especialidade que tem como objetivo a proteção, a prevenção, a reabilitação anatômica, funcional e estética, de regiões da maxila, da mandíbula e da face, ausentes ou defeituosas, como sequelas de cirurgia, de traumatismo ou em razão de malformações congênitas ou de distúrbios do desenvolvimento, através de próteses, aparelhos e dispositivos". Por seu turno, o Art. 83 estabelece que: "Prótese Dentária é a especialidade que tem como objetivo a reconstrução dos dentes parcialmente destruídos ou a reposição de dentes ausentes visando à manutenção das funções do sistema estomatognático, proporcionando ao paciente a função, a saúde, o conforto e a estética". Tanto o art. 81 como o art. 83 mencionam que o objetivo da atuação do cirurgião-dentista é a função, podendo a melhora estética ser associada à busca da melhora funcional, mas jamais a melhora estética é tratada nos artigos citados como objetivo único possível de ser perseguido na atuação odontológica10.

Nem mesmo o art. 52, que trata das competências do especialista em Dentística, traz a possibilidade de atuação com finalidade exclusivamente estética pelo cirurgião-dentista. O art. 52 deve ser analisado em conjunto com o art. 51, ambos da referida Consolidação. Assim dispõe o art. 51: "A Dentística, em uma visão abrangente e humanística, tem como objetivo o estudo e a aplicação de procedimentos educativos, preventivos e terapêuticos, para devolver ao dente sua integridade fisiológica, e assim contribuir de forma integrada com as demais especialidades para o restabelecimento e a manutenção da saúde do sistema estomatognático". Logo, a finalidade da atuação do especialista em Dentística é o restabelecimento e/ou a manutenção da saúde do sistema estomatognático. Dentro desta finalidade funcional, o especialista pode praticar procedimentos estéticos, educativos e preventivos (art. 52, inciso III)10. Não há autorização para a prática de procedimentos estéticos dissociados de finalidade funcional.

Portanto, a Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia10 não permite a realização de nenhum procedimento com finalidade exclusivamente estética, tampouco autoriza a atuação no terço superior da face. E, nesse sentido, a transgressão da área de atuação e/ou o desrespeito à finalidade de atuação do cirurgião-dentista, em âmbito administrativo, é prevista como infração ética pelo Código de Ética Odontológica12, cujo capítulo V, seção I, inciso XIV, redige como ato atentatório à ética profissional: "(...)XIV - propor ou executar tratamento fora do âmbito da Odontologia. (...)", trazendo sanções que podem variar desde uma advertência confidencial até a cessação do registro profissional13.

Notavelmente, a denominada Lei do Ato Médico, ou Lei 12.842/201314, traz alinhada uma série de atividades privativas da classe médica em seu Art. 4º, merecendo especial menção o disposto nos incisos II e III, os quais estabelecem que a "indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios" e a "indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias" são atividades privativas do médico. O §6º do artigo 4º salienta que "O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação".

Retomando as considerações feitas acerca das disposições contidas na Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia, tem-se que o próprio Conselho Federal de Odontologia, até o presente momento, não reconhece como possível a atuação do cirurgião-dentista com finalidade exclusivamente estética. Desta forma, a exceção prevista no §6º do art. 4º da Lei 12.842/2013 não autoriza o profissional de Odontologia a indicar e/ou executar procedimento invasivo com finalidade puramente estética, sendo estas atribuições privativas do médico.


INTERFACE MEDICINA E ODONTOLOGIA NO ASPECTO LEGAL

As resoluções e normativas conjuntas


Por meio de pesquisa documental, obteve-se acesso a algumas normativas administrativas emitidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) que trazem redações relevantes ao tema. No ano de 1978, o CFM baixou a Resolução nº 852 que trazia uma abordagem a respeito de uma série de procedimentos que envolviam interação entre médicos e cirurgiões-dentistas e, consequentemente, controvérsias sobre a responsabilidade e atribuições destes profissionais quando executando procedimentos que abrangiam as duas áreas15. Nessa Resolução15, o inciso 5 trazia a seguinte redação:

"(...) 5 - É da competência exclusiva do médico o uso da via cervical infra-hioídea, bem como a prática de cirurgia estética, ressalvadas as estéticas funcionais do aparelho mastigatório;(...) "

Percebe-se então que, já em tempos mais longínquos, a cirurgia com finalidades estéticas era reservada ao profissional da Medicina, cabendo ao cirurgião-dentista cirurgias que impreterivelmente envolvessem função do aparelho mastigatório.

Em 1998, com o progresso da especialidade de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial (CTBMF) na Odontologia, verificou-se a necessidade de revogar a Resolução anteriormente citada, baixando uma nova norma16 (Resolução CFM nº 1536/1998), que atualizava alguns pontos importantes e citava tantos outros. Ademais, trazia uma nova estrutura à normativa e, em seu Art. 2º, alinhava:

"(...) Art. 2º - É da competência exclusiva do médico o tratamento de neoplasias malignas, neoplasias das glândulas salivares maiores (parótida, submandibular e sublingual), o acesso pela via cervical infra-hioídea, bem como a prática de cirurgia estética, ressalvadas as estéticas funcionais do aparelho mastigatório. (...)"

Apesar de trazer mais competências exclusivas aos médicos, tal Resolução16 manteve a posição de sua versão anterior acerca dos procedimentos de cunho cirúrgico-estéticos. Consequentemente, em razão de normatizar a especialidade de CTBMF, o CFO trouxe à tona a Resolução CFO 100/201017 que, em semelhança, trazia o mesmo Art. 2º, em concordância com a classe médica.

Enfim, o CFM, em conjunto com o CFO, redigiu uma última normativa a respeito do tema, a Resolução nº 1950/201018 que, apesar de elaborarem itens adicionais, mantiveram o Art. 2º intacto, não mudando nada sobre suas redações ou posições referentes às cirurgias plásticas de fins estéticos. Mesmo assim, nos anos conseguintes, houve um aumento significativo da propagação de trabalhos odontológicos envolvendo procedimentos estéticos, entre esses a bichectomia, nos veículos midiáticos e redes sociais.

Esse fenômeno levou CFM e CFO, em 3 de novembro de 2016, a realizarem reunião com fins de discutir temas pertinentes entre as duas áreas, como modulação hormonal, células tronco, toxina botulínica e bichectomia e, como registrado na Ata da reunião19, os representantes das duas categorias profissionais visaram argumentar sobre os assuntos supracitados e suas regulamentações, sendo observado, no tocante ao procedimento de bichectomia, o seguinte trecho:

"(...) Sobre a bichectomia, Dr. Levy Nunes (Presidente da Sociedade Brasileira de Toxina Botulínica e Implantes Faciais na Odontologia) afirmou que o procedimento com função estética-funcional está dentro das atribuições e competências dos dentistas. Afirmou que a bichectomia apenas por estética está sendo combatida pelo CFO. Dr. Carlos Vital (Presidente do CFM) sugeriu a elaboração de um documento a ser assinado pelo CFM e pelo CFO, com orientações gerais e esclarecendo todas as questões discutidas nesta reunião. (...)"

Verifica-se, portanto, que há uma aparente preocupação também por parte dos conselhos de classe em aplicar as normas que cingem o procedimento, bem como em regular novamente as competências e áreas de atuação de cada categoria profissional.

No mais, é necessário citar o parecer CRO-DF 021/201520, proferido pelo Conselho Regional de Odontologia do Distrito Federal, em meio a toda a controvérsia que rondava o procedimento de bichectomia e a elaboração de cursos dos mais diversos formatos para a capacitação de profissionais, e consequentemente a dúvida sobre a legalidade do procedimento que permeava sobre os profissionais que buscavam essa formação, em meados de 2015. Esse documento é utilizado por muitos desses cursos como uma justificativa e respaldo legal para a realização desses. No entanto, observando o disposto no item 12, temos:

"12. Por todo o exposto, esta Procuradoria Jurídica, entende que o Cirurgião-Dentista é o profissional competente para realizar o procedimento da bichectomia, quando este for indicado para a melhora do aparelho mastigatório, sendo que quando esta cirurgia for realizada para fins exclusivamente estéticos, a competência é do médico."

Observa-se que tal parecer20 consente com a legislação já citada. Apesar disso, a proliferação de cursos com ênfase estética é um acontecimento recorrente. Por outro lado, nota-se que muitos profissionais que não militam na área de cirurgia oral, vislumbram uma oportunidade de maiores ganhos em seus consultórios privativos e com isso há um aumento do risco do procedimento, pois como qualquer procedimento, requer uma curva de aprendizado que deveria ter sido concebida em cursos de maior carga horária e que estejam em anuência com a legislação vigente.

Do mesmo modo, mais recentemente, em 07 de março de 2016, o Conselho Regional de Medicina no Estado do Paraná aprovou e homologou o Parecer nº 2520/201621 reiterando o entendimento de que o procedimento de bichectomia é ato de competência exclusiva de médico:

"De acordo com a Resolução nº 1950/2010 o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal de Odontologia estabeleceram, conjuntamente, critérios para a realização de cirurgias das áreas de buco-maxilo-facial ecrânio-maxilo-facial. No artigo 2º está bem claro que: é da competência exclusiva do médico o tratamento de neoplasias malignas, neoplasias das glândulas salivares maiores (parótida, submandibular e sublingual), o acesso pela via cervical infra-hioídea, bem como a prática de cirurgia estética, ressalvadas as estéticas funcionais do aparelho mastigatório. Resta incontroverso que os procedimentos estéticos na região bucal ou peri-bucal são de exclusiva atuação do médico."


E EXTRAPOLANDO A ÁREA ADMINISTRATIVA

Quais repercussões podem existir nas esferas civil e criminal


O objetivo da excisão do corpo adiposo de Bichat é, ultimamente, melhoria na estética facial, obtendo contornos que destacam as angularidades das características faciais22. Como dito anteriormente, não existe, ainda, nenhuma norma vigente que conceda aos cirurgiões-dentistas a permissão para realizar procedimentos com finalidade exclusivamente estética, sendo somente essas aceitas quando envolvem função e estão adstritas ao campo estomatognático e mastigatório. Assim, a desobediência desses regulamentos que foram aqui apresentados torna o profissional vulnerável não só diante o Código de Ética Odontológica9, de forma já discutida, mas também em outras esferas, como a cível e a criminal. Observa-se o seguinte, no art. 282, do Código Penal Brasileiro (CP)23:

"Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêuticaArt. 282 - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa (...)"


O procedimento denominado bichectomia, quando visa única e exclusivamente correções estéticas, pode encaixar-se na condição acima, já que essas são claramente destinadas a médicos18. Trata-se de condição muito mais grave que circunda esse procedimento e cirurgiões-dentistas que se aventurarem a realizar tal ato estarão invadindo áreas restritas ou excedendo os limites de sua profissão, incorrendo em condutas tipificadas com infração penal, que podem levar a restrições de direitos e também da própria liberdade.

É importante também, ainda acerca de sanções penais, citar a figura exposta no Art. 129 do Código Penal Brasileiro23, que traz alinhado o crime de lesão corporal, como observado:

"(...) Lesão corporal

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano. (...)"


Tal tipificação criminal pode parecer distante da rotina de consultório odontológico. Porém, é relevante citar que, apesar de ser um procedimento no qual as complicações não são comuns22, alguns contratempos2,4,8,24 ainda são inerentes ao ato cirúrgico de excisão parcial da bolsa, ou bola de Bichat, sendo os mais frequentes: dor, edema, trismo e hematomas que podem durar por até dois meses.

O edema, por sua vez, costuma durar até três meses, com resultado final prometido para 3-6 meses. Pode ainda ocorrer infecção, dano ao ducto parotídeo (causando sialocele, complicação de difícil tratamento na área de cirurgia bucomaxilofacial) e dano aos ramos bucais do nervo facial (que possuem relação próxima à estrutura adiposa comentada), sendo esta última geralmente irreversível e paralisando parcialmente a face do paciente.

Essas complicações prospectivas guardam relação com o exposto no caput do artigo 129 acima citado e podem ser interpretadas por autoridades judiciais como conduta criminosa, não necessariamente precisando de dolo (intenção de causá-las) para a configuração do delito.

Numa hipótese de conturbada inter-relação profissional-paciente, este pode perfeitamente exigir corretivos penais na forma das infrações supracitadas. A configuração no art. 282, do exercício ilegal da Medicina ou extrapolação da atividade odontológica, nas cirurgias puramente estéticas de bichectomia não impede que outras punições, como as do art. 129 do Código Penal23 ou aquelas previstas na lei 4.324/196413 e no Código de Ética Odontológico sejam aplicadas.

E, além das responsabilidades criminal e ética que abrangem o cirurgião-dentista que se dispõe a realizar o procedimento de bichectomia com finalidade exclusivamente estética, a responsabilidade civil é presente e expressiva também, pois pode gerar lides e condenações de outra natureza. Para melhor entendimento, é necessário observar o nosso Código Civil25, em seu art. 186: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

No caso do cirurgião-dentista e sua responsabilidade civil, o dano advindo de tais condutas e que configura o ato ilícito está atrelado à sua atividade profissional, ou seja, os procedimentos realizados em sua rotina odontológica. O dano, uma vez causado, gera ao profissional a obrigação de repará-lo, caso o paciente reclame e seja vencedor em ação judicial indenizatória. A obrigatoriedade da indenização é respaldada no caput do art. 927 do mesmo Código Civil25, assim contemplado: "Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".

A reparação ou indenização em âmbito civil é, preponderantemente, financeira. Numa ação judicial civil o cirurgião-dentista, se condenado, pode ser compelido ao pagamento de três tipos de danos: materiais, morais e estéticos. Os danos materiais são referentes aos custos suportados pelo paciente (despesas com tratamentos, medicamentos, cirurgias, custas e despesas processuais, etc.) e/ou ao montante que a parte requerente (paciente) deixou de efetivamente receber (lucros cessantes ou diminuição de remuneração) devido ao dano causado pelo profissional.

O segundo tipo trata-se do dano moral, existente para expressar em valores pecuniários tudo aquilo que ultrapassa a seara contratual ou material e atinge os sentimentos do paciente, ou seja, a grandeza do sofrimento causado pela conduta indesejada danosa causada pelo cirurgião-dentista. Por último, o dano estético possui nome autoexplicativo, e imputa indenização às possíveis deformidades estéticas sofridas pelo paciente. Quanto a esse último caso, vale mencionar que sobrecorreção e assimetria do terço inferior da face são problemas contingentes da cirurgia de bichectomia26.

O desconhecimento da Lei ou de normativas das entidades de classe não é pretexto para elisão das possíveis sanções, punições ou indenizações que possam advir do simples ato de realizar a bichectomia. Sejam estas civis, criminais ou éticas, o profissional da Odontologia deve ter conhecimento dos regulamentos. O artigo 3º da Lei de Introdução do Código Civil27 traz o seguinte: "Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece" e, do mesmo modo, o artigo 52 do Código de Ética Odontológica9 afirma: "A alegação da ignorância ou a má compreensão dos preceitos deste Código, não exime de penalidade o infrator".


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante o exposto, analisando as normas éticas e legais vigentes, principalmente a Lei nº 5.081/1966, Lei nº 12.842/2013, Resoluções CFM nº 1950/2010 e CFO nº 100/2010 e a Consolidação de Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia (Resolução CFO nº 63/2005) pode-se afirmar que não é de competência do cirurgião-dentista a realização da bichectomia com finalidade exclusivamente estética, podendo a prática deste procedimento configurar-se como exercício ilegal da Medicina ou extrapolação da atividade Odontológica, frente ao Código Penal.

Além disso, as complicações peculiares desta cirurgia, quando ocorrem, podem trazer maiores encargos legais ou éticos ao profissional, o qual não pode alegar desconhecimento das legislações e normativas de classe existentes para suprimir suas responsabilidades criminal, civil e ética.


COLABORAÇÕES

VJ
Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.

MVC Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.

TSS Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.

RHAS Aprovação final do manuscrito; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.


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10. Brasil. Conselho Federal de Odontologia. Resolução CFO Nº 65 de 8 de abril de 2005. Aprova a Consolidação das Normas para Procedimentos nos Conselhos de Odontologia. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União; 2005.

11. Brasil. Conselho Federal de Odontologia. Resolução CFO Nº 176, de 06 de setembro de 2016. Revoga as Resoluções CFO-112/2011, 145/2014 e 146/2014, referentes à utilização da toxina botulínica e preenchedores faciais, e aprova outra em substituição. [acesso 2017 Jan 17]. Disponível em: http://cfo.org.br/servicos-e-consultas/ato-normativo/?id=2331

12. Brasil. Conselho Federal de Odontologia. Resolução CFO Nº 118/2012 de 01 de janeiro de 2013. Código de Ética Odontológica. [acesso 2016 Nov 7]. Disponível em: http://www.normaslegais.com.br/legislacao/resolucao-cfo-118-2012.htm

13. Brasil. Lei Nº 4324, de 14 de abril de 1964. Institui o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Odontologia, e dá outras providências. [acesso 2017 Abr 7]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4324.htm

14. Brasil. Lei Nº 12.842, de10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da Medicina. [acesso 2017 Abr 7]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12842.htm

15. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 852, de 4 de outubro de 1978. Brasília: Diário Oficial da União; 1978.

16. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 1536, de 11 de novembro de 1998. Estabelece critério para realização de cirurgia buco-maxilo-facial e revoga a Resolução CFM Nº 852/1978. Brasília: Diário Oficial da União; 1998.

17. Brasil. Conselho Federal de Odontologia. Resolução CFO Nº 100 de 18 de março de 2010. Baixa normas para a prática da Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofaciais, por cirurgiões-dentistas. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União; 2010.

18. Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM/CFO Nº 1950, de 10 de Junho de 2010. O Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal de Odontologia estabelecem, conjuntamente, critérios para a realização de cirurgias das áreas de buco-maxilo-facial e crânio-maxilo-facial. Brasília: Diário Oficial da União; 2010.

19. Brasil. Conselho Federal de Odontologia [homepage]. Relatório da reunião entre o CFM e presidente do CFO, realizada no dia 3 de novembro de 2016, na cidade de Brasília – DF. [acesso 2017 Jan 16]. Disponível em: http://cfo.org.br/wp-content/uploads/2016/11/atareuniao.pdf

20. Brasil. Conselho Regional de Odontologia do Distrito Federal. Parecer Jurídico CRO-DF 021/2015. Consulta, Bichectomia, Competência, Resolução Conjunta CFO e CFM. [acesso 2017 Mar 14]. Disponível em: https://imageshack.us/i/pnA7bdhmj e https://imageshack.us/i/poCqgdFej

21. Brasil. Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná. Parecer Nº 2520/2016. Cirurgia de bichectomia - profissional habilitado. Ementa: Intervenção plástica estética sobre a gordura das bochechas (bichectomia) -Atribuição exclusiva do médico. [acesso 2017 Abr 7]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/crmpr/pareceres/2016/2520_2016.pdf

22. Matarasso A. Managing the buccal fat pad. Aesthet Surg J. 2006;26:330-6. PMID: 19338917 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.asj.2006.03.009

23. Brasil. Decreto-Lei Nº 2.848. Código Penal Brasileiro. 07 de dezembro de 1940. Brasília: Diário Oficial da União; 1940.

24. Stuzin JM, Wagstrom L, Kawamoto HK, Baker TJ, Wolfe SA. The anatomy and clinical applications of the buccal fat pad. Plast Reconstr Surg. 1990;85(1):29-37. PMID: 2293733 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199001000-00006

25. Brasil. Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Diário Oficial da União; 2002.

26. Hasse FM, Lemperle G. Resection and augmentation of Bichat's fat pad in facial contouring. Eur J Plast Surg. 1994;17(5):239-42.

27. Brasil. Decreto-Lei Nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Brasília: Diário Oficial da União; 1942.










1. Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil
2. Escola Paulista de Direito, São Paulo, SP, Brasil
3. Faculdade de Odontologia de Piracicaba, Universidade Estadual de Campinas, Piracicaba, SP, Brasil

Instituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

Autor correspondente:
Ricardo Henrique Alves da Silva
Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, Área de Odontologia Legal, Universidade de São Paulo
Avenida do Café, s/n, - Monte Alegre
Ribeirão Preto, SP, Brasil - CEP 14040-904
E-mail: ricardohenrique@usp.br

Artigo submetido: 25/4/2017.
Artigo aceito: 23/9/2017.

Conflitos de interesse: não há.

 

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