ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175
Epicranial aponeurosis in the second stage of ear reconstruction
A Aponeurose Epicraniana no Segundo Tempo da Reconstrução de Orelha
Original Article -
Year2005 -
Volume20 -
Issue
1
Talita FrancoI, Diogo FrancoII, Pedro FaveretIII
ABSTRACT
The authors analyze the routine employed at the Hospital Clementino Fraga Filho of the Universidade Federal do Rio de Janeiro in the treatment of microtic ears, calling attention to details in the positioning and sculpturing of the new ear and recommending the use of the epicranial aponeurosis (galea) to protect the grafted cartilage, during the retroauricular sulcus construction.
Keywords:
Ear external, abnormalities. Ear external, surgery. Surgical flaps. Cartilage, transplantation
RESUMO
Os autores apresentam a sistematização adotada no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro na correção das microtias. Mostram a importância dos detalhes de posicionamento e modelagem da neo-orelha e a conveniência de se usar a aponeurose epicraniana (gálea), no segundo tempo da reconstrução, para proteger a cartilagem enxertada.
Palavras-chave:
Orelha externa, anormalidades. Orelha externa, cirurgia. Retalhos cirúrgicos. Cartilagem, transplante
INTRODUÇÃO
A qualidade do resultado do tratamento cirúrgico das microtias melhorou muito nos últimos anos, em alguns poucos locais que se dedicam a este tipo de procedimento e adquirem experiência baseada no aumento do número de casos. Não é, entretanto, uma cirurgia que deva ser realizada por qualquer cirurgião ou qualquer Serviço, de forma esporádica. Há uma grande quantidade de pequenos detalhes que fazem a diferença entre o bom resultado e o medíocre, freqüentemente aceito quando não se teve a oportunidade de ver o grau de excelência a que podem chegar cirurgiões do gabarito de Brent1, Nagata2 e Firmin3.
Microtias não são tão comuns como fendas lábio-palatais. A incidência varia entre 1:6000 (média geral), 1:4000 (japoneses) e 1:1000 (índios navajos)4. Por este motivo, embora a maioria dos Serviços de Cirurgia Plástica opere fendas, muitos não operam, operam raramente, ou operam inadequadamente, as malformações congênitas das orelhas.
É verdade que, para um portador de microtia, a presença de um simulacro de orelha que se projete do crânio, esteja posicionado em simetria com o lado oposto e permita o uso de óculos, pode representar quase um milagre. Mas, para o cirurgião que já viu o que mãos hábeis podem obter, a meta deve ser o melhor e isto só se atinge com muita observação, muitos cuidados e uma dose de arte.
A reconstrução total da orelha compreende, em geral, dois tempos operatórios, entre os quais deverão transcorrer, no mínimo, quatro meses:
1) Enxertia de cartilagem costal modelada
2) Liberação da orelha em relação ao crânio
Há quem pense que o primeiro tempo da reconstrução é difícil e o segundo fácil. É verdade que a modelagem de uma estrutura cartilaginosa capaz de imitar os contornos naturais da orelha exige paciência, experiência e habilidade. Entretanto, bons resultados obtidos na primeira cirurgia podem ser inutilizados se, durante a liberação da neo-orelha, não conseguirmos o revestimento adequado da face posterior, o afastamento suficiente do pavilhão em relação ao crânio e o mínimo possível de cicatrizes visíveis. A utilização da aponeurose epicraniana auxilia no preenchimento destas três finalidades.
1º Tempo cirúrgico: construção e introdução do arcabouço cartilaginoso
A incisão da parede torácica é oblíqua, acompanhando a reborda costal. O bloco cartilaginoso pode ser retirado do mesmo lado da microtia ou do lado oposto. Utilizando-se o lado oposto, aproveita-se a curvatura natural da reborda1. Utilizando-se o mesmo lado, a disposição da equipe é facilitada2. A parte principal do bloco inclui a sincondrose entre a sexta e a sétima ou entre a sétima e a oitava costelas. Servirá para a base da estrutura. Outros segmentos devem ser retirados para confeccionar a hélice, os contornos da antélice, o tragus e o antitragus (Figura 1). Será necessário ainda um fragmento com dimensões de, pelo menos, 3 x 1 x 1 cm que será armazenado sob a pele da incisão torácica para ser usado no momento da liberação da neo-orelha (2º tempo operatório). Um molde transparente, obtido da orelha normal, servirá como guia para esculpir o arcabouço.
Figura 1 - Cartilagem obtida do tórax, antes da modelagem.
Os contornos da hélice e da antélice devem ser exagerados para que se tornem evidentes através da pele, o que se consegue com a justaposição de peças modeladas e fixadas à base mediante pontos de aço 5-0 (Figura 2).
Figura 2 - Bloco esculpido segundo molde da orelha oposta.
Ao lançar as bases da cirurgia reconstrutora da orelha, Tanzer5 (1959) recomendava que o lóbulo, quase sempre presente, fosse rodado durante este primeiro tempo cirúrgico e através da incisão fosse introduzido o bloco de cartilagem modelado. Brent1 (1980) prefere fazer pequena incisão anteriormente aos vestígios auriculares, que são ressecados, dissecando a cavidade receptora a partir daí e deixando o lóbulo para ser rodado no segundo tempo. Nagata2 (1993) e Firmin3 (1998) voltam a fazer a rotação do lóbulo no primeiro tempo operatório, incluindo nele a parte inferior do bloco cartilaginoso. Preferimos rodar o lóbulo no momento da inclusão da cartilagem, não só porque facilita sua introdução, como também porque a neo-orelha já adquire características de normalidade.
A cavidade deve ser ampla, para conter o bloco sem muita tensão. O descolamento é feito superficialmente, cuidando-se em não lesar o delicado plexo vascular subdérmico. Não devem ser usadas soluções contendo epinefrina. A ressecção dos fragmentos cartilaginosos malformados fornece um ganho extra de pele no retalho dissecado.
Um ou dois drenos de sucção, que podem ser fabricados usando um cateter tipo escalpe com sua agulha inserida num tubo com vácuo, são usados para drenar a loja e adaptar intimamente a pele ao bloco de cartilagem (Figura 3). No pós-operatório, o vácuo deve ser trocado várias vezes ao dia, durante vários dias, até que a drenagem se torne desprezível. Pontos captonados são úteis, porém perigosos e devem ser evitados em peles muito finas ou onde haja qualquer indício de isquemia.
Figura 3 - Primeiro tempo: enxertia da cartilagem modelada. Observar dreno de aspiração, graças ao qual os contornos da neo-orelha ficam bem evidentes.
Fragmentos de algodão molhado modelam as saliências e reentrâncias da pele sobre o bloco, seguindo-se curativo acolchoado e enfaixamento com atadura de crepom, sem compressão. Podemos utilizar, também, molde de resina para manter os contornos da cartilagem.
2º Tempo cirúrgico: liberação da nova orelha
Cerca de 4 meses após a inclusão do bloco de cartilagem, a orelha poderá ser liberada do crânio, mediante incisão que acompanha o contorno do relevo cartilaginoso. Descola-se toda a parte equivalente ao pavilhão e ao lóbulo (se este já não estiver solto), cuidando-se em não expor a cartilagem enxertada. O fragmento de cartilagem que foi guardado na parede torácica é recuperado e usado como escora para manter a orelha afastada do crânio, simulando o contorno posterior da concha. Dois ou três pontos de aço ou mononylon fixam este fragmento ao arcabouço cartilaginoso, por um lado, e ao periósteo da mastóide, pelo outro (Figura 4).
Figura 4A - Retirada do enxerto de pele e do fragmento de cartilagem armazenado no tórax.
Figura 4B - O fragmento de cartilagem será usado para escorar e projetar a orelha liberada.
A face posterior da neo-orelha liberada deverá ser revestida com retalho de aponeurose epicraniana, temporal ou occipital, que protegerá a cartilagem e sobre a qual um enxerto de pele encontrará bom leito para sua integração (Figuras 5 e 6). Antes de iniciar a cirurgia devemos assinalar o trajeto das artérias temporal superficial e occipital, com o uso do Doppler.
Figura 5 - Segundo tempo: liberação da orelha usando gálea occipital.
Figura 6 - Liberação da orelha usando gálea temporal
Quando possível, preferimos o uso da aponeurose occipital, pois, para sua obtenção basta descolar a borda posterior da incisão de liberação da orelha. Entretanto, a aponeurose não é aí muito bem individualizada, sobretudo em crianças e em sua porção inferior, podendo não ser suficiente para cobrir toda a face posterior da orelha. A aponeurose temporal é, então, utilizada.
O preparo do retalho de gálea temporal é muito trabalhoso. A incisão cutânea tem a forma de um Z, traçado sobre o trajeto do ramo ascendente da artéria temporal. O uso do bisturi bipolar é fundamental na hemostasia. O retalho deve ser longo o suficiente para que, após a rotação, sua extremidade atinja o lóbulo da orelha. Não precisa ser largo, mas deve incluir os vasos temporais. É conveniente usar dreno de aspiração na loja de dissecção temporal.
Qualquer que seja a gálea utilizada, esta deve ser suturada à borda da face posterior da orelha, de forma a cobrir o enxerto usado como escora e tornar mais espessa toda a face posterior da neo-orelha, fornecendo melhor leito para o enxerto de pele.
Este enxerto de pele pode ser retirado do couro cabeludo3, desde que se tenha um dermátomo adequado. Preferimos obtê-lo da borda da cicatriz torácica onde será feita obrigatoriamente uma incisão para resgatar o fragmento de cartilagem armazenado.
Apenas a face posterior da orelha deve ser coberta com enxerto. O restante do fechamento é feito pelo avançamento do retalho de pele occipital.
DISCUSSÃO
Reconstruções de orelha, totais ou parciais, para tratamento de microtias ou de lesões adquiridas, são cirurgias extremamente difíceis, tanto no aspecto da conceituação quanto no da execução. Inicialmente, é preciso "entender" a deformidade: o que falta, onde falta, o que se aproveita, como se aproveita. Durante a cirurgia propriamente dita, há que decidir de onde retirar a cartilagem e de quanto se precisa. A obtenção do enxerto pode ser trabalhosa, o sangramento abundante e há o risco de pneumotórax. Nestas circunstâncias surge a tentação de retirar menos cartilagem do que se planejou inicialmente, o que levará fatalmente a dificuldades na confecção da estrutura da orelha com todos os seus relevos.
O posicionamento da neo-orelha deve ser rigorosamente calculado. Não há nada mais frustrante do que se perceber que a orelha reconstruída, por melhor que seja, está assimétrica em relação à orelha normal ou com seu eixo fora da posição ideal. Este tipo de erro é quase impossível de ser resolvido após a liberação da orelha. Em pacientes com microssomia, nos quais toda a hemiface apresenta alterações de crescimento, encontrar um posicionamento equilibrado pode ser ainda mais difícil. O ideal seria fazer a distração prévia dos ossos afetados, mas este procedimento ainda não está disponível na maioria dos hospitais. Esculpir o bloco exige paciência, delicadeza e experiência. As primeiras orelhas modeladas por um cirurgião serão certamente mais grosseiras. Com o tempo, ele poderá refinar sua escultura. É preciso, porém, habilidade manual natural, instrumental adequado e perseverança, para não desistir face aos resultados menos favoráveis. A drenagem por aspiração é condição decisiva. Se não funcionar corretamente, os relevos tão trabalhosamente esculpidos se apagarão rapidamente pela deposição de tecido fibroso onde a pele não estiver perfeitamente aderida à cartilagem. Mesmo com a drenagem, pequenas quantidades de líquido seroso podem se acumular em alguns locais septados e devem ser aspiradas por punção percutânea, no pós-operatório imediato.
Não havendo complicações, a satisfação dos pacientes com o resultado do primeiro tempo operatório já é muito grande (Figura 7). Brent1 sugere mesmo que, em alguns casos de relevos bem definidos, a liberação não seja necessariamente realizada. Embora tal sugestão seja discutível, não há urgência para a liberação da neo-orelha após o tempo mínimo de espera de 4 meses desde a inclusão do bloco cartilaginoso esculpido. Um detalhe de extrema importância consiste em só liberar a neo-orelha se ou quando estivermos completamente satisfeitos com o tamanho e os contornos obtidos. Depois de liberada, torna-se muito difícil fazer modificações.
Figura 7A - Pré-operatório. Figura 7B - Pós-operatório imediato. Figura 7C - Pós-operatório de 8 meses.
A utilização da gálea para revestir a face posterior da neo-orelha trouxe melhora significativa nos resultados. A vantagem mais expressiva está em permitir o uso do enxerto de cartilagem armazenado na parede torácica para servir como escora e projetar melhor o pavilhão, dando mais individualidade à concha (Figuras 8 e 9). Quando não se usa este enxerto, a orelha não adquire o afastamento necessário, tendendo a apagar o sulco retro-auricular.
Figura 8 - Liberação com gálea temporal. Em A e C, pré-operatório. Em B e D, pós-operatório de 2 anos.
Figura 9 - Liberação com gálea occipital. Em A e C, pré-operatório. Em B e D, pós-operatório de 1 ano.
Nossa preferência pelo uso da gálea occipital deve-se não somente a maior facilidade de obtenção, como também à conveniência de se preservar, para eventual necessidade futura, a gálea temporal que é bem mais abundante e versátil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Brent B. The correction of microtia with autogenous cartilage grafts: the classic deformity. Plast Reconstr Surg. 1980;66(1):1-12.
2. Nagata S. A new method of total reconstruction of the auricle for microtia. Plast Reconstr Surg. 1993;92(2):187-201.
3. Firmin F. Ear reconstruction in cases of typical microtia: personal experience based on 352 microtic ear corrections. Scand J Plast Reconstr Hand Surg. 1998;32(1):35-47.
4. Franco T, Franco D. Cirurgia reparadora de nariz e orelha. In: Franco T, editor. Princípios de cirurgia plástica. Rio de Janeiro: Atheneu; 2002. p.419-74.
5. Tanzer RC. Total reconstruction of the external ear. Plast Reconstr Surg. 1959;23(1):1-15.
I. Professora Titular de Cirurgia Plástica da UFRJ, Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.
II. Doutor em Cirurgia Plástica pela UFRJ, Assistente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.
III. Mestrando do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.
Correspondência para:
Talita Franco
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Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ.
Artigo recebido: 02/10/2003
Artigo aprovado: 06/11/2003
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