INTRODUÇÃO
Atualmente, o culto excessivo à beleza e sua associação com o sucesso pessoal, pela
mídia, são fatores determinantes na crescente busca por procedimentos estéticos.
Consultórios médicos enchem-se de pacientes com o mesmo sonho, mas há indicações e
limites. É preciso investigar além do significante físico, aprofundar-se na angústia
daquele sujeito para se evitar a realização de uma cirurgia plástica inoportuna.
A personalidade de um indivíduo pode ser brevemente definida como uma construção
mental que reflete a estabilidade das dimensões cognitivas (crenças, valores e
representação de si), afetivas (emoções e motivações) e comportamentais (condutas).
Essas dimensões formam um conjunto de padrões que tendem a se manter ao longo do
tempo, permitindo, portanto, que reconheçamos a nós mesmos e às outras pessoas. O
transtorno de personalidade é um conjunto de padrões estáveis mal adaptados,
desenvolvidos ao longo do ciclo da vida, que se desvia acentuadamente das
expectativas da cultura do indivíduo, o que leva ao sofrimento subjetivo, e do seu
meio social1. Há transtorno de personalidade
cuja identificação é mais complexa, especialmente por profissional pouco experiente;
portanto, ocasionalmente, o médico opera paciente inapto, podendo gerar-lhe
sofrimento, bem como ao próprio profissional, que poderá perder o controle sobre a
condução pós-operatória.
Um transtorno de personalidade pouco conhecido e de difícil detecção, pois seus
sintomas são comuns a outros transtornos, é o transtorno de personalidade
borderline (TPB). Segundo a Associação Psiquiátrica
Americana2, sua condição-chave é a
variação imprevisível do humor, com acentuadas instabilidades afetiva e emocional.
Suas principais características são:
- Distorção dos padrões de pensamento ou da percepção de si, com
perturbação da identidade e da autoimagem, como estimativas equivocadas
do tamanho corporal e do peso;
- Comportamento impulsivo;
- Relacionamentos intensos ou instáveis;
- Sentimentos duradouros de raiva, mágoa, de vazio e solidão, que
provocam tentativas exageradas de prevenção de possível abandono por
relacionamento sufocante, e ameaças de automutilação.
O paciente com TPB tem grande dificuldade em se compreender e causa prejuízos
significativos a si próprio e a relacionamentos interpessoais. Atinge baixo grau de
satisfação com resultados de procedimentos estéticos, solicita correções por
impulsividade e para evitar o abandono. Profissionais da saúde, principalmente
cirurgiões plásticos, acabam adoecendo quando se deparam com este tipo de
paciente3. Nesse momento, o médico precisa
aceitar suas limitações e suas manifestações psíquicas4. O objetivo deste relato é registrar a importância fundamental da
avaliação e acompanhamento psicológicos antes e após uma cirurgia estética.
CASO CLÍNICO
Paciente do sexo feminino, de 29 anos, procurou cirurgião plástico porque estava
insatisfeita com seu queixo pequeno. Percebia que faltava algo em seu rosto que
chamasse atenção quando fotografada como modelo, e ao postar suas fotos nas redes
sociais. O cirurgião forneceu informações pré-operatórias e não detectou qualquer
alteração psicopatológica na paciente.
Logo após a mentoplastia de aumento com prótese, já na sala de recuperação
pós-anestésica, passou a ter comportamento agressivo e agitação, ofendendo toda a
equipe multidisciplinar presente. No final de semana que se seguiu, passou mensagens
telefônicas insistentemente, inclusive por toda a madrugada, queixando-se do
“desastre em seu rosto” à representante comercial da prótese e ao cirurgião, que
tentou acalmá-la, reafirmando que seria preciso aguardar o tempo previamente
orientado para a região operada desinchar e cicatrizar. Foi reavaliada no primeiro
dia útil seguinte e, diante de aparente desespero, foi submetida a novo procedimento
cirúrgico um dia após, para diminuição do tamanho da prótese à metade. Manteve a
queixa, e o cirurgião propôs, então, remover a prótese, o que foi terminantemente
descartado pela paciente, pois alegou tratar-se do seu sonho. Foi medicada com
ansiolítico leve e encaminhada a psicólogo, a que se opôs, e fisioterapeuta. Na
terceira cirurgia, a prótese foi desbastada à metade do tamanho da menor prótese
disponível no mercado, mas a paciente manteve-se insatisfeita, alegando que seu
queixo aparentava-se gigantesco. A cada dia seu comportamento tornou-se mais
agressivo, obsessivo pelo cirurgião plástico, a quem passou a ameaçar, bem como à
administração da clínica onde havia se submetida ao procedimento. Após três
procedimentos, havia surgido pequena aderência no sulco labial que precisava ser
desfeita. Incapaz de manter qualquer comunicação produtiva com a paciente, o
profissional a encaminhou ao seu amigo mais experiente, também cirurgião plástico,
que tentaria dar continuidade aos cuidados com equipe interdisciplinar, incluindo
psicóloga.
Inicialmente, desconfiada nos atendimentos psicológicos, expressava-se com extrema
ansiedade, gesticulando muito, com taquilalia. Informou que, logo após a cirurgia,
ainda sedada, já notou algo estranho, pois a equipe de enfermagem da clínica estava
indiferente, frios e impacientes. Quanto ao cirurgião plástico, declarou:
- “Eu não duvido que ele queria me deixar feia, por ter inveja de
ser uma pessoa bonita” (narcisismo).
Acreditava que seu rosto ficara deformado, que sua boca não tinha o mesmo formato
de
antes, e que seus colegas de trabalho comentavam negativamente. Alegou que passou
a
perder várias oportunidades de trabalho como modelo fotográfica desde então.
Acreditava que sua vida havia chegado ao fim, pois tornara-se um monstro após a
cirurgia (distorção da imagem). Questionava se o novo cirurgião plástico poderia
causar-lhe maior dano, privando-a de falar ou de reclamar (vitimização). Questionava
se seu rosto ficaria perfeito, mas logo em seguida expressava desejo em readquirir,
segundo seu entendimento, seu rosto angelical original. Foi orientada sobre a
amplidão e relatividade do conceito de perfeição. Instabilizava-se emocionalmente
com frequência, impedindo a fala do médico e da psicóloga, mas parecia ter entendido
o propósito do tratamento complementar do sulco labial. Confessou que alguns
acreditavam que ela tinha algum transtorno mental, mas temia que essa suspeita
chegasse à sua empregadora no centro de saúde.
Após a nova intervenção, intercalava períodos de felicidade e gratidão com períodos
de explosão e ameaças de morte a toda a equipe (instabilidade de humor). Afirmava
constantemente que a psicóloga estava feliz com sua infelicidade, por ter inveja da
sua beleza.
Antes da alta do consultório, o cirurgião solicitou que se submetesse a exame de
imagem do mento (ressonância nuclear magnética ), com finalidade de mostrar-lhe que,
após as intervenções, o tamanho da prótese tornara-se insignificante, e que nada
mais havia a ser feito. Foi orientada sobre o resultado do exame e a necessidade de
acompanhamentos psicológico e psiquiátrico. Reagiu agressivamente, arremessando
objetos e proferindo palavras ofensivas. Impedia o contato da equipe com qualquer
familiar. Atingia-se o limite da possibilidade de tratamento pelos médicos e pela
psicóloga da equipe.
DISCUSSÃO
O método utilizado no acompanhamento psicológico antes e após cirurgias plásticas
estéticas é a Terapia do Esquema. Um indivíduo psicologicamente saudável é aquele
que consegue satisfazer de forma adaptativa suas necessidades fundamentais e
emocionais, uma vez que entende seus esquemas e seu estilo de enfrentamento. A
Terapia do Esquema é um programa comportamental de duração variável, conforme o
paciente. Combina exposição com prevenção de resposta e elimina, em grande parte,
pensamentos obsessivos. A Terapia do Esquema já se mostrou útil no tratamento de
depressão, ansiedade, transtornos alimentares e transtornos de personalidade.
O psicólogo alia-se ao paciente para lutar contra seus esquemas, usando estratégias
cognitivas, afetivas, comportamentais e interpessoais. Quando o paciente repete
padrões disfuncionais baseados em seus esquemas, o psicólogo confronta,
empaticamente, com as razões para mudança. Assim, o paciente começa a exercer algum
controle sobre suas respostas e aumenta o exercício do livre arbítrio. O objetivo
é
aumentar seu autocontrole com relação aos seus esquemas, trabalhando para
enfraquecer as memórias, emoções e sensações negativas. É importante avaliar quais
dos esquemas podem gerar expectativas falsas ao processo, ou exigir demais após a
cirurgia plástica.
Na Terapia do Esquema de pacientes com TPB, o psicólogo estabelece vínculos e uma
base estável e carinhosa. O primeiro passo é terapeuta e paciente formarem vínculo
emocional seguro, onde será estimulada a expressão de necessidades e emoções,
ensinando ao paciente formas de enfrentamento para controlar humores e desconfortos.
As estratégias visam a facilitar ao paciente seu aprendizado no controle de seus
sentimentos, e a pontuar seus limites, quando ultrapassados5.
Outro método utilizado em pacientes que se submeterão a procedimentos de cirurgia
plástica é a aplicação do teste NEO FFI revisado, que examina cinco traços de
personalidade do indivíduo: abertura a experiência, conscienciosidade, extroversão,
agradabilidade e neuroticismo. Trata-se de avaliação psicométrica da personalidade.
Utiliza princípios positivos empíricos e baseia-se no pressuposto de que os
atributos humanos podem ser avaliados quantitativamente. Os pacientes são convidados
a preencher questionários com base em como se percebem e como acreditam que
normalmente se comportam em diversas situações. Os resultados são, então, examinados
em busca de consistências nas características do indivíduo, com base no pressuposto
de que os atributos humanos são caraterísticos, estáveis e consistentes, que se
reúnem para compor a personalidade6.
Concluindo-se, o acompanhamento psicológico pré-operatório dos pacientes de cirurgia
plástica é fundamental para avaliar se as motivações são realistas, e possibilitar
intervenção, se houver algum desajustamento, ou mesmo impedimento. Após a cirurgia,
oferece apoio contra ansiedade e amplia a capacidade de suportar sensações e emoções
desconfortáveis e desconhecidas. O psicólogo é o articulador entre o paciente e o
cirurgião plástico, e pode prevenir o adoecer de ambos. Deve sempre integrar a
equipe interdisciplinar.
REFERÊNCIAS
1. Alvarenga M. Transtorno de personalidade borderline. In: Workshop
Transtorno de Personalidade Borderline. Belo Horizonte, Brasil; 2018
Set.
2. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico
de transtornos mentais - DSM 5. Porto Alegre: Artmed; 2014.
3. Scherer JN, Ornell F, Narvaez JCM, Nunes RC. Transtornos
psiquiátricos na medicina estética: a importância doreconhecimento de sinais e
sintomas. Rev Bras Cir Plást. 2017; 32(4):586-93.
4. Goulart GC. O corpo estranho na cirurgia plástica. Belo Horizonte:
Coopmed; 2013.
5. Young JE. Terapia cognitiva para transtornos de personalidade: uma
abordagem focada em esquemas. Porto Alegre: Artmed; 2003.
6. Mendoza CEF. NEO FFIR - inventário de personalidade NEO. São Paulo:
Vetor Editora; 2007.
1. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica,
Minas Gerais, MG, Brasil.
2. Associação Brasileira de Cirurgia
Craniomaxilofacial, São Paulo, SP, Brasil.
3. Centro de Tratamento e Reabilitação de Fissuras
Labiopalatais e Deformidades Craniofaciais.
4. Hospital da Baleia, Belo Horizonte, MG,
Brasil.
5. Clínica privada.
6. Hospital João XXIII, Belo Horizonte, MG,
Brasil.
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