ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175
Reconstrução tardia da região abdominal inferior e vulvar como tratamento complementar para sequelas pós-correção de extrofia vesical
Delayed reconstruction of the vulvar and lower abdominal regions as a complementary treatment for postsurgical sequelae of bladder exstrophy correction
RESUMO
Os portadores de malformações do complexo extrofia-epispádia, incluindo a extrofia vesical, podem se apresentar para correções de deformidades e sequelas abdominais após o tratamento primário das malformações urogenitais, realizado nos primeiros anos de vida e em múltiplos estágios. A correção secundária, com objetivos estéticos e funcionais, é normalmente realizada após o crescimento e definição da distribuição pilosa e adiposa, bem como após a finalização do tratamento urológico. Os aspectos psicológicos também devem ser considerados. Relatamos uma série de três casos de pacientes do sexo feminino, com antecedente de correção de extrofia vesical no período neonatal, apresentando múltiplas deformidades na região abdominal e vulvar, submetidas à reconstrução em nosso serviço.
Palavras-chave:
Extrofia vesical, Cirurgia Urogenital, Abdominoplastia, Cicatriz, Diástase.
ABSTRACT
Patients with malformations of the exstrophy-epispadias complex, including bladder exstrophy, may present for correction of deformities and sequelae in abdominal area, after primary treatment of urogenital malformations, performed early in life and in multiple stages. The secondary correction with aesthetic and functional goals is usually performed after growth and definition of hairy and fat distribution as well as after completion of urological treatment. Psychological aspects should also be considered. We report three female patients, with a history of bladder exstrophy correction in the neonatal period, presenting multiple deformities in the abdominal and vulvar areas, treated at our institution.
Keywords:
Bladder exstrophy, Urogenital surgery, Abdominoplasty, Scar, Diastasis.
INTRODUÇÃO
A extrofia vesical é uma das mais graves formas de malformação do trato gênito-urinário, sendo considerada a forma mais comum do chamado complexo extrofia-epispádia (CEE), representando cerca de 50 a 60% dos casos. Apresenta incidência aproximada de 1:50.000 nascidos vivos e prevalência de 2,3 meninos para cada menina 1-7. Trata-se de quadros extremamente complexos do ponto de vista reconstrutivo para os urologistas e cirurgiões pediátricos, normalmente sendo necessários múltiplos estágios, de acordo com os protocolos de cada grupo 1,2,3,6,7,8.
As múltiplas cirurgias com necessidade de mobilizações da pele e musculatura para a cobertura do defeito, bem como a deformidade primária em consequência à separação dos ossos púbicos e musculatura, resultam em alterações locais, com achatamento ou depressão na região abdominal inferior e vulvar 1,2,3,5-9.
A importância da correção funcional e a necessidade de um maior desenvolvimento físico para um tratamento definitivo, normalmente, colocam eventuais reconstruções secundárias com objetivo funcional e estético para pacientes com maior idade, associados a uma valorização da imagem corporal a partir da adolescência. As cicatrizes, a depressão na região infra umbilical e as deformidades da região vulvar podem gerar insatisfações, com eventual impacto na qualidade de vida 2,5-8,10.
Este artigo tem por objetivo relatar uma série de três casos de pacientes do sexo feminino, com antecedente de correção de extrofia vesical no período neonatal, submetidas à reconstrução da região abdominal e vulvar, no Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
CASO 1
Paciente feminino, 20 anos, nulípara, com antecedente de correção de extrofia vesical no período neonatal em outro serviço, sendo relatada a realização de 6 cirurgias. Do ponto de vista funcional, apresenta continência urinária e fecal, não refere dificuldades para manter relações sexuais e apresenta ciclos menstruais regulares. Apresentava deformidades na região abdominal inferior, com múltiplas cicatrizes obliquas e transversas, com depressão na região pubiana e malposicionamento lateral/inferior da cicatriz umbilical. Na região vulvar havia anteriorização do intróito, malposicionamento da comissura vulvar anterior com consequente área central sem pilificação. Os exames de imagem pré-operatórios não revelaram alterações significativas.
Foi realizada a correção das deformidades em tempo único através de uma abdominoplastia modificada associada à correção das deformidades vulvares. Foi utilizada uma incisão arciforme padrão e o descolamento foi realizado em plano supra-aponeurótico de maneira habitual. Observou-se a existência de diástase dos músculos retos abdominais, com cerca de 4cm em região supra-umbilical e 6cm em região infra-umbilical, como consequência da posição mais lateral nos ossos púbicos, que apresentavam uma diástase de cerca de 7 cm. A plicatura foi realizada da maneira habitual. A cicatriz umbilical foi mantida e reposicionada. O tecido cicatricial da região do monte de Vênus foi excisado, sendo realizados a mobilização medial-superior da área pilosa e o reposicionamento da comissura vulvar anterior. Mediante pedido da paciente, também foi realizada uma redução dos pequenos lábios. Não houve complicações ou intercorrências pós-operatórias.
Pré-operatório
Pós-operatório 6 meses
CASO 2
Paciente feminino, 18 anos, nulípara, com antecedente de correção de extrofia vesical no período neonatal, sendo relatada a realização de 4 cirurgias. Do ponto de vista funcional, apresenta continência urinária e fecal e ciclos menstruais regulares. Apresentava deformidades na região abdominal inferior, com múltiplas cicatrizes, com depressão na região pubiana e ausência da cicatriz umbilical. Apresentava também áreas de lipodistrofia na região anterior e flancos.
Foi realizada uma abdominoplastia modificada com ressecção do tecido excedente na região hipogástrica, programando-se uma cicatriz transversa final. Observado diástase dos músculos retos abdominais, com cerca de 3 cm em região supra-umbilical e 5 cm em região infra-umbilical, além de diástase dos ossos púbicos de cerca de 5 cm. A plicatura foi realizada da maneira habitual. Sendo realizada em associação a lipoaspiração e lipectomia, além de neo-onfaloplastia (com retalhos locais e fixação da derme ao plano músculo-aponeurótico). A reconstrução do monte de Vênus foi realizada com técnica de Poullard. Não houve complicações ou intercorrências pós-operatórias.
Pré-operatório
Pós-operatório 6 meses
CASO 3
Paciente feminino, 16 anos, nulípara, com antecedente de correção de extrofia vesical no período neonatal, sendo relatada a realização de 15 cirurgias, incluindo colostomia (em hipocôndrio direito) e ampliação vesical com derivação urinária externa (Mitrofanoff) na região vulvar direita. Apresentava deformidades na região abdominal inferior, com múltiplas cicatrizes - alargadas e deprimidas - mediana, paramediana, oblíqua em hipocôndrio direito e transversa supra-púbica. Evidenciava-se também depressão e alargamento na região do monte de Vênus e ausência da cicatriz umbilical.
Foi realizada revisão da cicatriz em hipocôndrio direito além de uma abdominoplastia vertical, programando-se uma cicatriz mediana final. Observado diástase dos músculos retos abdominais, com cerca de 4 cm em região supra-umbilical e 6 cm em região infra-umbilical, além de diástase dos ossos púbicos de cerca de 6 cm. A plicatura foi realizada da maneira habitual. Realizado neo-onfaloplastia com retalhos retangulares locais. Devido à presença da derivação urinária foi necessário modificar o padrão do tratamento na região do monte de Vênus, sendo realizada revisão da cicatriz mediana (técnica de Poullard) e pequena ressecção complementar de pele em região inguino-crural bilateral, tendo como objetivo não distorcer o trajeto da derivação urinária. Não houve complicações ou intercorrências pós-operatórias.
Pré-operatório
Pós-operatório 6 meses
DISCUSSÃO
A etiologia das malformações do CEE envolve um desenvolvimento exagerado da membrana cloacal, impedindo a migração medial e o desenvolvimento dos tecidos mesodérmicos que formariam as estruturas músculo-aponeuróticas da parede abdominal. Sem a adequada proteção, a membrana cloacal acaba se rompendo e, dependendo da fase do desenvolvimento embrionário, esta ruptura pode gerar desde uma epispádia balânica isolada até a extrofia de cloaca, a forma mais grave 2-6,8,11.
Como consequência, uma série de malformações ocorre, com rotação externa dos ossos da bacia e encurtamento/inferiorização dos ossos púbicos, diástase dos músculos retos abdominais, inferiorização da cicatriz umbilical e predisposição à formação de hérnias inguinais. As estruturas do períneo apresentam-se anteriorizadas com alterações na musculatura pélvica que podem predispor os pacientes à incontinência e ao prolapso. Nos casos de extrofia vesical, além da exposição de mucosa e diminuição na capacidade volumétrica, observa-se a ocorrência de refluxo vésico-ureteral. Nos pacientes do sexo masculino, observam-se alterações nos corpos cavernosos, com encurtamento e curvatura dorsal do pênis (chordee). Nas pacientes do sexo feminino observa-se normalmente um bifidismo do clitoris e alteração na comissura vulvar anterior, bem como uma maior ocorrência de úteros bicornos. 1,2,4-8,11
Os objetivos da reconstrução inicial dos pacientes portadores do CEE incluem: (1) a proteção e preservação do trato urinário inferior e superior, (2) obtenção de continência urinária socialmente aceitável e (3) reconstrução adequada do ponto de vista estético e funcional da região abdominal e genitália externa 1,3,5-8.
O foco inicial das equipes médicas responsáveis por estes pacientes deve ser o trato gênito-urinário, com prioridade para as reconstruções funcionais 3,5,6,7,8. Em crianças mais velhas e principalmente em adolescentes e adultos jovens, a insatisfação com o aspecto da região abdominal e genitália externa pode gerar um comprometimento psico-social e consenquentemente da qualidade de vida 2,3,5,6,8,11,12.
Em relação às correções com objetivo de melhora estética e funcional, algumas técnicas foram descritas. O uso de expansores foi considerado por alguns grupos como opção, podendo ser posicionados tanto em plano subcutâneo quanto intermuscular, sendo realizado posteriormente o avanço e/ou sobreposição dos retalhos 3,8,10. Joniau et al 7 destacam a importância de se manter e reposicionar a cicatriz umbilical, sempre que possível. A correção da região vulvar no monte de Vênus com a utilização de retalhos locais de base ínfero-lateral é descrita por Vanderbrink et al 6 e Cook et al 5, sendo destacada a importância de se aguardar até a definição da pilificação pubiana. Esses autores também descrevem a correção do clitóris bífido e o reposicionamento da comissura vulvar anterior com a utilização de retalhos locais. Cederna 9 descreveu a utilização da técnica de Poullard para as cicatrizes medianas. Cocke 2 relatou a correção das alterações abdominais através de uma abdominoplastia modificada, associada à correção das alterações vulvares, com a associação de cicatriz mediana infra-umbilical. Moura et al 12 descrevem a utilização da abdominoplastia convencional em um caso, com necessidade de reposicionamento de uma derivação urinária já existente (Mitrofanoff), abaixo da cicatriz umbilical original.
Eventuais reparações menores podem ser realizadas em crianças de maior idade, porém, na maioria dos casos deve-se aguardar um maior desenvolvimento físico para um tratamento mais definitivo, principalmente pela definição da pilificação pubiana e distribuição adiposa 1,2,6.
CONCLUSÃO
As alterações da região abdominal inferior e vulvar secundárias à correção da extrofia vesical podem necessitar de reconstrução funcional/estética objetivando uma melhora na qualidade de vida. As técnicas devem ser adequadas para a correção das deformidades identificadas em cada caso, considerando as inúmeras variações possíveis, tanto na apresentação das alterações do CEE, quanto nas sequelas e deformidades secundárias.
REFERÊNCIAS
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1. Mestre em Cirurgia. - Médico Assistente do Serviço de Cirurgia Plástica da ISCMSP
2. Doutor em Cirurgia. - Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica da ISCMSP
Daniel Francisco Mello
Rua Nanuque, 335, ap 84. Vila Leopoldina
05302-031 São Paulo/SP
mello.plastica@gmail.com
Artigo recebido:20/09/2013
Artigo aceito: 30/10/2013
Serviço de Cirurgia Plástica da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
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