INTRODUÇÃO
O polimetilmetacrilato (PMMA) é um polímero utilizado como preenchedor, com
apresentação na forma de microesferas sintéticas com diâmetro entre 40 e 60 mm
veiculadas em um meio de suspensão que pode ser colágeno, aproteico ou
cristaloide1,2.
Na medicina, o uso do PMMA iniciou-se na década de 1940, sendo utilizado como cimento
ósseo, principalmente, na cirurgia craniofacial e cirurgias ortopédicas. No entanto,
as primeiras experiências com o uso do PMMA para implantação em tecidos moles foram
realizadas somente a partir da década de 1980, na Alemanha, onde Ott e Lemperle
efetuaram os primeiros testes comparando, histologicamente, produtos absorvíveis com
as partículas não absorvíveis após injeção em pele de ratos3.
O PMMA é um produto de caráter permanente (havendo apenas absorção do veículo), sendo
constituído por microesferas de superfície irregular e não fagocitáveis, podendo
gerar reações adversas locais imprevisíveis, que geralmente surgem muitos anos após
a aplicação1,4,5.
O PMMA vem sendo utilizado de modo indiscriminado em função de seu baixo custo,
durabilidade e fácil acesso. Sua venda não é restrita, de modo que profissionais não
médicos ou mesmo médicos sem especialização adequada fazem aplicações da
substância2.
O retalho de Abbé, descrito por Robert Abbé, em 1898, é um retalho axial baseado no
pedículo da artéria labial e utilizado na reconstrução de defeitos labiais de
espessura total6.
O presente estudo traz o relato de caso de uma paciente que foi submetida ao
tratamento estético da face com uso de PMMA, evoluindo com reação de corpo estranho
anos após a aplicação, sendo necessário tratamento cirúrgico com ressecção e
reconstrução labial com retalho de Abbé.
RELATO DE CASO
Paciente L.O.C., 60 anos, gênero feminino, sem comorbidades, com história de
tratamento estético facial com PMMA há 7 anos, em terço médio da face (região malar)
e lábio superior, por profissional bucomaxilofacial. Cinco anos após o procedimento,
observou surgimento de pequenas lesões
nodulares cilindriformes endurecidas e pouco dolorosas à palpação nos locais de
aplicação prévia do produto.
Foi submetida a ritidoplastia para correção dos defeitos inestéticos secundários ao
preenchimento com PMMA em região malar. Durante procedimento, também foi realizada
blefaroplastia superior a pedido da paciente.
Na região do lábio superior, relata que o mesmo profissional que realizou o
preenchimento optou pela incisão direta com retirada parcial do produto, e
tratamento com múltiplas injeções intralesionais com triancinolona durante dois
anos.
Informa que evoluiu com discromia e atrofia do lábio superior nesta área, com perda
de volume, além da manutenção de irregularidade da região. Ao exame físico, também
foi identificado endurecimento, retração cicatricial e aderência de lábio superior
à
maxila, o que limitava a mobilidade do mesmo. Não foi evidenciado nenhum sinal
flogístico no local (Figura 1).
Figura 1 - A e B: Imagens da paciente no
pré-operatório.
Figura 1 - A e B: Imagens da paciente no
pré-operatório.
Em nosso serviço, foi proposto tratamento cirúrgico com ressecção do segmento labial
comprometido e reconstrução, em dois tempos, com retalho de Abbé.
Durante ato operatório, realizou-se marcação do retalho seguindo os seus princípios
técnicos7: 1) a largura do retalho deve
corresponder à metade da largura do defeito; 2) a altura do retalho deve ser a mesma
que a altura do defeito; e 3) o pedículo do retalho deve ser posicionado no ponto
médio do defeito (Figura 2.A).
Figura 2 - A: Marcação do retalho de Abbé; B: Imagem
mostrando tamanho do defeito em lábio superior após ressecção de área
endurecida e confecção de retalho de Abbé em lábio inferior;
C: Transposição do retalho para cobertura do defeito no
lábio superior; D: Aspecto final após transposição; E:
Aspecto do retalho no 7º DPO.
Figura 2 - A: Marcação do retalho de Abbé; B: Imagem
mostrando tamanho do defeito em lábio superior após ressecção de área
endurecida e confecção de retalho de Abbé em lábio inferior;
C: Transposição do retalho para cobertura do defeito no
lábio superior; D: Aspecto final após transposição; E:
Aspecto do retalho no 7º DPO.
Após incisão em lábio superior, ocorreu drenagem imediata de secreção purulenta,
provavelmente devido a necrose asséptica do músculo orbicular da boca, causada pelas
múltiplas infiltrações de triancinolona prévias. Optou-se por irrigação abundante
com soro fisiológico na região e desbridamento de tecidos desvitalizados (Figura 3).
Figura 3 - Defeito remanescente após drenagem de secreção purulenta devido a
necrose asséptica do músculo orbicular da boca.
Figura 3 - Defeito remanescente após drenagem de secreção purulenta devido a
necrose asséptica do músculo orbicular da boca.
Após ressecção completa de região fibrosada em lábio superior, realizou-se incisão
completa em lábio inferior no lado contralateral ao pedículo da artéria labial
inferior e posterior identificação da posição da artéria no lado ipsilateral, com
confecção do retalho de Abbé (Figura 2.B).
Foi realizada transposição do retalho para o lábio superior e síntese por planos das
três camadas labiais (mucosa, músculo e pele) no lábio superior e inferior (Figura 2.C).
O retalho permitiu cobertura adequada do defeito, apresentando boa perfusão no
pós-operatório imediato (Figura 2.D). A
paciente evoluiu sem intercorrências, recebendo alta no mesmo dia do procedimento
e
foi prescrito antibiótico para uso domiciliar. Retornou para consulta no 7º dia de
pós-operatório, mantendo boa perfusão do retalho, sem complicações (Figura 2.E). A literatura recomenda a divisão do
pedículo após 14-21 dias da cirurgia7.
DISCUSSÃO
O retalho clássico de Abbé pode reconstruir defeitos mediais ou laterais do lábio
com
um retalho composto e de espessura total, reconstituindo todas as três camadas e
restaurando a continuidade do vermelhão7.
A reconstrução labial com retalho de Abbé, apesar de ser uma exceção, apresentou-se
como boa opção de tratamento no caso relatado, devido à perda de volume causada pela
necrose do músculo orbicular (consequente às múltiplas infiltrações com
triancinolona), além da fibrose e retração cicatricial com aderência do lábio à
maxila, que limitavam a mobilidade do mesmo. Desse modo, o retalho forneceu tecido
com volume e elasticidade suficiente para correção funcional e estética do defeito
após ressecção do lábio superior. No entanto, apresenta como desvantagens a
realização de dois estágios obrigatórios, limitação da abertura bucal durante o
processo de autonomização e cicatriz na área doadora em lábio inferior6,7.
A busca pela reposição de volume facial, para correção dos efeitos do envelhecimento,
estimulou o uso indiscriminado do PMMA. No entanto, seu uso deve ser cauteloso, uma
vez que seus resultados são limitados por reações imunológicas e inflamatórias que
são, por vezes, imprevisíveis8. Entre as
complicações mais comuns estão as decorrentes da reação de corpo estranho, com a
formação de nódulos e inflamações locais8,9.
Portanto, o uso de preenchimentos implica na responsabilidade médica de injeções
precisas, sendo imperativo o planejamento cuidadoso dos níveis de injeção, assim
como o domínio no tratamento das eventuais complicações que podem ocorrer10.
CONCLUSÃO
O uso de preenchimentos deve ser realizado de maneira cautelosa e responsável por
parte do profissional que o administra, pois, as complicações podem resultar em
deformidades permanentes e causar prejuízos físicos e psicológicos aos pacientes.
Apesar de ser um retalho de exceção, o retalho de Abbé mostrou-se eficaz na
reconstrução labial do caso relatado, promovendo correção funcional e estética
adequada.
REFERÊNCIAS
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preenchimentos permanentes. Rev Bras Cir Plást. 2009;
24(1):71-81.
2. Campos DLP, Proto RS, Santos DC, Ruiz RO, Brancaccio N, Gonella HA.
Avaliação histopatológica do polimetilmetacrilato em ratos ao longo de um ano.
Rev Bras Cir Plást. 2011; 26(2):189-93.
3. Lemperle G, Ott H, Charrier U, Hecker J, Lemperle M. PMMA
microspheres for intradermal implantation: part I. animal research. Annals of
Plastic Surgery. 1991; 26(1):57-63.
4. Christensen L, Breiting V, Janssen M, Vuust J, Hogdall R. Adverse
reactions to injectable soft tissue permanent fillers. Aesth Plast Surg. 2005;
34-48.
5. Silva MTT, Curi AL. Blindness and total ophthalmoplegia after
aesthetic polymethyl-methacrylate injection: case report. Arq Neur Psiquiatria.
2004; 873-4.
6. Carone DR, Amaral CER, Amaral CAAR, Menon DN, Amaral MP, Buzzo CL.
Retalho de Abbé: uma opção de tratamento no paciente fissurado bilateral. Rev
Bras Cir Craniomaxilofacial. 2009; 12(3):94-7.
7. Neligan PC, Rodriguez ED. Cirurgia plástica: cirurgia
craniomaxilofacial e cirurgia de cabeça e pescoço. 3 ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2015.
8. Rongioletti F. Granulomatous reactions from aesthetic dermal
micro-implants. Ann Dermatol Venereol. 2008; 135(1):59-65.
9. Salles AG, Lotierzo PH, Gemperli R, Besteiro JM, Ishida LC, Gimenez
RP, et al. Complications after polymethylmethacrylate injections: report of 32
cases. Plast Reconstr Surg. 2008; 121(5):1811-20.
10. Graivier M, Cohen SR. The semipermanent and permanent
dermal/subdermal fillers supplement. Plast Reconstr Surg. 2006;
118(3):6S.
1. Hospital da Baleia, Belo Horizonte, MG,
Brasil.
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica,
Minas Gerais, MG, Brasil.
Endereço Autor: Camila Carvalho Cavalcante
Marinho Rua Alagoas, nº66 - Belo Horizonte, MG, Brasil CEP 30130-160
E-mail: camila_ccavalcante@hotmail.com