INTRODUÇÃO
A síndrome ou gangrena de Fournier, também chamada de fasceíte necrosante do períneo,
é uma doença infecciosa de início insidioso, rapidamente progressiva e
agressiva1,2. Essa afecção se caracteriza por uma evolução
fulminante para sepse e é considerada potencialmente fatal, levando a grandes
perdas
teciduais e apresentando altos níveis de morbimortalidade3,4. Consiste
em uma infecção polimicrobiana e apresenta uma causa identificável em 70 a 90%
dos
casos, sendo frequentemente associada às infecções dermatológicas, anorretais
ou
urológicas, bem como decorrente de trauma1,5. As áreas mais
acometidas são a pele da região escrotal e perineal, sendo, portanto, uma doença
mais frequente no sexo masculino. Nesse âmbito, existem várias técnicas possíveis,
como enxertos cutâneos, retalhos miofasciocutâneos e fasciocutâneos, além do
fechamento primário da lesão, se viável4. O
retalho fasciocutâneo superomedial da coxa é uma opção muito utilizada, devido
ao
fato de apresentar bons resultados estéticos e funcionais, além de simples
execução6,7.
OBJETIVO
Demonstrar o uso do retalho fasciocutâneo superomedial de coxa para reconstrução do
períneo após gangrena de Fournier.
MÉTODO
Paciente masculino, 62 anos, vem encaminhado para o serviço de cirurgia plástica após
desbridamento por gangrena de Fournier. O paciente apresentava hérnia inguinal
assintomática há muitos anos, no entanto, após um trauma sofrido em testículo
direito, realizou cirurgia para ressecção de escroto, que progrediu com edema
importante, infecção e necessidade de desbridamento cirúrgico. Após o procedimento,
foi encaminhado para a cirurgia plástica do Hospital São Lucas da PUCRS, em bom
estado geral; apresentando exposição testicular, bem como de região perineal à
direita exposta e com área cruenta (Figura 1 e
2). Foi realizada drenagem de secreção,
antibioticoterapia para descolonização, e cirurgia para reconstrução de períneo,
sendo usado retalho superomedial de coxa bilateral (Figura 3 e 4).
Figura 1 - Pré-operatório: lesão com exposição testicular.
Figura 1 - Pré-operatório: lesão com exposição testicular.
Figura 2 - Pré-operatório: marcação do retalho.
Figura 2 - Pré-operatório: marcação do retalho.
Figura 3 - Trans-operatório: confecção do retalho bilateral.
Figura 3 - Trans-operatório: confecção do retalho bilateral.
Figura 4 - Pós-operatório imediato: cobertura total da lesão.
Figura 4 - Pós-operatório imediato: cobertura total da lesão.
RESULTADOS
O procedimento não apresentou intercorrências. O paciente evoluiu com bom estado
geral, lúcido, orientado, hidratado e com sinais vitais estáveis. No terceiro
dia de
pós-operatório foi retirada a drenagem aspirativa fechada. A cobertura cutânea
apresentou boa cicatrização, com excelente funcionalidade e aspecto estético dentro
do esperado. Não houve complicações no pós-operatório.
DISCUSSÃO
A síndrome de Fournier, descrita inicialmente em 1883, é uma doença infecciosa
polimicrobiana, com acometimento preferencial dos genitais, períneo e região
perineal, podendo se alastrar para a raiz da coxa e abdome inferior4. A partir da instalação do processo
infeccioso, ocorre uma evolução rápida e progressiva para necrose das estruturas,
a
qual se estende até o plano fascial, gerando a desvitalização dos tecidos e podendo
levar a óbito quando não tratada de maneira precoce2,5. A doença é
caracterizada histologicamente por uma endarterite obliterante, acompanhada de
isquemia e trombose dos vasos subcutâneos, o que resulta em necrose da pele e
tecido
celular subcutâneo adjacente, mesmo antes da evidência de bolhas, eritema e
crepitação2,3. Existem fatores predisponentes para a
fasceíte necrosante, como diabetes mellitus - mais comumente associado -, trauma
local, extravasamento de urina, intervenção perirretal ou perianal, extensão de
infecção periuretral, abscesso anorretal, infecção geniturinária, alcoolismo,
imunossupressão, portadores de HIV, doença renal ou hepática2. A enfermidade é mais prevalente em homens, em uma proporção
de 10:1, com predileção por pacientes entre a terceira e sexta década de vida
e com
comorbidades predisponentes2,3. É importante considerar que o foco inicial da
doença geralmente decorre de um trauma ou de uma infecção na região perianal ou
urinária, sendo a etiologia identificada em 70 a 90% dos casos1,5. A
apresentação clínica do paciente com síndrome de Fournier é variável, sendo os
sinais e sintomas mais comuns: dor, hiperemia, edema de região perineal, crepitação,
drenagem de secreção serosa, febre, calafrios, podendo evoluir para choque3. Devido à evolução rápida e agressiva, e ao
grande potencial da infecção originar sepse, é necessário o tratamento com
antibioticoterapia endovenosa de largo espectro, a fim de atingir germes gram
positivos, negativos e anaeróbios, bem como o controle hidroeletrolítico2,8. Além disso, o tratamento cirúrgico é essencial e consiste em drenagem
e desbridamentos que visam atingir a margem de tecido sadio e, dessa forma,
controlar o processo infeccioso, podendo repetir o procedimento, caso
necessário1,3. A necessidade de extenso desbridamento traz
como desvantagens perdas teciduais importantes, além da exposição de áreas cruentas
extensas, com eventual exposição da musculatura dos testículos, os quais ficam
desprotegidos e suspensos2,7. Dessa forma, faz-se necessária a participação
do cirurgião plástico que, por meio de diferentes técnicas, realiza a reconstrução
escrotal, buscando manter as características fisiológicas e estéticas1. Essa reconstrução cirúrgica deve ser iniciada
quando a área cruenta não apresentar sinais de infecção8. Deve-se sempre considerar três aspectos: a cicatrização da
ferida, a manutenção da função e a recuperação estética8. Dentre as técnicas de reconstrução descritas, temos a
utilização de pele remanescente do escroto, de retalhos fasciocutâneos da coxa
(face
anterior ou face medial) ou de retalhos miocutâneos de músculo gracilis. Quando
se
faz necessário o uso de retalhos de vizinhança, o retalho superomedial da coxa
é uma
boa alternativa, devido ao fato de apresentar aspecto semelhante ao tecido
original7. O procedimento ideal visa a
realização em tempo cirúrgico único, com espessura de pele e subcutâneo adequadas,
resistente à tração e movimentos, com sequelas mínimas para a área doadora e que
mantenha as características originais do órgão1. Para obter isso, diversas técnicas foram descritas e a escolha
depende das características inerentes à lesão e das preferências do cirurgião.
O
retalho fasciocutâneo superomedial da coxa foi descrito por Hirshowitz, et
al., como sendo um retalho provavelmente arterial, localizado na
curvatura medial da coxa. Ele possui uma rica vascularização, sendo o suprimento
arterial proveniente de ramos da artéria pudenda externa, ramo anterior da artéria
obturatória e ramos da artéria circunflexa femoral medial1,2. É um
retalho idealizado obliquamente e com base sobre o músculo abdutor longo da coxa,
que é transposto uni ou bilateralmente visando confeccionar a neobolsa escrotal
para
cobertura testicular3. O retalho superomedial
possui boa espessura, facilidade de rotação, excelente aspecto estético e
complicações como necrose são muito raras, devido à rica vascularização que o
torna
muito seguro, inclusive em pacientes diabéticos e portadores de vasculopatias.
Esse
tipo de retalho apresenta boa aplicabilidade e excelentes resultados estéticos,
sendo uma boa alternativa em lesões mais extensas, quando não há quantidade
suficiente de pele para realizar cobertura total dos testículos2,3. Uma das
principais vantagens é o fato de a região superomedial da coxa possuir tecido
semelhante ao do escroto, com a presença de pelos e preservação da sensibilidade
local6,7. Além disso, permite uma simples execução em único tempo
cirúrgico, confiabilidade vascular e não deixa sequela em área doadora1,2. Como desvantagens, a literatura demonstra limitação do diâmetro
transverso e elasticidade da pele na região doadora, bem como a escassez de pele
na
região em pacientes jovens2,7. Após o procedimento, os pacientes devem ter
restrição dos movimentos por uma semana e a antibioticoterapia deve ser mantida
por
dez dias6.
CONCLUSÃO
A síndrome de Fournier apresenta um grande potencial fatal, sendo, portanto,
necessário o seu tratamento precoce e adequado. A fim de realizar a reconstrução,
as
seguintes características devem ser consideradas: cirurgia em tempo único,
sensibilidade mantida, mínima morbidade em área doadora, simplicidade na execução
e
confiabilidade no retalho2. Dessa forma, o
retalho superomedial da coxa constitui uma excelente opção para a reconstrução
escrotal, proporcionando melhora estética e funcional para o paciente1,2.
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1. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, Partenon, Porto Alegre, Brasil.
2. Universidade Luterana do Brasil, São José,
Canoas, RS, Brasil.
Endereço Autor: Paulo Eduardo Macedo Caruso, Av.
Ipiranga, 6690, Jardim Botânico, Porto Alegre, RS, Brasil. CEP:
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