INTRODUÇÃO
Os pés representam somente 3,5% da superfície corporal total. No entanto, lesões provocadas por queimadura nesses locais apresentam enorme grau de morbidade, além de longos períodos de afastamento do paciente de suas atividades1,2.
Como o tratamento é de responsabilidade do cirurgião plástico, é necessário que esteja preparado para os diferentes tipos de lesões decorrentes de queimaduras.
O nível de sequela é determinado pelo grau de queimadura e sua profundidade, com influência direta do tratamento recebido na fase aguda da queimadura.
Com relação a sua morfologia, à inspeção estática o pé evidencia algumas características de normalidade:
na estática e sem apoio, deve permitir a visão, na região plantar, de três arcos (longitudinal interno, longitudinal externo e transverso anterior), bem como dos pontos principais de descarga do peso corporal na superfície plantar, caracterizados pelo espessamento da pele (Figuras 1 e 2);
Figura 1 - Áreas de apoio plantar.
Figura 2 - Arco longitudinal interno.
em ortostatismo, com toda a planta do pé em contato com o solo, o pé deve apoiar em três pontos principais (tuberosidade plantar do calcâneo, cabeça do primeiro metatarsiano e cabeça do quinto metatarsiano), apresentando-se o calcâneo discretamente em valgo e os dedos do pé em toda sua projeção plantar em contato com o solo (Figuras 3 e 4).
Figura 3 - Discreto valgo do calcâneo.
Figura 4 - Contato dos dedos com o solo.
No primeiro exame físico, ao tocar o paciente, o cirurgião sente o que deve fazer, tendo a percepção da falta de pele na palpação que realiza.
Deve-se ter em mente essas características de normalidade3,4 a partir do primeiro exame do paciente, para que se possa traçar desde o início um plano cirúrgico claro e objetivo. A cirurgia visa à devolução da funcionalidade do segmento, ficando a estética como um objetivo secundário.
Neste trabalho, são apresentados casos operados no Serviço de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina de Nova Iguaçu - Hospital da Plástica (Rio de Janeiro, RJ, Brasil), com diferentes técnicas para a correção das sequelas decorrentes de queimaduras nos pés.
MÉTODO
Foi realizada revisão anatômica e funcional do pé, com o objetivo de estabelecer parâmetros de normalidade a serem obtidos na correção das deformidades causadas por queimadura.
Foi desenvolvida uma classificação própria, dividindo as sequelas de queimadura do pé em três grupos distintos (Quadro 1). Foram adotados abordagem e tratamento individualizado para cada grupo, de acordo com a gravidade da lesão e o grau de comprometimento das estruturas envolvidas.
Foram selecionados três casos que ilustram com clareza as diferentes sequelas resultantes da queimadura e as técnicas possíveis de serem empregadas em seu tratamento.
Foram excluídos casos de queimadura em fase aguda.
No primeiro grupo, verifica-se insuficiência de cobertura cutânea na face dorsal, levando à retração dos dedos, variando do comprometimento de um único dedo ao envolvimento de todos os dedos na retração. O caso 1 exemplifica esse grupo.
O tratamento proposto consiste em liberação cirúrgica da retração cicatricial, fixação dos dedos em posição anatômica e autoenxertia de pele total. As áreas doadoras utilizadas preferencialmente são a região abdominal inferior e as regiões inguinais, comuns aos três grupos.
No segundo grupo, exemplificado pelo caso 2, enquadram-se pacientes apresentando as sequelas presentes no primeiro grupo, agravadas pelo encurtamento dos tendões extensores e subsequente dorsiflexão das articulações metatarsofalangeanas, porém sem rigidez destas.
O tratamento proposto consiste em liberação cirúrgica da retração cicatricial, alongamento dos tendões comprometidos utilizando a união de dois tendões adjacentes ou alongamento tendinoso no próprio tendão, fixação dos dedos em posição anatômica e autoenxertia de pele total.
Com essa técnica, obtêm-se dois tendões para os dedos 2, 3, 4 e 5, sendo um tendão para cada dois dedos. Uma vez que os dedos possuem a tendência de fazer juntos a extensão, nenhum déficit motor costuma ser observado.
Outra opção de alongamento tendinoso, quando o tendão retraído apresenta espessura suficiente, é a hemissecção tendinosa em níveis diferentes e a subsequente tenorrafia nos cotos resultantes.
Como no primeiro grupo, o curativo foi aberto após 5 a 7 dias para a inspeção do enxerto, sendo refeito e a tala gessada recolocada, permanecendo por um período de aproximadamente 10 a 12 dias.
O terceiro grupo compreende as alterações que ocorrem nos dois primeiros grupos, associadas à retração da cápsula articular. Além dos procedimentos adotados nos dois primeiros grupos, quando necessário são realizadas capsulotomia dorsal, liberação dos ligamentos colaterais com o reposicionamento da articulação e fixação em posição anatômica com a utilização de fio de Kirchner, que permanece por três semanas. O caso 3 exemplifica esse grupo.
RESULTADOS
Grupo 1
O grupo 1, caracterizado por retração cicatricial envolvendo um ou mais dedos, é exemplificado pelo caso de um paciente de 25 anos de idade, trabalhador da indústria siderúrgica, que apresentava queimadura com metal líquido que caiu sobre sua bota (Figura 5).
Figura 5 - Paciente do grupo 1. Em
A, aspecto da queimadura tratada com enxertia na fase aguda, apresentando grande brida longitudinal e evidente área de hipertrofia no dorso do pé. Em
B, ausência de pele na região metatarsofalangeana, com a marcação das incisões objetivando ganho longitudinal e transversal. Em
C, grande área cruenta aparente após realização das incisões planejadas, comprovando a necessidade de pele. Em
D, correção da hipertrofia do dorso, com devolução das comissuras interdigitais, apoio completo dos dedos ao solo e capacidade de flexão dos mesmos pela reposição da cobertura cutânea promovida pela autoenxertia.
Ao atendimento, o paciente queixava-se de dor na região queimada, sendo tratado com enxertia na fase aguda, apresentando grande brida longitudinal e evidente área de hipertrofia no dorso do pé, consequência da falta de pele para cobertura do local.
Ao exame físico, observava-se falta de pele na região metatarsofalangeana, com a marcação das incisões objetivando ganho longitudinal e transversal.
Havia grande área cruenta aparente após as incisões planejadas, comprovando a necessidade de pele. As incisões foram realizadas de forma irregular, para evitar a formação de bridas cicatriciais tardias.
Foi realizada correção da hipertrofia do dorso, com devolução das comissuras interdigitais, apoio completo dos dedos ao solo e capacidade de flexão dos mesmos pela reposição da cobertura cutânea fornecida pela autoenxertia.
Grupo 2
O grupo 2, caracterizado por retração cicatricial envolvendo um ou mais dedos, além de encurtamento dos tendões extensores, é exemplificado pelo caso de um paciente de 5 anos de idade, vítima de queimadura por óleo fervente em domicílio (Figura 6).
Figura 6 - Paciente do grupo 2. Em
A, observa-se expressiva retração cicatricial, em decorrência da não enxertia na fase aguda de queimadura. Observa-se desalinhamento dos dedos, sem contato destes com o solo, e afastamento do hálux. Em
B, visível ganho longitudinal do pé, com descida dos dedos e melhora do apoio plantar. Em
C, segunda cirurgia, para refinamento. Assim como no caso 1, com incisões quebradas e enxertia de pele para devolução das comissuras interdigitais e alinhamento dos dedos. Em
D, após a segunda cirurgia, foi obtido contato completo dos dedos com o solo e flexão completa destes.
A criança apresentava retração cicatricial maior quando comparada ao primeiro caso, em decorrência da não realização de enxertia na fase aguda de queimadura, evidenciando o efeito de falta maior de pele. Observava-se desalinhamento dos dedos, sem contato destes com o solo, além de afastamento do hálux.
Após procedimento, houve visível ganho longitudinal do pé, com descida dos dedos, melhora do apoio plantar, possibilitando o crescimento do paciente, porém ainda havia evidente necessidade de nova cirurgia.
A segunda cirurgia foi realizada para refinamento. Assim como no paciente 1, foram realizadas incisões quebradas e enxertia de pele para devolução das comissuras interdigitais e alinhamento dos dedos.
A cirurgia possibilitou, além do contato completo dos dedos com o solo, sua flexão completa, demonstrada na manobra com a mão do cirurgião.
Grupo 3
O grupo 3, caracterizado pelos mesmos aspectos dos grupos 1 e 2, além de retração da cápsula articular, é exemplificado pelo caso de um paciente de 3 anos de idade, vítima de queimadura por álcool em domicílio (Figura 7).
Figura 7 - Paciente do grupo 3. Em
A, observa-se grande brida, que se estendia desde o joelho até o dorso do pé, com comprometimento da articulação tibiotársica. Em
B, a brida foi interrompida com retalhos de transposição e enxertos de pele total retirados do abdome. Realizada fixação com fios de Kirchner do hálux em posição neutra, assim como do calcâneo com a tíbia, devolvendo o ângulo de 90 graus da articulação tibiotársica. Em
C, aspecto pós-operatório, evidenciando o apoio plantar obtido.
Nesse caso havia grande preocupação com a devolução do ângulo de 90 graus da articulação tibiotársica, comprometida por grande brida que se estendia desde o joelho até o dorso do pé. A brida foi interrompida com retalhos de transposição e enxertos de pele total retirados do abdome. Foi realizada fixação com fios de Kirchner do hálux em posição neutra, assim como do calcâneo com a tíbia, devolvendo o ângulo de 90 graus da articulação tibiotársica. Ao final obteve-se sucesso, com a paciente já em apoio plantar, deambulando, retornando a suas atividades e retomando o desenvolvimento sem atrasos.
DISCUSSÃO
Como visto nos casos apresentados, a sequela de queimadura no pé, quando grave, representa a amputação funcional do membro. Fica claro o conceito básico de que queimadura é igual a perda de pele.
O objetivo do tratamento é trazer a planta e os dedos para sua posição natural. O pé precisa pisar e o organismo precisa da pisada, que deve ser devolvida ao paciente o mais breve possível.
As técnicas cirúrgicas devem partir dos princípios básicos, de enxertia e retalhos, reservando-se a microcirurgia para casos mais complexos e profundos que esses primeiros não puderem resolver. É importante ressaltar que a área queimada não tolera descolamentos, e quando há perda de pele não adianta tensionar suturas, devendo então ser considerada a enxertia de pele.
Quando se comparam os pacientes dos grupos 1 e 2 deste trabalho (Figuras 5 e 6), constata-se a diferença entre um caso bem conduzido no primeiro atendimento e com tratamentos corretos na fase aguda de outro não tão bem manejado, levando a sequelas mais graves tardiamente. Assim, fica clara a importância do preparo da equipe que atende o paciente queimado, desde as complicações agudas até as tardias, representadas pelas sequelas.
CONCLUSÕES
A sequela de queimadura do pé ocorre com maior frequência na região dorsal, em decorrência da pele mais fina e menos resistente ao calor; além disso, normalmente, o paciente encontra-se em posição ortostática (apoio plantar) no momento da queimadura.
Essas lesões levam à diminuição da extensão da articulação tibiotársica e dorsoflexão das metatarsofalangeanas, eliminando o apoio plantar dos dedos.
Em geral, consegue-se liberação das lesões com enxertia cutânea; entretanto, às vezes são necessários alongamentos tendinosos.
Em caso de comprometimento maior de estruturas profundas, pode-se considerar o uso de retalhos à distância, microcirúrgicos ou não.
REFERÊNCIAS
1. Lima Jr. EM, Novaes FN, Piccolo NS, Serra MCVF. Tratado de queimaduras no paciente agudo. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2008.
2. Brown DI, Borschel GH. Manual de cirurgia plástica de Michigan. Rio de Janeiro: Di Livros; 2006.
3. Viladot PA. Dez lições de patologia do pé. São Paulo: Roca; 1986.
4. Pardini A, Souza G, Salomão O. Clínica ortopédica: atualização em cirurgia do pé e tornozelo. São Paulo: Guanabara Koogan; 2001.
1. Membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), cirurgião plástico atuando em clínica privada, professor assistente da Faculdade de Medicina de Nova Iguaçu - Hospital da Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2. Cirurgião geral, pós-graduando do Serviço de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina de Nova Iguaçu - Hospital da Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
3. Membro titular da SBCP, cirurgiã plástica atuando em clínica privada, professora assistente do Curso de Pós-Graduação em Cirurgia Plástica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
4. Membro titular da SBCP, diretor do Departamento de Ensino e Serviços Credenciados da SBCP, regente do Serviço de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina de Nova Iguaçu - Hospital da Plástica, diretor presidente do Hospital da Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
5. Especialista em Ortopedia e Traumatologia pela Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia, membro titular da Sociedade Brasileira de Medicina e Cirurgia do Pé, Umuarama, PR, Brasil.
Artigo submetido pelo SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBCP.
Artigo recebido: 14/1/2012
Artigo aceito: 7/3/2012
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Nova Iguaçu - Hospital da Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.