INTRODUÇÃO
Os traumas oculopalpebrais são bastante comuns, tendo, portanto, grande importância
social e econômica, trazendo consigo infelicidade, ineficiência econômica e perda
monetária1,2. Estima-se que nos Estados Unidos ocorram
aproximadamente 2,4 milhões de traumas oculares ao ano, sendo uma das principais
causas de cegueira naquele país, tendo crianças e jovens como vítimas mais
frequentes3. Desses traumas, em torno de 1
milhão são decorrentes de acidentes em ambiente de trabalho, sendo 90% leves e
preveníveis com utilização de medidas simples de proteção4. Na Inglaterra, as causas ocupacionais são responsáveis por
cerca de 70% a 80% dos traumas oculares e causam grandes perdas financeiras2.
No Brasil, os dados a respeito do assunto são escassos, não permitindo uma adequada
caracterização dessa morbidade em nosso país; entretanto, acredita-se que os traumas
oculopalpebrais sejam uma importante causa de cegueira4.
Descrevemos neste artigo o caso de um trauma facial grave, decorrente de lesão
lacerante por arma branca, motivado por autoagressão, em que os princípios básicos
da reconstrução palpebral foram utilizados.
OBJETIVO
Descrever o caso de reconstrução palpebral inferior, utilizando-se o retalho
pediculado palpebral superior.
MÉTODO
Relatamos o caso de um paciente masculino, 26 anos, vítima de tentativa de
autoextermínio, durante surto psicótico após abuso de drogas. Admitido no
pronto-socorro do Hospital Universitário Evangélico Mackenzie de Curitiba, trazido
pelo Serviço Móvel de Urgência (SAMU), em ventilação espontânea, Glasgow 15. Em
exame físico inicial na chegada, o paciente apresentava importante laceração total
da pálpebra inferior direita (Figura 1).
Figura 1 - Lesão lacerante em pálpebra inferior total.
Figura 1 - Lesão lacerante em pálpebra inferior total.
Após avaliação segundo normas do ATLS (Advanced Trauma Life Suport)
e estabilização do paciente, o médico emergencista solicitou exame tomográfico de
face e crânio.
Foi acionada equipe de neurocirurgia, cirurgia do trauma, oftalmologia, cirurgia
bucomaxilofacial e cirurgia plástica. Após exames tomográficos, não foram
constatadas fraturas ou demais lesões além da laceração palpebral. Após
estabilização e avaliações iniciais, decidiu-se por levá-lo ao centro cirúrgico para
melhor avaliação e manejo da lesão. O procedimento foi realizado com anestesia local
associada a sedação, com utilização de lidocaína 2% com vasoconstritor.
Após irrigação copiosa dos ferimentos com solução salina estéril, iniciou-se
desbridamento cauteloso, vistas as proximidades com estruturas nobres da
pálpebra.
Embora os ferimentos palpebrais à direita fossem de maior magnitude, decorrentes do
trauma frontal, o globo ocular estava íntegro, sem déficit visual. A pálpebra
inferior direita possuía total desinserção, necessitando reconstrução.
Inicialmente, foi realizado desbridamento dos bordos, retirada de enxerto
cartilaginoso da região da escafa de orelha esquerda, e rotação de retalho
bipediculado palpebral superior (Figura 2).
Figura 2 - Rotação de retalho palpebral superior com enxerto cartilaginoso de
escafa.
Figura 2 - Rotação de retalho palpebral superior com enxerto cartilaginoso de
escafa.
RESULTADOS
O paciente apresentou boa evolução pós-operatória, recebendo medicações analgésicas
e
antibióticos. Manteve acompanhamento ambulatorial, apresentando bom aspecto das
cicatrizes, com leve edema residual e liberação do retalho em segundo tempo (Figura 3).
Figura 3 - Liberação do pedículo do retalho palpebral.
Figura 3 - Liberação do pedículo do retalho palpebral.
Após 6 meses, foi submetido à liberação do retalho, apresentando boa evolução e
resultado estético satisfatório com oclusão palpebral adequada (Figura 4).
Figura 4 - Epitelização do retalho, com cobertura do defeito e adequada oclusão
palpebral.
Figura 4 - Epitelização do retalho, com cobertura do defeito e adequada oclusão
palpebral.
DISCUSSÃO
As lesões traumáticas dos tecidos moles faciais são comumente encontradas em salas
de
emergência por médicos emergencistas e cirurgiões plásticos1. Embora raramente fatais, o tratamento dessas lesões pode ser
complexo e ter um impacto significativo na função e estética facial do indivíduo,
uma vez que a face representa um segmento corporal de grande expressividade no
relacionamento interpessoal.
Os ferimentos isolados de partes moles devem ser suturados assim que possível.
Reparação precoce, mesmo na indefinição das lesões concomitantes significativas, tem
sido associada a melhores resultados estéticos pós-operatórios1,2. Atrasos no
tratamento podem resultar em maior edema dos tecidos moles, distorcendo pontos de
referência e tornando o fechamento primário mais difícil, além de aumentar o risco
de infecção. Idealmente, o fechamento deve ocorrer dentro das primeiras 8 horas após
a lesão. Inicialmente, todas as lesões dos tecidos moles que podem ser suturadas na
sala de emergência devem ser meticulosamente limpas de detritos, sob anestesia
local.
A intervenção cirúrgica é indicada quando da existência de lesões concomitantes que
necessitam cirurgia e quando há adequada hemostasia ou quando a visualização ampla
da ferida não pode ser alcançada na sala de emergência. Lacerações menores podem ser
anestesiadas com bloqueios de campo locais, enquanto lesões maiores localizadas ao
longo de um território de inervação podem ser tratadas com bloqueios regionais.
Pacientes pediátricos podem não tolerar a infiltração com anestesia local, podendo
estar indicada a sedação consciente para o tratamento adequado
(avaliação/desbridamento/fechamento) das lesões dos tecidos moles.
Se houver contaminação significativa da ferida, a mesma pode ser limpa com uma escova
cirúrgica e antisséptico. Subsequentemente, irrigação abundante deve ser realizada
em todas as feridas contaminadas. Cobertura antibiótica de amplo espectro é
necessária em mordidas e em doentes com risco de má cicatrização devido ao
tabagismo, alcoolismo, diabetes, ou outra formas de comprometimento imunológico.
Profilaxia do tétano deve ser administrada de acordo com a história de
imunizações4.
Para um reparo palpebral adequado, é importante o conhecimento anatômico detalhado
da
região. A pálpebra é uma estrutura bilamelar que compreende uma lamela anterior e
outra posterior, separadas pelo septo orbitário. A lamela anterior consiste em pele
e músculo orbicular palpebral. A lamela posterior engloba uma alça tarsoligamentosa
que compreende uma placa tarsal e tendões cantais medial e lateral, juntamente com
a
fáscia capsulopalpebral e a conjuntiva.
O septo se origina no arco marginal que acompanha o rebordo orbitário e separa as
duas lamelas.
Inicialmente, simples lacerações palpebrais devem ser fechadas em três camadas, nesta
ordem: lamela posterior, septo orbitário e lamela anterior. Além disso, nas
lacerações envolvendo o bordo tarsal, a linha cinzenta e a placa tarsal devem ser
cuidadosamente reaproximadas, sendo o bordo suturado com sutura em colchoeiro
vertical para que as margens fiquem evertidas.
Para lacerações na pálpebra inferior, um alinhamento adequado também minimiza o risco
do ectrópio. A inserção do músculo elevador na placa tarsal deve ser cuidadosamente
avaliada nas lacerações da pálpebra superior.
Defeitos em espessura total da pálpebra superior e inferior menores que 33% e 50%,
respectivamente, podem ser fechados primariamente utilizando-se os princípios
básicos de reconstrução palpebral em camadas. Alguns autores, no entanto, mais
conservadores, sugerem o fechamento primário apenas em espessura total inferior a
25% da pálpebra4. Cantólise e cantotomia
lateral podem ser utilizadas para aliviar tensão no reparo de defeitos maiores.
Defeitos de espessura parcial de até 50% de comprimento da pálpebra podem, em
contrapartida, ser fechados usando retalhos locais de avanço. Defeitos de espessura
parcial superiores a 50% do comprimento da pálpebra superior ou inferior podem
requerer um enxerto de pele de espessura total para alcançar fechamento sem tensão.
Defeitos completos da pálpebra superior ou inferior apresentam maior desafio para
o
cirurgião plástico. Lesões da pálpebra laterais envolvem geralmente o canto lateral
e podem exigir uma cantopexia ou cantoplastia para reparar o canto lesado.
Dependendo do grau de lesão, reparação primária pode ser possível, mas,
frequentemente, lesão extensa necessita reparo alternativo ou reconstrução do
ligamento.
Um pioneiro na reconstrução da pálpebra inferior utilizando retalhos de pálpebra
superior foi o francês Léon Tripier. Acredita-se que ele realizou o primeiro caso
de
reconstrução de pálpebra utilizando um retalho miocutâneo funcional. Tripier, em
1888, descreveu a utilização de um retalho bipediculado da pálpebra superior com a
conformação de uma ponte, baseado no músculo orbicular ocular para reparar grandes
defeitos na pálpebra inferior5,6.
Uma das intenções de Tripier era conseguir um retalho musculocutâneo que lesionasse
o
menor número de fibras nervosas possíveis e também mantivesse sua função.
Tripier descreveu o sucesso no tratamento de três casos de reconstrução extensa de
pálpebra inferior utilizando o retalho bipediculado de pálpebra superior. Nessa
mesma publicação, ele descreveu a confecção de um retalho análogo bipediculado da
região frontal logo acima do supercílio, para tratar defeitos com dimensões de
metade até dois terços da pálpebra superior.
O manejo adequado e delicado dos tecidos já traumatizados, muitas vezes avulsionados
pela ocasião do trauma, assim como a reestruturação anatômica das estruturas
afetadas terão relevância, estética e funcional, para a recuperação do paciente
traumatizado de face, sobretudo da pálpebra, evitando, por vezes, múltiplas
cirurgias e sequelas de difícil tratamento em longo prazo. Para isso, torna-se
imperativo o diagnóstico correto das alterações apresentadas e decorrentes do
traumatismo, assim como um planejamento adequado das condutas a serem tomadas,
muitas vezes não tão fáceis e até desafiadoras em um ambiente ansiogênico como a
emergência hospitalar.
CONCLUSÃO
Descrevemos nesse caso a importância do cirurgião plástico como um especialista
integrante e necessário da equipe de atendimento do trauma grave na sala de
emergência, assim como seu grau de resolutibilidade, utilizando-se de técnicas
básicas e consagradas de reconstrução palpebral. A gravidade e a complexidade do
trauma palpebral não exigem somente a cooperação interdisciplinar no cuidado desses
pacientes, mas também medidas constantes do poder público para educação da população
quanto a estratégias preventivas. Esta última continua a ser a forma mais barata de
reduzir direta e indiretamente os custos das sequelas ocasionadas pelo trauma4.
REFERÊNCIAS
1. Kretlow JD, McKnight AJ, Izaddoost SA. Facial soft tissue trauma.
Semin Plast Surg. 2010; 24(4):348-56. DOI: https://doi.org/10.1055/s-0030-1269764
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reconstruction in polytrauma patients. Ann Ital Chir. 2008;
79(6):415-7.
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wounds. Br J Oral Maxillofac Surg. 1995; 33(2):76-85. DOI: https://doi.org/10.1016/0266-4356(95)90204-X
4. Siqueira EJ, Alvarez GS, Bolson BP, Oliveira MB. Combined approach
of severe facial trauma soft tissue. Porto Alegre: Rev AMRIGS. 2014;
58(4):275-80.
5. Hicks DL, Watson D. Soft tissue reconstruction of the forehead and
temple. Facial Plast Surg Clin North Am. 2005; 13(2):243-51. DOI: https://doi.org/10.1016/j.fsc.2004.11.002
6. Andrade AA, Freitas RS. Correcting historical errors in lower eyelid
reconstruction. Rev Bras Cir Plást. 2017; 32(4):594-8.
1. Hospital Univeritário Evangélico Mackenzie,
Curitiba, PR, Brasil.
Endereço Autor: Juliane Ribeiro
Mialski Alameda Augusto Stellfeld, nº 1908, 5. andar, Bigorrilho,
Curitiba, PR, Brasil CEP 80730-150 E-mail:
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