Open Access Revisão por pares

Case Report - Year 2025 - Volume 40Issue 1

A versatilidade do retalho supramaleolar lateral para a cobertura de lesões nomembro inferior: Série de casos

The Versatility of the Lateral Supramalleolar Flap in Covering Lower Limb Injuries: A Case Series

http://www.dx.doi.org/10.1055/s-0045-1812462

RESUMO

O retalho supramaleolar lateral, baseado na artéria peroneal, é um retalho fasciocutâneo utilizado para cobrir até 86 cm da região dorsal do pé e tornozelo. Recebe irrigação sanguínea da arcada anastomótica do tornozelo e é subutilizado em pacientes pediátricos para lesões no terço distal da perna. Este estudo retrospectivo avaliou 15 pacientes com feridas complexas em membros inferiores, tratados com esse retalho no Instituto José Frota. Todos os casos foram causados por acidentes de motocicleta e apresentaram bons resultados com complicações mínimas, comprovando a eficácia do retalho em lesões no pé e tornozelo. A idade dos pacientes variou entre 7 e 50 (média: 28,5) anos. As lesões ocorreram no dorso do pé (46,6%), antepé (26,6%), calcâneo (13,3%), lateral do pé (13,3%), terço distal da perna (20%) e tornozelo (13,3%). Um acompanhamento médio de 15 meses mostrou boa evolução em todos os pacientes. O número médio de desbridamentos pré-operatórios foi de 1,93 (variação: 1-4). Utilizamos a técnica padrão de dissecção do retalho fasciocutâneo. O retalho supramaleolar lateral é uma opção confiável, simples e segura para lesões nos membros inferiores, com resultados consistentes e fácil reprodutibilidade..

Palavras-chave: amputação traumática; ferimentos e lesões; ligamentos laterais do tornozelo; ligamentos; perna; retalhos cirúrgicos

ABSTRACT

The lateral supramalleolar flap is based on the perforating branch of the peroneal artery. This fasciocutaneous flap covers up to 8x6 cm on the dorsal foot and ankle. It receives blood supply from the ankle anastomotic arcade, and it is underutilized in pediatric patients for distal third leg injuries. The present retrospective study assessed 15 patients with complex lower limb wounds treated with the lateral supramalleolar flap at Instituto José Frota. All cases resulted from motorcycle accidents and showed good outcomes with minimal complications, proving the flap's effectiveness in foot and ankle injuries. Patients' ages ranged from 7 to 50 (mean: 28.5) years. Injuries were on the dorsum of the foot (46.6%), forefoot (26.6%), calcaneus (13.3%), lateral foot (13.3%), distal third of the leg (20%), and ankle (13.3%). Amean follow-up of 15 months showed stable coverage in all patients. The average number of preoperative debridements was 1.93 (range: 1-4). We used the standard fasciocutaneous flap dissection technique. The lateral supramalleolar flap is a reliable, simple, and safe option for lower limb injuries, with consistent outcomes and easy reproducibility.

Keywords: amputation, traumatic; lateral ligament, ankle; leg; lower extremity; surgical flaps; wounds and injuries


Introdução

O retalho supramaleolar lateral, descrito pela primeira vez no final da década de 1980 por Masquelet e Gilbert, representa um avanço importante na cirurgia reconstrutiva para defeitos complexos da extremidade distal, especialmente no pé e tornozelo.1 Inicialmente desenvolvido como um retalho fasciocutâneo baseado nos ramos perfurantes da artéria peroneal, seu uso evoluiu ao longo dos anos, proporcionando uma cobertura confiável de defeitos em áreas tradicionalmente desafiadoras.

Esse retalho rapidamente ganhou destaque devido à sua confiabilidade vascular, versatilidade e dissecção relativamente simples, tornando-se uma opção adequada para a cobertura de feridas traumáticas e condições crônicas que exigem grande área de reparo.1Nas últimas décadas, o retalho supramaleolar lateral tem se mostrado eficaz em fornecer cobertura durável e sensível em regiões como o dorso do pé e áreas maleolares, com menos complicações em comparação com retalhos microcirúrgicos livres.2

A base anatômica desse retalho-utilizando os ramos perfurantes da artéria peroneal, que se anastomosam com a artéria tibial anterior-permite que ele seja elevado como um retalho pediculado de fluxo reverso, preservando o fluxo sanguíneo crítico e garantindo a viabilidade tecidual.3 Estudos clínicos mostram que esse retalho pode cobrir defeitos de até 8 x 6 cm, e sua aplicação se expandiu para além dos traumas, incluindo ressecções oncológicas, úlceras diabéticas e outras feridas complexas.3

Embora amplamente utilizado em adultos, a literatura sobresua aplicação em casos pediátricos é escassa, com poucos estudos documentados. Essa subutilização na cirurgia reconstrutiva pediátrica oferece uma área potencial para pesquisas futuras, especialmente na exploração da utilidade do retalho para defeitos congênitos ou traumáticos em crianças.4

Objetivo

O objetivo deste estudo foi apresentar a experiência do Serviço de Cirurgia Plástica do Instituto José Frota (IJF), em Fortaleza, CE, no tratamento de lesões de membros inferiores com o retalho supramaleolar lateral, no período de janeiro a junho de 2024.

Materiais e Métodos

Este foi um estudo retrospectivo de todos os pacientes internados no Serviço de Cirurgia Plástica do IJF que foram submetidos à reconstrução de membros inferiores no período de janeiro a junho de 2024, devido à perda de cobertura cutânea, com o uso de retalho supramaleolar lateral.

Esses pacientes foram admitidos eletivamente após tratamento clínico/cirúrgico de suas feridas por outras especialidades, como ortopedia e cirurgia geral. As seguintes variáveis foram avaliadas: sexo, idade, características da perda de substância e presença de exposição óssea. Foram incluídos no estudo pacientes que foram tratados no Serviço de Cirurgia Plástica do IJF por feridas de membros inferiores durante o período do estudo e que foram submetidos à reconstrução com o retalho supramaleolar lateral. Os critérios de exclusão foram instabilidade hemodinâmica e pacientes não colaborativos.

Foram realizados desbridamentos das lesões dos membros inferiores por um ou mais métodos, visando obter uma ferida limpa, sem secreções ou áreas de necrose macroscópica, com menor tecido fibrótico.

Os participantes foram dispensados do consentimento informado por se tratar de um estudo retrospectivo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal (CAAE número: 84101424.6.0000.5047, parecer número: 1.167.841).

Técnica Cirúrgica

A técnica do retalho supramaleolar lateral, conforme descrita por Masquelet e Gilbert, é amplamente utilizada com um pedículo de base distal. Baseia-se na anastomose da arcada arterial ao redor do tornozelo com o ramo perfurante da artéria fibular, que emerge da membrana interóssea a cerca de 5 cm do maléolo lateral. Essa anastomose fornece ramos para a pele nessa região, que se conectam com o plexo que acompanha o nervo fibular superficial, constituindo o território septocutâneo da artéria tibial anterior.

Resultados

A amostra do estudo foi composta por 15 pacientes com feridas complexas de membros inferiores tratados com retalhos supramaleolares laterais. A idade média dos pacientes no momento do tratamento inicial foi de 28,5 (variação: 7 a 50) anos. Os homens representaram 86,6% da amostra (►Tabela 1). O número médio de desbridamentos cirúrgicos pré-operatórios foi de 1,93 (variação: 1-4).

Tabela 1 - Dados descritivos e locais de lesão dos pacientes
Gênero N %
Masculino 13 86,6
Feminino 2 13,3
Faixa etária (anos)
0-19 3 20
20-29 3 20
30-39 4 26,6
> 39 5 33,3
Local da lesão
Dorso do pé 7 46,6
Antepé 4 26,6
Calcâneo 2 13,3
Lateral do pé 2 13,3
Terço distal da perna 3 20
Tornozelo 2 13,3
Tabela 1 - Dados descritivos e locais de lesão dos pacientes

A etiologia da perda de substância dos membros inferiores em todos os casos foi acidente de motocicleta. A perda de substância foi mais comum no dorso do pé (46,6%), outros locais foram antepé (26,6%), calcâneo (13,3%), lateral do pé (13,3%), 1⁄3 distal da perna (20%) e tornozelo (13,3%) (►Figs. 1-3). Tivemos 6 fraturas presentes nos casos avaliados para o relato, com 7 pacientes apresentando exposição óssea e/ou tendinosa (►Fig. 4).

Fig. 1 - (A) Criança de 12 anos com exposição de dorso do pé esquerdo, principalmente à esquerda, devido a acidente de motocicleta; (B) utilização do retalho do supramaleolar lateral, pós-operatório imediato; (C) aparência aos 180 de dias pós-operatório; e (D) detalhe da cobertura da região lesada com o retalho supramaleolar lateral.

Fig. 2 - (A) Homem de 32 anos, com exposição de antepé lateral e amputação de 5° pododáctilo, devido a acidente de motocicleta; (B) Utilização do retalho do supramaleolar lateral, pós-operatório imediato; e (C) aparência aos 180 dias de pós-operatório.

Fig. 3 - (A) Homem de 28 anos, com exposição no antepé; e (B) aparência aos 180 dias de pós-operatório da utilização do retalho supramaleolar lateral.

Fig. 4 - (A) Criança de 7 anos, vítima de acidente de motocicleta com exposição tendínea no calcâneo no pós-operatório imediato; e (B) aparência aos 180 dias de pós-operatório da utilização do retalho supramaleolar lateral.

As complicações cirúrgicas incluíram epidermólise em quatro casos. Foi necessário ser feito um desbridamento cirúrgico ou químico com curativo nesses casos. Nos demais casos, o retalho foi adequado para cobrir a lesão, possibilitando um bom resultado estético e funcional.

Discussão

Lesões em regiões distais dos membros inferiores podem expor áreas anatômicas nobres e resultar em significativa perda funcional, comprometendo a deambulação e outras atividades dependentes do bom funcionamento dessa região. A maioria das lesões de membro inferior foi ocasionada por acidentes com motocicletas; das 15 cirurgias realizadas em nosso estudo, todas tiveram a mesma etiologia. A escolha do retalho cirúrgico para a cobertura dessas lesões é, portanto, crucial, considerando tanto os aspectos estéticos quanto funcionais.

Para a cobertura de partes moles em lesões traumáticas nas porções distais dos membros inferiores, como dorso do pé e tornozelo, os retalhos microcirúrgicos são, frequentemente, a primeira opção. Com o aprimoramento das técnicas cirúrgicas, eles têm se tornado cada vez mais utilizados, proporcionando resultados estéticos e funcionais superiores, mesmo com retalhos de tamanhos menores. Na ausência de uma equipe experiente em microcirurgia ou em casos de falha no transplante do retalho livre microcirúrgico, os retalhos locais pediculados, como os fasciocutâneos baseados em perfurantes da artéria peroneal, são preferidos.

Os retalhos fasciocutâneos do território supramaleolar lateral são menos utilizados que os do território supramaleolar medial,4 mas constituem uma alternativa versátil e eficaz para lesões de difícil reparo nos membros inferiores. O retalho sural reverso também é outra opção importante utilizada para a reconstrução de defeitos de partes moles na perna distal, tornozelo e defeitos do pé. No entanto, o retalho supramaleolar lateral, que compartilha certos fatores comuns com o retalho sural reverso, permanece subutilizado. Ambos os retalhos são fasciocutâneos, podem ser isolados com pedículo fascial, são baseados em ramos perfurantes da artéria fibular, contêm um nervo cutâneo importante em sua substância, são de base distal, têm comprimento pedicular adequado, oferecem uma grande área de superfície da pele e não sacrificam uma artéria principal do membro correspondente.

As vantagens do retalho supramaleolar lateral sobre o retalho sural reverso incluem a possibilidade de realizar a cirurgia com o paciente em decúbito dorsal e ter um suprimento vascular anterógrado quando usado em defeitos proximais. Por outro lado, as desvantagens do retalho supramaleolar lateral em comparação ao retalho sural reverso são o menor volume, a área de pele limitada, o aumento da área de anestesia sobre o dorso do pé e a maior incidência de congestão venosa.

Em 2011, Batista demonstrou a eficácia do retalho supramaleolar lateral na cobertura de lesões em diversas regiões do pé, perna distal e tornozelo, em casos de pequenas e médias proporções.3 Além disso, esses retalhos possuem vantagens como fácil reprodutibilidade, dissecção simples, curva de aprendizado curta e não interferem na confecção de outros retalhos. Em uma série de casos conduzida por Concha et al.5 em 2022, 13 pacientes com lesões traumáticas em regiões variadas, como dorso do pé e tornozelo (lateral, medial e anterior), foram tratados. Apenas um paciente evoluiu com necrose completa, devido à proximidade do local da área doadora, onde foi realizado um retalho de avanço para o tornozelo lateral. Nos demais casos, houve fixação satisfatória do retalho e bons resultados estéticos. Concluiu-se que esse retalho oferece versatilidade satisfatória, sendo eficaz para pacientes de qualquer idade, apesar de não ser o mais indicado para a região do tendão do calcâneo.

Na nossa série de casos, observamos epidermólise em quatro pacientes, exigindo desbridamento cirúrgico ou químico, mas sem ocorrência de necrose, seja parcial ou total. Destaca-se que as comorbidades prévias dos pacientes não foram documentadas, pois todos foram admitidos no serviço de emergência após acidentes motociclísticos. O seguimento dos pacientes foi de 180 dias, e todos apresentaram boa evolução do retalho, com resultados estéticos e funcionais satisfatórios. O uso desse tipo de retalho requer especialização profissional e uma estrutura hospitalar adequada, dado que envolve práticas complexas de reconstrução de tecidos moles. Com base na nossa experiência e nas evidências disponíveis na literatura, consideramos que o retalho supramaleolar lateral é uma opção eficaz e relativamente simples para a cobertura de fraturas expostas do pé e tornozelo. Essa técnica não demanda treinamento avançado em microcirurgia e proporciona resultados consistentes quando realizada por cirurgiões plásticos experientes.

Conclusão

O retalho supramaleolar lateral demonstrou ser uma opção eficaz para a cobertura de áreas com exposição óssea nos membros inferiores. Esta técnica apresenta versatilidade, facilidade de aplicação e um baixo índice de complicações, destacando-se como uma escolha valiosa no manejo de tais lesões.

REFERENCES

1. Masquelet AC, Gilbert A. Retalho supramaleolar lateral. In: __________. Atlas colorido de retalhos na reconstrução dos membros. Rio de Janeiro: Revinter; 1997:148-157

2. Saad FT, Almeida KGd, Almeida PYNGd, Silva TFd, Balbuena MB, Coutinho BBA, et al. Reconstrução de dorso do pé com retalho supramaleolar lateral de fluxo reverso em menor de 4 anos de idade. Rev Bras Cir Plást 2015;30(02):324-328. Doi: 10.5935/2177-1235. 2015RBCP0154

3. Batista JC. Retalho supramaleolar de fluxo reverso: aplicações clínicas. Rev Bras Cir Plást 2011;26(01):140-146. Doi: 10.1590/ S1983-51752011000100025

4. Quirino AC, Viegas KC. Fasciocutaneous flaps for covering foot and ankle injuries. Rev Bras Ortop 2014;49(02):183-188. Doi: 10.1016/ j.rboe.2014.03.004

5. Concha JM, Camaro PL, David A, Concha C. The lateral supramalleolar flap for the treatment of open foot and ankle fractures. Orthoplastic Surgery 2022;9:80-85. Doi: 10.1016/j.orthop. 2022.07.006











1. Serviço de Cirurgia Plástica, Instituto Doutor José Frota (IJF), Fortaleza-, CE,Brasil
2. Curso de Medicina, Universidade de Fortaleza, -, Fortaleza, CE, Brasil

Ensaios Clínicos

Não.

Suporte Financeiro

Os autores declaram que não receberam suporte financeiro de agências dos setores público, privado ou sem fins lucrativos para a realização deste estudo.

Endereço para correspondência Dayvid Christian Rodrigues Pereira, Serviço de Cirurgia Plástica, Instituto Doutor José Frota (IJF), - Fortaleza, CE, Brasil (e-mail: dayvid0309@hotmail.com sarahcruzsantana@gmail.com).

Article received: February 12, 2025.
Article accepted: July 14, 2025.

Conflito de Interesses

Os autores não têm conflito de interesses a declarar.