INTRODUÇÃO
As lesões com perda de substância no pênis são sempre dramáticas pois, além do
comprometimento funcional, ocasionam também transtornos psicológicos no paciente.
Por isso, a reconstrução do pênis é sempre um desafio para o cirurgião, sendo
importante que se restabeleçam as funções urinária e sexual, assim como o aspecto
externo do falo, essencial para a autoestima do paciente1.
A forma tridimensional da genitália masculina, com abundância de tecido e presença
de
uretra longa, demanda a utilização de grandes retalhos para reconstrução e, de
preferência, que sejam maleáveis e sem pelos.
Dentre as lesões que podem acometer o pênis, estão as deformidades congênitas, as
doenças inflamatórias, os tumores, linfedema e as lesões traumáticas, que por
sua
vez podem ser causadas por queimaduras, amputações criminosas, explosões, quedas
a
cavaleiro, garroteamento, dentre outras, apesar da posição anatomicamente protegida
da genitália2.
A reparação genital pós-traumática é um assunto incomum e não há um consenso quanto
às técnicas para reconstrução. O planejamento deve basear-se na avaliação da
extensão da lesão e no inventário da anatomia após o trauma3.
OBJETIVO
O objetivo deste trabalho é divulgar à comunidade científica um caso bem-sucedido
de
reconstrução de haste peniana após desenluvamento traumático, em que foi utilizada
uma técnica de confecção de retalho prepucial em espiral. Trata-se de uma adaptação
nova para uso do retalho do prepúcio, não encontrado precedente na literatura
recente.
Foi realizada pesquisa na base de dados PubMed com o uso dos
descritores penile reconstruction e Preputial
flap, em língua inglesa. Aplicando-se os filtros à pesquisa, conforme
mostra o esquema na Figura 1, de um total de
3787 artigos versando sobre reconstrução peniana, restaram apenas 4 artigos de
revisão sobre a reconstrução de partes moles e nenhum deles trata especificamente
do
retalho do prepúcio. Utilizando a palavra-chave Preputial Flap,
foram encontrados 117 trabalhos, dos quais apenas 4 publicados nos últimos 10
anos e
que se relacionam com a reconstrução de partes moles do pênis após trauma. Ainda
assim, nenhum deles especifica a descrição desta modalidade técnica que utilizamos
no paciente em questão.
Figura 1 - Gráfico ilustrativo da pesquisa bibliográfica realizada na base de
dados PubMed. Em verde, resultado da busca por trabalhos sobre
Penile reconstruction - de um universo de 3787
artigos, filtramos apenas 4 para referência bibliográfica. Em laranja,
resultado da busca por Preputial Flap, que também
resultou em apenas 4 trabalhos de interesse para esta
publicação.
Figura 1 - Gráfico ilustrativo da pesquisa bibliográfica realizada na base de
dados PubMed. Em verde, resultado da busca por trabalhos sobre
Penile reconstruction - de um universo de 3787
artigos, filtramos apenas 4 para referência bibliográfica. Em laranja,
resultado da busca por Preputial Flap, que também
resultou em apenas 4 trabalhos de interesse para esta
publicação.
MÉTODO
Trata-se de paciente do sexo masculino, 32 anos, negro, deu entrada no Hospital
Universitário Ciências Médicas (HUCM) em março de 2017, transferido de outro
serviço, onde havia sido admitido 6 dias antes e recebido os primeiros cuidados,
após atropelamento por ônibus em via pública. Sofreu trauma de pelve com avulsão
de
partes moles em região suprapúbica e genitália, fratura de acetábulo direito com
rotação externa e encurtamento do membro. Sem outras lesões. Paciente previamente
hígido, tabagista e etilista crônico.
À admissão, possuía ferida profunda em região suprapúbica, com fundo necrótico,
deposição de fibrina e secreção purulenta, em continuidade com desenluvamento
da
haste peniana (Figura 2) - houve avulsão do
revestimento cutâneo anterior do pênis, com preservação da glande. Apresentava
também ferida escoriada superficial em face anterior da coxa esquerda, com cerca
de
10cm x 15cm, já com sinais de restauração, e ferida extensa em face anterior da
coxa
direita, aproximadamente 15cm x 25cm, com perda de substância, deposição de fibrina
e necrose central.
Figura 2 - Aspecto das feridas do paciente à admissão.
Figura 2 - Aspecto das feridas do paciente à admissão.
Além disso, mantinha rotação externa da articulação coxofemoral direita, com
encurtamento do membro inferior direito, e apresentava necrose de extremidades
em pé
direito. Os exames laboratoriais mostravam anemia, leucograma infeccioso, distúrbio
de coagulação e, por isso, optamos por manter conduta conservadora num primeiro
momento, iniciando tratamento antimicrobiano empírico e tratamento das feridas
com
desbridamento químico.
Durante os dias subsequentes, evoluiu com síndrome de abstinência, que foi
prontamente tratada pela equipe de Clínica Médica do HUCM. Recebeu também
assistência das equipes de Urologia, que realizou uretrocistografia e descartou
fístula vesical; Ortopedia, que optou por conduta expectante da fratura de acetábulo
com acompanhamento ambulatorial após a alta; Cirurgia Vascular, que realizou
arteriografia e diagnosticou oclusão de artéria ilíaca externa, com proposta de
by-pass em segundo momento; além da Enfermagem especializada da
Comissão de Curativos, com observação das feridas e troca diária das coberturas.
No 27º dia de internação hospitalar, já clinicamente compensado, paciente foi
submetido ao primeiro tempo cirúrgico da reconstrução do pênis. Na Figura 3 observa-se o aspecto das feridas do
paciente no pré-operatório, após 27 dias de tratamento conservador. Além da evidente
melhora do aspecto das feridas, com retração da área cruenta e remoção de tecidos
desvitalizados, pode-se observar que a despeito da avulsão de partes moles em
face
dorsal do pênis, há preservação da face ventral do prepúcio (edemaciado). Além
disso, há preservação da fáscia de Buck e todas as estruturas nobres do pênis.
Figura 3 - Aspecto das feridas após 27 dias de tratamento conservador - melhora
do aspecto das feridas, com retração da área cruenta e remoção de
tecidos desvitalizados.
Figura 3 - Aspecto das feridas após 27 dias de tratamento conservador - melhora
do aspecto das feridas, com retração da área cruenta e remoção de
tecidos desvitalizados.
Diante do quadro, e após discussão entre os membros da equipe, optamos por
confeccionar um retalho com o remanescente de prepúcio em face ventral do pênis,
baseado na artéria pudenda externa profunda, ramo da artéria femoral.
Após dissecção e descolamento do retalho em face ventral do pênis, em sentido
longitudinal, o mesmo foi posicionado em posição transversa em face dorsal da
haste
peniana, fazendo um movimento rotacional em espiral sobre a genitália. O retalho
foi
devidamente fixado com pontos simples, separados, com fio absorvível
multifilamentar, Poliglactina, 4-0. Como complementação à técnica, para cobrir
completamente a área cruenta, associamos retalho de avanço da região suprapúbica
e
inguinal esquerda, conseguindo uma cobertura total da ferida do pênis (Figura 4). No mesmo tempo, procedemos o
desbridamento cirúrgico da ferida na coxa direita.
Figura 4 - À esquerda, as setas azuis representam os retalhos de avanço e a seta
amarela a rotação em espiral do retalho prepucial; à direita, aspecto
pós-operatório imediato.
Figura 4 - À esquerda, as setas azuis representam os retalhos de avanço e a seta
amarela a rotação em espiral do retalho prepucial; à direita, aspecto
pós-operatório imediato.
RESULTADOS
No pós-operatório imediato, foi confeccionado curativo fixo tipo
tie-over, mantido por 5 dias. Evoluiu com deiscência parcial na
região suprapúbica e na face lateral direita da haste peniana (Figura 5), sendo submetido, 14 dias depois, a segundo tempo
cirúrgico com enxerto de pele total suprapúbico e enxerto de pele parcial em coxa
direita e lateral do pênis.
Figura 5 - A e B: Aspecto das feridas 14 dias após a
rotação do retalho prepucial, quando foi submetido à enxertia cutânea;
C: 5 dias após enxertia cutânea; D: 14
dias após enxertos, quando recebeu alta hospitalar.
Figura 5 - A e B: Aspecto das feridas 14 dias após a
rotação do retalho prepucial, quando foi submetido à enxertia cutânea;
C: 5 dias após enxertia cutânea; D: 14
dias após enxertos, quando recebeu alta hospitalar.
Recebeu alta hospitalar 14 dias após segundo procedimento, com perda parcial de áreas
enxertadas, mas sem outras complicações.
No primeiro retorno ambulatorial, 6 dias após a alta hospitalar, paciente
apresentava-se bem disposto, sorridente, comunicativo e, quando questionado, relatou
estar muito satisfeito com os resultados estéticos no pênis. Mantinha pequenas
áreas
não epitelizadas, mas com tecido de granulação e melhora significativa do aspecto
das feridas (Figura 6). Em retorno subsequente,
60 dias após o primeiro procedimento de confecção do retalho prepucial em espiral,
paciente sem queixas, referia função urinária preservada e relatou ter tido ereções,
sem dor.
Figura 6 - Observa-se o aspecto nos dois retornos ambulatoriais, à esquerda no
33º dia pós-operatório (DPO) e à direita no 60º DPO. Até a data da
publicação deste trabalho, foi o último contato da equipe com o
paciente.
Figura 6 - Observa-se o aspecto nos dois retornos ambulatoriais, à esquerda no
33º dia pós-operatório (DPO) e à direita no 60º DPO. Até a data da
publicação deste trabalho, foi o último contato da equipe com o
paciente.
DISCUSSÃO
De acordo com a literatura, o enxerto de pele de espessura parcial é o padrão ouro
da
reconstrução peniana4 e seria, portanto, a
primeira opção terapêutica para cobertura de grandes perdas teciduais. Entretanto,
como houve, nesse caso, a preservação de parte do prepúcio e devido às
características de elasticidade e ausência de pelos deste tecido, a equipe optou
por
utilizar esse nobre remanescente na reconstrução.
Uma preocupação da equipe com o uso da técnica descrita foi a virtual redução no
comprimento do falo, que é um dos principais fatores de insatisfação dos pacientes
após traumas do pênis. Ao rodar o retalho em espiral, utiliza-se o comprimento
do
retalho para cobrir a circunferência do pênis e a largura do retalho passa a ser
o
novo comprimento. No caso relatado, observamos, ao final da cirurgia, uma redução
significativa do comprimento do pênis, mas o resultado após 60 dias de
pós-operatório mostra-se bastante satisfatório.
Outro ponto questionável quanto ao aspecto estético final da região genital do
paciente é a presença de discromias nas áreas escoriadas e doadoras de enxerto,
entretanto, esta complicação não tem relação direta com a técnica descrita neste
trabalho.
Uma vez que as lesões traumáticas possuem uma gama variada de etiologias e cursam
com
feridas de características muito peculiares, existe uma dificuldade em se coletar
múltiplos casos para replicação da técnica. Até o momento, temos apenas este caso
em
que foi utilizado o retalho prepucial em espiral.
CONCLUSÃO
Apesar de a cirurgia de reconstrução de pênis ter se desenvolvido nas últimas
décadas, sua reconstrução continua sendo um grande desafio do ponto de vista
anatômico, funcional e estético.
Sempre que possível, é importante tentar preservar e utilizar, nas reconstruções de
lesões pós-traumáticas, o tecido peniano remanescente5, pois não existe no corpo uma área doadora com as mesmas
características de distensibilidade, cor e ausência de pelos.
Uma vez que a pele do prepúcio suporta grandes estiramentos, acreditamos que no
seguimento deste paciente deveremos observar um alongamento gradual do pênis,
com
recuperação de boa parte do comprimento perdido. Como não houve perda das estruturas
eréteis do pênis e o paciente relata estar tendo ereções, esperamos que a própria
fisiologia do órgão vá funcionar como expansor cutâneo, inclusive impedindo
possíveis retrações cicatriciais.
Entendemos que por se tratar de caso único, carece de evidência científica
estatisticamente significativa, mas esperamos que este artigo possa ser útil em
casos similares.
AGRADECIMENTOS
Registramos nosso agradecimento a todos os funcionários e colegas do Hospital
Universitário Ciências Médicas, em especial ao Dr. José Cesário da Silva Almada
Lima, chefe do Serviço de Cirurgia Plástica e ao Dr. Lucio Flavio Manetta Martins
Belem, regente do programa de Residência Médica/Especialização em Cirurgia Plástica
do HUCM/FELUMA.
REFERÊNCIAS
1. Monstrey S, Ceulemans P, Roche N, Houtmeyers P, Lumen N, Hoebeke P.
Reconstrução dos defeitos genitais masculinos. In: Song DH, Neligan PC, eds.
Cirurgia Plástica: tronco, extremidade inferior e queimaduras. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Elsevier; 2015. p. 297-325.
2. Figueiredo JCA, Kawasaki MC. Reconstrução da Genitália Masculina.
In: Mélega JM, ed. Cirurgia Plástica Fundamentos e Arte - Cirurgia Reparadora
de
Tronco e Membros. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. p. 329-42.
3. Garaffa G, Sansalone S, Ralph DJ. Penile Reconstruction. Asian J
Androl. 2013;15(1):16-9. DOI: 10.1038/aja.2012.9. Epub 2012 Mar 19 DOI:
http://dx.doi.org/10.1038/aja.2012.9
4. Thakar HJ, Dugi DD 3rd. Skin grafting of the penis. Urol Clin North
Am. 2013;40(3):439-48. DOI: 10.1016/j.ucl.2013.04.004. Epub 2013 Jun 28 DOI:
http://dx.doi.org/10.1016/j.ucl.2013.04.004
5. Fuller SM, Roughton MC, Gottlieb LJ. The inner prepuce flap for
penile scald burns. J Burn Care Res. 2014;35(4):e250-7. DOI:
10.1097/BCR.0000000000000055 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/BCR.0000000000000055
1. Hospital Universitário Ciências Médicas,
Belo Horizonte, MG, Brasil.
Endereço Autor: Juliana Metzker Oliveira
Bergamo
Rua doa Aimorés, nº 2896 - Santo Agostinho
Belo Horizonte,
MG, Brasil CEP 30140-073
E-mail: jumobergamo@gmail.com