ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175

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Original Article - Year2012 - Volume27 - Issue 1

RESUMO

A avulsão de couro cabeludo apresenta-se como lesão devastadora aos pacientes acometidos, nas esferas tanto estética e funcional como psicológica. O advento da microcirurgia e a realização do primeiro reimplante por Miller, em 1976, revolucionaram o manejo da avulsão de couro cabeludo, tornando o reimplante o tratamento de escolha sempre que possível. Com as técnicas atuais e a estrutura disponível nos centros especializados, faz-se possível o adequado manejo das avulsões de couro cabeludo por meio do reimplante microcirúrgico, obtendo-se resultados adequados e superiores às opções oferecidas previamente. Os autores abordam a reconstrução do couro cabeludo após avulsão de aproximadamente dois terços de sua extensão, causado por mordedura de cão em uma criança de 4 anos de idade, enfocando a cobertura da calota craniana com retalho microcirúrgico dos músculos grande dorsal e serrátil e as sucessivas cirurgias até a cobertura total da área de alopecia.

Palavras-chave: Couro cabeludo/cirurgia. Microcirurgia. Retalhos cirúrgicos.

ABSTRACT

Scalp avulsion is a devastating injury that affects the patient esthetically, functionally, and psychologically. The advent of microsurgery and the first reimplant performed by Miller in 1976 improved the treatment of scalp avulsion, making reimplant the first choice whenever possible. With modern techniques and the equipment available in specialized centers, scalp avulsion can be adequately treated using microsurgical reimplantation. This method achieves better results as compared to previously employed procedures. We report the reconstruction of the scalp of a 4-year-old boy after the avulsion of approximately two-thirds of the scalp area due to a dog bite. We focused on covering the skull with microsurgical latissimus dorsi and serratus muscles, and performing subsequent surgeries to completely cover the alopecic areas.

Keywords: Scalp/surgery. Microsurgery. Surgical flaps.


INTRODUÇÃO

A cobertura da calota craniana após avulsão do couro cabeludo, sem a possibilidade de reconstrução com retalhos locais, sempre foi um grande desafio para os cirurgiões plásticos, principalmente se considerarmos a idade do paciente, seu perímetro cefálico e a espessura da calota craniana.

A avulsão de couro cabeludo é entidade rara, porém com repercussões graves, tanto pelo mecanismo de lesão quanto pelas consequências psicológicas e sociais que dela advêm1,2. É mais comum em ambiente de trabalho, em consequência da falta de utilização de proteção adequada, e em pacientes do sexo feminino, pela presença mais comum de cabelos longos.

As forças envolvidas causam o arrancamento dos tecidos, que pode se limitar ao couro cabeludo ou atingir outras regiões, como fronte, sobrancelhas, orelhas e regiões inferiores da face, dificultando ainda mais os procedimentos de reconstrução.

Com relação à profundidade da avulsão, o mais comum é o arrancamento subgaleal, porém nos casos de maior força de tração observa-se avulsão subperiostal e mesmo de partes da calota craniana, não sendo incomum a associação com traumas cranioencefálicos1.

O tratamento definitivo sofreu grande mudança após o aperfeiçoamento e a padronização das técnicas de reimplante microcirúrgico. Em 1976, Miller et al.2 relataram o primeiro caso de reimplante microcirúrgico com sucesso, encorajando a utilização da técnica, que se tornou o tratamento de escolha. As demais opções terapêuticas eram reservadas para os casos de insucesso ou como procedimentos ancilares.

Até recentemente, a experiência mundial com reimplantes microcirúrgicos de couro cabeludo resumia-se a relatos isolados de casos, não ultrapassando 3 a 4 dezenas ou a pequenos grupos de estudos, não sendo possível padronização da sequência terapêutica e dos índices de sucesso3,4.

O sucesso é dependente de vários fatores, entre os quais tempo de isquemia, qualidade da porção avulsionada e experiência do cirurgião5. A probabilidade de insucesso coloca o cirurgião diante de uma situação de difícil solução, uma vez que frequentemente não há couro cabeludo remanescente e sim uma grande área de exposição da calota craniana para ser coberta.

Neste relato, após tentativa de reimplante sem sucesso, os autores realizaram transplante microcirúrgico do músculo grande dorsal com as quatro primeiras digitações do músculo serrátil para cobertura da calota craniana.


RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 4 anos de idade, vítima de mordedura por cão, resultando na perda de aproximadamente dois terços do couro cabeludo, incluindo todo o pericrânio.

O paciente deu entrada no hospital com o couro cabeludo conservado em hipotermia, porém com muitos detritos e lesões da gálea aponeurótica.

Após avaliação clínica e neurológica, o paciente foi levado ao centro cirúrgico, dez horas após o ocorrido, na tentativa de reimplante do couro cabeludo. Foi realizada microanastomose da artéria e da veia temporal superficial, com perfeita revascularização do couro cabeludo. No entanto, o retalho evoluiu com infecção e trombose arteriovenosa.

Após estabilização do estado geral do paciente, desbridamento dos tecidos desvitalizados e antibioticoterapia, a cobertura da calota craniana foi proposta por meio de transplante microcirúrgico do músculo grande dorsal com as quatro primeiras digitações do músculo serrátil (Figura 1).


Figura 1 - Retalho microcirúrgico do músculo grande dorsal e primeira digitação do músculo serrátil.



O transplante evoluiu com trombose venosa (Figura 2) e doze horas após a cirurgia o paciente foi submetido a revisão da anastomose, com realização de uma ponte de safena da veia toracodorsal para a jugular externa.


Figura 2 - Trombose venosa do retalho.



O retalho evoluiu bem, porém com necrose de aproximadamente 30% de sua extensão. A tábua externa da calota craniana foi submetida a raspagem óssea (Figura 3) e, após o crescimento do tecido de granulação, toda a área cruenta foi enxertada com pele parcial (Figura 4).


Figura 3 - Raspagem óssea da tábua externa da calota craniana.


Figura 4 - Enxerto de pele parcial.



Decorridos seis meses da alta hospitalar, o paciente foi submetido à primeira expansão de área pilosa remanescente, cobrindo um terço da área de alopecia (Figura 5). Após o intervalo de cinco anos, foram realizadas mais três expansões e consequente cobertura total da área de alopecia.


Figura 5 - Cobertura da calota após expansão da área pilosa.



DISCUSSÃO

O reimplante é o tratamento de escolha em lesões de escalpelamento e deve sempre ser considerado, mesmo no caso de couro cabeludo muito danificado. O reimplante está potencialmente indicado em todos os casos, pelos benefícios que proporciona. Os procedimentos específicos a respeito do pré, do intra e do pós-operatório são cruciais para o sucesso do reimplante e incluem, entre outros, tempo de isquemia e conservação do escalpo, estabilização hemodinâmica do paciente, limpeza e desbridamento local, e uso de antibióticos.

Quando o reimplante não é possível, o microcirurgião deve se esforçar não apenas para obter cobertura local, mas para atingir resultado estético atraente. O melhor substituto para o tecido do couro cabeludo é ele mesmo. Não há nenhum sítio doador, de outras partes do corpo, que irá se aproximar das mesmas qualidades do tecido do couro cabeludo. Grande variedade de técnicas tem sido usada para fechar esses defeitos, entre as quais incluem-se:

  • Fechamento primário - para pequenos defeitos, essa é a melhor opção. Defeitos < 3 cm de diâmetro podem ser fechados primariamente, mas isso varia, dependendo da localização. Se o fechamento primário é selecionado, qualquer defeito na gálea deve ser fechado em primeiro lugar com suturas absorvíveis, e as bordas da pele devem ser reaproximadas com sutura ou grampos.
  • Enxerto de pele e expansão de tecidos - a colocação de enxertos de pele pode fornecer um meio rápido e eficaz de fechamento do defeito. Enxertia de pele exige um leito adequadamente vascularizado e não é bem-sucedida se aplicada diretamente ao osso exposto. Pode-se lançar mão da trepanação óssea e aguardar granulação local. Pericrânio intacto é geralmente suficiente para suportar um enxerto de pele. A expansão do tecido geralmente fornece tecido amplo, com preservação da sensibilidade no couro cabeludo, e de cor, espessura e cabelo; no entanto, em última análise, requer um mínimo de dois procedimentos operatórios. Os pacientes devem entender de antemão que isso requer um compromisso de pelo menos um a dois anos2,3.
  • Retalhos locais - são os preferidos na reconstrução do couro cabeludo de pequeno a médio portes. Esses retalhos são compostos por pele, tecido subcutâneo e gálea, embora, ocasionalmente, pequenos defeitos superficiais possam ser adequadamente reconstruídos usando-se o plano subcutâneo. Em retalhos de grandes dimensões, a área doadora é coberta com enxerto de pele6.
  • Retalhos livres - antes do advento da microcirurgia, o fechamento dos defeitos do couro cabeludo cobrindo mais de 15% a 20% era praticamente impossível com um único procedimento. No entanto, como os retalhos livres envolvem pelo menos alguma morbidade do sítio doador2, devem ser reservados para situações apropriadas quando pele, retalhos locais, enxertia ou a cura pela intenção secundária não são opção. Também podem proporcionar melhor resultado e cicatrização em área de radiação prévia ou com infecção.


  • Existem várias técnicas para cobertura da calota craniana, devendo-se adotar o princípio de reconstruções mais simples para as mais complexas. Cada caso deve ser avaliado individualmente e a melhor proposta para reconstrução deve ser decidida levando-se em conta morbidade, recursos disponíveis e resultados estéticos aceitos.


    CONCLUSÕES

    Em função dos ganhos estético e psicológico incontestavelmente superiores aos de qualquer outra opção terapêutica, grandes esforços devem ser realizados no sentido de efetuar o reimplante microcirúrgico de couro cabeludo avulsionado.


    REFERÊNCIAS

    1. Nahai F, Hester TR, Jurkiewicz MJ. Microsurgical replantation of the scalp. J Trauma. 1985;25(9):897-902.

    2. Miller GD, Anstee EJ, Snell JA. Successful replantation of an avulsed scalp by microvascular anastomoses. Plast Reconstr Surg. 1976;58(2):133-6.

    3. Van Beek AL, Zook EG. Scalp replantation by microsurgical revascularization: case report. Plast Reconstr Surg. 1978;61(5):774-7.

    4. Buncke HJ, Rose EH, Brownstein MJ, Chater NL. Successful replantation of two avulsed scalps by microvascular anastomoses. Plast Reconstr Surg. 1978;61(5):666-72.

    5. Cheng K, Zhou S, Jiang K, Wang S, Dong J, Huang W, et aI. Microsurgical replantation of the avulsed scalp: report of 20 cases. Plast Reconstr Surg. 1996;97(6):1099-106.

    6. Svensson H, Njalsson T. Microsurgical replantation of partial avulsion of the scalp. Case report. Scand J Plast Reconstr Surg Hand Surg. 1995;29(2):177-80.










    1. Médico residente de Cirurgia Plástica da Santa Casa de Campo Grande, Campo Grande, MS, Brasil.
    2. Cirurgião plástico, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de Campo Grande, professor assistente de Anatomia do Departamento de Morfofisiologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil.
    3. Cirurgiã plástica, membro especialista da SBCP, membro do Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de Campo Grande, Campo Grande, MS, Brasil.

    Rafael Anache Anbar
    Av. Primeiro de Maio, 673 - Jardim São Bento
    Campo Grande, MS, Brasil - CEP 79004-620
    E-mail: raanbar@hotmail.com

    Artigo submetido pelo SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBCP.

    Artigo recebido: 2/4/2010
    Artigo aceito: 16/5/2010

    Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de Campo Grande, Campo Grande, MS, Brasil.

     

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