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Case Report - Year2022 - Volume37 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2022RBCP.621-pt

RESUMO

Introdução: Calcinose cutânea é uma doença rara caracterizada por precipitações de cristais de cálcio no tecido cutâneo. Pode ser localizada ou generalizada, distrófica, metastática, iatrogênica ou idiopática.
Relato do Caso: Paciente feminina, 66 anos, vítima de queimaduras de segundo e terceiro graus por fogo em abdome inferior e coxas aos 8 anos de idade atingindo 25% de superfície corpórea. Após 58 anos, recebeu o diagnóstico de calcinose distrófica na cicatriz da queimadura, contemplado através de biópsia e análise histopatológica. Submetida a exérese cirúrgica associada a rotação de retalho dermogorduroso de abdome superior e enxertia de pele total para correção de cicatrizes.
Conclusão: Embora a melhor escolha terapêutica ainda não seja clara, o tratamento de complicações que podem culminar em incapacidade funcional é fundamental para reduzir a morbidade e aumentar a qualidade de vida do paciente.

Palavras-chave: Calcinose; Queimaduras; Cicatrização; Queloide; Doenças da pele e do tecido conjuntivo.

ABSTRACT

Introduction: Cutaneous calcinosis is a rare disease characterized by the precipitation of calcium crystals in the skin tissue. It can be localized, generalized, dystrophic, metastatic, iatrogenic, or idiopathic.
Case Report: Female patient, 66 years old, victim of second and third-degree burns by fire in the lower abdomen and thighs at 8 years old, reaching 25% of the body surface. After 58 years, she was diagnosed with dystrophic calcinosis in the burn scar, which was confirmed through biopsy and histopathological analysis. She underwent surgical excision associated with rotation of the upper abdomen dermal-fat flap and total skin graft for scar correction.
Conclusion: Although the best therapeutic choice is still unclear, treating complications leading to functional disability is essential to reduce morbidity and increase the patient's quality of life.

Keywords: Calcinosis; Burns; Wound healing; Keloid; Skin and connective tissue diseases.


INTRODUÇÃO

Calcinose cutânea é uma doença rara caracterizada por precipitação de cristais de cálcio no tecido cutâneo1. De acordo com o balanço fosfo-cálcio, pode ser classificada em distrófica, metastática, iatrogênica ou idiopática1.

A forma distrófica é a mais comum1-3, não há alterações laboratoriais dos níveis séricos de cálcio e fósforo nem envolvimento visceral. O tipo metastático ocorre em tecidos normais como resultado do aumento dos níveis séricos de cálcio e/ou de fosfato4. A manifestação iatrogênica decorre de extravasamento intravenoso de gluconato de cálcio e da deposição de sais de cálcio na pele, subsequente à eletromiografia ou eletroencefalografia5. Já a idiopática ocorre na ausência de alterações teciduais e metabólicas4.

A calcinose pode ser localizada (dano tecidual por trauma, inflamação, infecção, necrose ou neoplasia) ou generalizada (associada a colagenoses, genodermatoses e alguns tipos de paniculites)2.

RELATO DO CASO

Paciente A.G.C., feminina, 66 anos, natural de Marau - Rio Grande do Sul. Vítima de queimadura com fogo em abdome e coxas aos 8 anos de idade, atingindo, na época, aproximadamente 25% de superfície corporal, com queimaduras de segundo e terceiro graus. Permaneceu aproximadamente 3 meses internada na cidade de origem, sendo submetida a debridamentos seriados e enxertos de pele parcial.

No primeiro ano após a queimadura, já apresentava retrações cicatriciais em membros inferiores, com dificuldade de abdução e deambulação, tendo desenvolvido encurtamento de perna esquerda. Em 2005, a paciente referiu o aparecimento de lesões endurecidas semelhantes a cartilagem em meio a áreas cicatriciais das queimaduras da infância, de início somente em coxa esquerda e evoluindo logo em seguida para o abdome inferior.

Em avaliação dermatológica em novembro de 2018, notou-se a presença de lesões ulceradas com material córneo-ceratótico em seu interior, eritema e enduramento importante das bordas das lesões em abdome inferior e coxa esquerda. Devido à suspeita de úlcera de Marjolin, optou-se por biópsia das lesões.

O exame anatomopatológico de janeiro de 2019 apontava como achados histológicos a hiperceratose, hipergranulose e infiltrado linfoplasmocitário em derme papilar associado a crosta fibrinoleucocitária e fibrose dérmica, concluindo o exame com ausência de sinais de malignidade e diagnóstico de calcinose distrófica.

Encaminhada ao serviço de cirurgia plástica do Hospital Universitário Evangélico Mackenzie em setembro de 2019 para realização de exérese cirúrgica de calcinoses que causavam extremo desconforto estético e funcional para a paciente. O procedimento cirúrgico foi realizado em novembro do mesmo ano.

Na região de abdome inferior, optou-se pela realização de tratamento das sequelas de queimadura em conjunto com a ressecção de fibrose cicatricial e das áreas de calcinose com rotação de retalho dermogorduroso de abdome superior. Já na região lateral de coxa esquerda, optou-se por enxertia de pele total proveniente do retalho abdominal (Figuras 1 a 5).

Figura 1 - Aspecto pré-operatório.

Figura 2 - Lesão cartilaginosa de coxa esquerda e lesão cartilaginosa de abdome inferior.

Figura 3 - Aspecto intraoperatório.

Figura 4 - Aspecto 1 dia de pós-operatório.

Figura 5 - Aspecto 10 meses de pós-operatório.

O material ressecado durante o procedimento cirúrgico de região de abdome inferior e coxa esquerda foi enviado para exame de anatomopatológico, com resultados de esclerose hipertrófica associada a inflamação crônica e aguda, além de áreas de ossificação metaplásica, com ausência de malignidade em ambas as peças.

Os exames laboratoriais pré-operatórios evidenciaram cálcio, fósforo, CPK, aldolase, paratormônio, bilirrubina total, direta e indireta, ureia, creatinina e tempo de protrombina dentro dos valores de normalidade. A vitamina D encontrava-se abaixo dos valores de referência. O fator antinuclear, os anticorpos anticentrômeros e o antiescleroderma (SCL 70) foram não reagentes, com antiSS A (RO) e antiSS B (LA) negativos.

O hemograma apontou hemoglobina, leucócitos e plaquetas dentro dos valores de referência. O hematócrito encontrava-se abaixo dos valores de referência e os bastões, acima. A urina de 24 horas mostrou cálcio dentro dos valores de normalidade e volume urinário de 1.200,00 ml.

Ao eletrocardiograma, taquicardia sinusal com FC de 102 bpm. O raio-X de tórax mostrou transparência normal dos pulmões, seios e cúpulas frênicas livres e área cardíaca dentro dos padrões da normalidade. Na radiografia de coxa esquerda houve evidências de rarefação óssea difusa, sinais de coxartrose severa, com deformidade em achatamento e esclerose na cabeça femoral. A radiografia da bacia também evidenciou rarefação óssea difusa, além de luxação coxofemoral esquerda, com deslocamento do fêmur, superiormente, neoarticulando-se com o íleo e redução articular coxofemoral direita.

DISCUSSÃO

A etiologia da calcinose ainda é indefinida, com várias hipóteses descritas5. Apesar das concentrações de cálcio e fosfato nos tecidos serem próximas dos seus níveis de saturação, não é comum ocorrer deposição de sais, graças a mecanismos locais inibitórios. A calcificação pode surgir por alguma alteração tecidual, mesmo com níveis séricos normais. Mudanças na estrutura do tecido, redução da vascularização, hipóxia, alterações próprias do envelhecimento e predisposição genética podem estar envolvidos no processo de formação de depósitos de cálcio na pele5.

Para o diagnóstico da patologia, o exame mais sensível é a cintilografia óssea2 por meio da demonstração dos depósitos de cálcio nos tecidos. Entretanto, é o exame anatomopatológico que confirma o diagnóstico2.

A calcinose pode causar atrofia muscular, contraturas articulares e úlceras cutâneas com episódios recorrentes de extrusão de material cálcico e purulento da lesão2,6. Caso o diagnóstico seja tardio, tais complicações podem levar a quadros dolorosos e debilitantes, resultando em incapacidade funcional2,6.

O tratamento da calcinose distrófica tem resultados variáveis2,3,7. Essa dificuldade na sua abordagem decorre da baixa incidência da afecção e da história natural variável e pouco previsível. Portanto, até o presente momento, não existe uma terapêutica reconhecida universalmente6.

São descritas como possíveis terapias a prescrição de corticoesteroides, diltiazem, colchicina, probenecide, hidróxido de alumínio, bifosfonatos e antifator de necrose tumoral, além dos procedimentos de exérese cirúrgica2,3,6,7. Áreas pequenas foram tratadas com sucesso com uso de varfarina, laser de dióxido de carbono, ceftriaxona e imunoglobulina intravenosa8; já nos casos associados a doenças do tecido conjuntivo e calcifilaxia, o sódio tópico e o tiossulfato têm sido eficazes.

Nos casos mais extensos associados a queimaduras, as áreas de calcinose foram tratadas através da intervenção cirúrgica, desde a simples remoção do depósito de cálcio com pinça, uso de enxertos até a aplicação de triancinolona intralesional8. Os resultados dessas terapias são contraditórios e benefícios consistentes não têm sido relatados6.

No caso aqui descrito, a equipe optou por não iniciar terapêutica medicamentosa devido à ausência de comprometimento sistêmico da paciente e por suas lesões cutâneas terem se mantido estáveis durante o acompanhamento.

CONCLUSÃO

A calcinose apresenta-se como afecção cutânea pouco prevalente, com mecanismos subjacentes não totalmente compreendidos. Há pouca descrição na literatura de calcinose como complicação de queimaduras3. Embora a melhor escolha terapêutica ainda não seja clara, o tratamento de complicações que possam culminar em incapacidade funcional é fundamental para reduzir a morbidade e aumentar a qualidade de vida do paciente. Dessa forma, o presente estudo serve como referência para futuros trabalhos, objetivando maior elucidação do processo fisiopatológico desta correlação.

REFERÊNCIAS

1. Rosmaninho A, Carvalho S, Lobo I. Photoletter to the editor: Calcinosis cutis in a burn scar. J Dermatol Case Rep. 2015;9(4):120

2. Ferrara FS, Souza BC, Alvarenga CO, Vidigal MR, Tebcherani AJ, Sanchez APG. Calcinose cutânea distrófica em adolescente: relato de caso. Rev Med (São Paulo). 2012;91(3):215-8.

3. Lee HW, Jeong YI, Suh HS, Lee MW, Choi JH, Moon KC, et al. Two cases of dystrophic calcinosis cutis in burn scars. J Dermatol. 2005;32(4):282-5.

4. Fabreguet I, Saurat JH, Rizzoli R, Ferrari S. Calcinose cutanée associée aux connectivites. Rev Med Suisse. 2015;11(466):668-72.

5. Carocha APG, Torturella DM, Barreto GR, Estrella RR, Rochael MC. Calcinose cútis distrófica universal associada a lúpus eritematoso sistêmico: um caso exuberante. An Bras Derm. 2010;85(6):883-7.

6. Castro TCM, Yamashita E, Terreri MTRA, Len CA, Hilário MOE. Calcinose na infância, um desafio terapêutico. Rev Bras Reumatol. 2007;47(1):63-8.

7. Shinjo SK, Souza FHC. Atualização na terapêutica da calcinose em dermatomiosite. Rev Bras Reumatol. 2013;53(2):211-4.

8. Lockwood KA, Oliphant T. Dystrophic calcinosis cutis within burns, successfully treated with excision and secondary intention wound healing. Clin Exp Dermatol. 2018;43(5):648-9.











1. Hospital Universitário Evangélico Mackenzie, Curitiba, PR, Brasil
2. Faculdades Pequeno Príncipe, Curitiba, PR, Brasil

Autor correspondente: Mariana Cionek Simões Rua Professora Ephigenia do Rego Barros, 63, Bairro Mercês, Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80730-450, E-mail: mari_cionek@hotmail.com

Artigo submetido: 12/08/2021.
Artigo aceito: 13/12/2021.

Conflitos de interesse: não há.

 

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