INTRODUÇÃO
A cutis verticis gyrata (CVG) é uma doença que se
caracteriza por crescimento e espessamento excessivo da pele do couro cabeludo,
causando formação de sulcos que se assemelham aos giros do
córtex cerebral1. Os
indivíduos acometidos demonstram dobras visíveis, sulcos ou vincos na
superfície da parte superior do couro cabeludo, que podem variar em
quantidade entre 2 a 10. Com consistência tipicamente esponjosa/macia,
normalmente afeta as regiões parietal e occipital do crânio,
porém, em casos mais raros, pode acometer todo o couro cabeludo.
A condição foi relatada pela primeira vez por Jean-Louis-Marc Alibert,
em 1837, que a chamou de cutis sulcata. Em 1907, foi nomeada por
Paul Gerson Unna que lhe atribuiu outras denominações como
síndrome de Robert-Unna, couro cabeludo bulldog, pele corrugada,
cutis verticis plicata e pachydermia verticis gyrata. Sua
etiologia ainda é desconhecida, o que se sabe é que a
condição não é exclusivamente congênita. Existem
duas classificações de CVG: primária e
secundária2,3.
A forma primária pode ser subdividida em essencial e não essencial. A
forma primária essencial não está associada com
alteração neurológica e/ou oftalmológica, ocorrendo
apenas a formação excessiva de dobras de pele no couro
cabeludo3,4; surge na puberdade e exclusivamente em homens; o
tipo de herança é incerta. A CVG não essencial corresponde a
0,5% dos pacientes com déficit cognitivo; paralisia cerebral, epilepsia,
catarata e amaurose podem estar presentes2.
As formas secundárias de CVG são representadas mais frequentemente por
dermopatias, como: paquidermoperiostose, acromegalia, nevo cerebriforme
intradérmico, etc. Pode também ser decorrente de uma gama de desordens
ou do uso exacerbados de certos fármacos que imitam a acromegalia, nevo
melanocítico e processos inflamatórios.
A alopecia pode ocorrer ao longo do tempo em que o couro cabeludo engrossa, embora
o
cabelo em qualquer sulco permaneça normal.
Em crianças, os casos de CVG, independentemente da sua etiologia, são
muito raros, e os poucos relatos devem-se à forma primária
não-essencial, associação com síndromes genéticas
e casos familiares. Na literatura médica mundial, não existe nenhum
relato de uma criança com CVG primária essencial. Devido à
raridade (aparente) da doença, as pesquisas permanecem limitadas.
RELATO DE CASO
Paciente masculino A.F.D.S, 30 anos, natural do Rio de Janeiro. Queixava-se da
aparência inestética do formato do seu crânio devido às
“dobras” que o mesmo apresentava, além da necessidade constante
do uso de boné para atenuar o constrangimento que sentia devido aos olhares
de terceiros ao caminhar pelas ruas. Informou que procurou outros serviços de
cirurgia plástica anteriormente, porém não foi submetido a
procedimento cirúrgico por motivos diversos.
Ao exame físico, durante a palpação observou-se que a
região parietal/temporal direita e occipital do crânio apresentava
sulcos e hipertrofia de pele encobertos pelo cabelo, respeitando as linhas de
implantação capilar (Figura 1).
Figura 1 - Pré-operatório.
Figura 1 - Pré-operatório.
Paciente não se queixava de dor ou sintomas compressivos. O procedimento
cirúrgico foi realizado sob anestesia geral venosa + sedação.
Sendo realizada tricotomia de toda cabeça e posterior
demarcação da área a ser removida (Figura 2).
Figura 2 - Marcação e ressecção da lesão.
Figura 2 - Marcação e ressecção da lesão.
Foi utilizada técnica para ressecção de toda lesão com
margem de segurança de 0,5cm tanto na espessura quanto na profundidade.
Durante a incisão, observou-se lesão de características
bastante heterogêneas, variando o grau de infiltração em calota
craniana. Em determinadas áreas da região parietal, se fez
necessário a retirada de parte do periósteo.
Apesar da dificuldade de hemostasia, a lesão foi excisada por completo e em
uma única peça com 15x11cm, sendo o produto da ressecção
encaminhado para análise anatomopatológica, sendo confirmada CVG
(Figura 3).
Figura 3 - Peça excisada.
Figura 3 - Peça excisada.
Após a excisão, observou-se grande área de cruenta e de
superfície irregular. Em seguida, foi realizado curativo com gaze não
aderente de petrolato, uso de terapia por pressão negativa (@VAC),
utilização de pasta periestoma para melhor vedação
(Figura 4).
Figura 4 - A. Área cruenta em região parietotemporal
direita após ressecção da lesão; B.
Aplicação de curativo por pressão negativa.
Figura 4 - A. Área cruenta em região parietotemporal
direita após ressecção da lesão; B.
Aplicação de curativo por pressão negativa.
Paciente foi reabordado cirurgicamente no 3° dia pós-operatório,
sendo realizada revisão da hemostasia e troca do @VAC, além da
realização de tração cutânea com pontos em
“U” de fio nylon 3-0 para aproximação dos bordos da
ferida (Figura 5).
Seguiu-se com essa programação cirúrgica por 3 semanas,
realizando-se troca de curativo a vácuo a cada 3-5 dias até obtermos
tecido de granulação suficiente em ferida operatória. Dando
seguimento, no 21° dia pós-operatório, iniciou-se o processo de
enxertia da ferida + confecção de retalhos cutâneos de
avanço por rotação da região temporoparietal. As
regiões parietal e temporal esquerda foram eleitas áreas doadoras.
Utilizando dermátomo elétrico, foi retirado faixas de pele de
espessura parcial de 0,4mm desses locais e fixados no leito da ferida com fio
prolene 4-0 de agulha atraumática e finalizando com curativo a vácuo.
(Figuras 6A, B e C).
Figura 5 - Técnica de distração cutânea para
aproximação dos bordos da ferida.
Figura 5 - Técnica de distração cutânea para
aproximação dos bordos da ferida.
Foram necessárias outras 4 cirurgias para terminar de enxertar toda a
superfície exposta após a retirada da lesão. Após 11
abordagens cirúrgicas em um período total de 38 dias de
internação hospitalar, foi concluída a proposta
terapêutica, recebendo o paciente alta médica para acompanhamento
ambulatorial (Figuras 7A, B e C -
pós-operatório alta hospitalar, 15 dias e 3 meses,
respectivamente).
DISCUSSÃO
A CVG é uma entidade rara e de etiologia desconhecida, surgindo muitas vezes
após a puberdade, o que sugere estímulo hormonal. É
possível que possa ter uma herança autossômica recessiva ou
dominante. Afeta com mais frequência o vértex e a região
occipital, mas pode acometer todo o couro cabeludo. A verdadeira CVG pode ser
idiopática, associada a distúrbios endócrinos (acromegalia,
mixedema ou cretinismo) ou a síndromes como: paquidermoperiostose,
síndrome de Beare-Stevenson ou síndrome de Turner1.
Na pseudo-CVG temos os seguintes diagnósticos diferenciais: nevo
dérmico cerebriforme, mucinose focal, neurofibroma e leucemia cútis. A
microscopia óptica estabelece um diagnóstico seguro. O único
tratamento possível é a correção cirúrgica.
Apesar do descrito na literatura médica, o paciente não apresentava
qualquer alteração fenotípica ou sintomatologia associada, se
tratando possivelmente de um caso de CVG essencial primária. O exame
anatomopatológico confirmou a suspeita clínica de CVG. O paciente
relatava possuir a lesão desde a infância e que o quadro foi
progressivo. Apenas na fase adulta, por razões única e exclusivamente
estéticas, procurou auxílio profissional, tendo dificuldade em
encontrar serviço médico especializado.
Figura 6 - A. Ferida com tecido de granulação;
B. Área doadora; C. Realizada enxertia
de pele parcial e reconstrução com retalhos
cutâneos
Figura 6 - A. Ferida com tecido de granulação;
B. Área doadora; C. Realizada enxertia
de pele parcial e reconstrução com retalhos
cutâneos
Há relatos de casos na literatura médica, onde foi realizado o
tratamento da CVG em apenas dois tempos cirúrgicos; onde na primeira
cirurgia, utiliza-se expansores teciduais na calota craniana. O preparo
prévio da pele com uso de expansores possibilita maior ganho tecidual para o
fechamento da ferida operatória após a excisão da CVG.
Após 6 meses de expansão (em média), torna-se possível
remover a tumoração e fechar área cruenta com técnicas
de avançamento de retalhos em um segundo tempo cirúrgico5. Essa técnica requer maior
colaboração do paciente e aconselhamento psicológico, haja
vista que nem todos aceitam a utilização de expansores teciduais na
região da cabeça devido a exposição. Assim, optamos pela
não utilização dos expansores em um primeiro momento, a
despeito do maior tempo de internação e maior números de
cirurgias, acreditamos que as enxertias sequenciadas apresentam um bom resultado
estético com baixos índices de complicações.
Figura 7 - Pós-operatório: A: Alta hospitalar;
B: 15 dias; C: 3 meses.
Figura 7 - Pós-operatório: A: Alta hospitalar;
B: 15 dias; C: 3 meses.
CONCLUSÃO
A cutis verticis gyrata é uma entidade rara, geralmente
abordada em dois tempos cirúrgicos com o uso de expansores teciduais
previamente e seguida de cirurgia para ressecção/fechamento da
lesão. Contudo, esse caso clínico demonstrou que a CVG pode ser
tratada de maneira mais otimizada, com a remoção da
tumoração e a realização de enxertias de pele
sequenciadas. O manejo correto da ferida aliado à terapia a vácuo por
pressão negativa possibilitou um resultado estético aceitável.
A despeito do tempo de internação mais prolongado e as
múltiplas abordagens cirúrgicas, o paciente ficou satisfeito com sua
aparência, ressaltando o mesmo, que seu caso foi resolvido em um
período de 38 dias de tratamento. Ressalta-se ainda, que o paciente
está em seguimento ambulatorial e em aconselhamento psicológico para
decidir se aceita a colocação ou não de expansores teciduais
para melhor resultado estético e mitigar a área de alopecia.
REFERÊNCIAS
1. Azulay RD, Azulay DR. Dermatologia. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan; 2006.
2. Dumas P, Chardon VM, Balaguer T, Cardot-Leccia N, Lacour JP,
Lebreton E. Primary essential cutis verticis gyrata: case report and literature
review. Ann Chir Plast Esthét. 2010 Jun;55(3):243-8. DOI: https://doi.org/10.1016/j.anplas.2009.06.010
3. Radwanski HN, Almeida MWR, Pitanguy I. Primary essential cutis
verticis gyrata - a case report. J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2009
Nov;62(11):e430-e3. DOI: https://doi.org/10.1016/j.bjps.2008.06.062
4. Yang JJ, Sano DT, Sanchez AP, Tebcherani AJ, Martins SR.
Cútis verticis gyrata primária essencial - relato de caso. An Bras
Dermatol. 2014;89(2):326-8.
5. Snyder MC, Johnson PJ, Hollins RR. Congenital primary cutis verticis
gyrata. Plast Reconstr Surg. 2002 Set;110(3):818-21. DOI: https://doi.org/10.1097/01.PRS.0000019720.50128.7F
1. Hospital Quinta D’Or, Cirurgia
Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Autor correspondente: Augusto Massaud
Pedretti, Rua São Clemente, nº 250 - Botafogo, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil, CEP 22260-001, E-mail:
gutopedretti@yahoo.com.br
Artigo submetido: 12/08/2020.
Artigo aceito: 23/04/2021.
Conflitos de interesse: não há.
Instituição: Hospital Quinta D’Or, Cirurgia
Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.