INTRODUÇÃO
A lesão de Morel-Lavallée (LML) é uma condição rara e potencialmente grave, caracterizada
por um acúmulo de fluido e tecido necrótico entre a pele e a fáscia muscular subjacente,
causado por uma força de cisalhamento. Embora seja um evento incomum, é importante
reconhecer os sinais e sintomas da lesão para diagnóstico e tratamento precoces.
A lesão é frequentemente associada a traumas de alta energia, como acidentes automobilísticos,
quedas ou lesões esportivas, e afeta mais comumente áreas de protuberância óssea,
como coxas, quadril e região lombar¹. Por ser uma lesão incomum, há poucos dados estatísticos
sobre sua prevalência, sendo estipulada uma razão aproximada de 2:1 em homens em relação
a mulheres, provavelmente pelo maior número de casos de politraumas em homens2, além de uma prevalência de 8,3% da lesão no contexto de trauma pélvico3.
O diagnóstico preciso da LML é crucial para um tratamento adequado e prevenção de
complicações. O diagnóstico é tipicamente realizado por meio de exame físico, história
clínica e exames de imagem, como ultrassonografia (USG) e ressonância magnética (RM).
A USG pode revelar uma imagem anecoica em meio a uma massa hiperecoica, enquanto a
RM pode apresentar uma lesão homogênea hiperdensa, localizada anteriormente à camada
muscular e posterior à hipoderme. No entanto, é importante ressaltar que os achados
de imagem não são específicos, e devem ser considerados juntamente com a história
clínica e exame físico para um diagnóstico correto4.
OBJETIVO
Este artigo tem como objetivo relatar um caso de sucesso no tratamento da lesão de
Morel-Lavallée em um hospital secundário, destacando a abordagem cirúrgica realizada
e os resultados alcançados.
RELATO DE CASO
Homem de 36 anos com história de queda de moto em alta velocidade com lesão exclusiva
de membro inferior direito apresentando apenas escoriações no joelho direito, procura
atendimento no médico Hospital São Luiz Gonzaga, em São Paulo-SP após 3 dias do acidente,
com o aparecimento de edema local, calafrios e sinais flogísticos. Paciente tabagista,
sem outros antecedentes relevantes.
Realizada USG de membro inferior direito, evidenciando pele íntegra com tecido celular
subcutâneo espessado e de aspecto heterogêneo por todo o membro inferior direito (Figura 1), além de uma tomografia computadorizada (TC) evidenciando as mesmas alterações (Figura 2).
Figura 1 - Ultrassonografia de membro inferior direito no 4º dia de internação evidenciando pele
e tecido adiposo subcutâneo espessado, de aspecto heterogêneo e com finas lâminas
líquidas de permeio.
Figura 1 - Ultrassonografia de membro inferior direito no 4º dia de internação evidenciando pele
e tecido adiposo subcutâneo espessado, de aspecto heterogêneo e com finas lâminas
líquidas de permeio.
Figura 2 - Tomografia computadorizada de membros inferiores no 4º dia de internação evidenciando
edema difuso de pele e subcutâneo, sem perda de continuidade.
Figura 2 - Tomografia computadorizada de membros inferiores no 4º dia de internação evidenciando
edema difuso de pele e subcutâneo, sem perda de continuidade.
Logo no início da internação, houve piora do quadro, apresentando febre, náusea e
aumento do edema e necrose tecidual, com necessidade de antibioticoterapia guiada
por hemocultura (piperacilina/tazobactam + oxacilina) associada a escarectomia e desbridamento
do tecido desvitalizado no centro cirúrgico após 4 dias de internação e novamente
após 19 dias (Figura 3).
Figura 3 - Desbridamento da lesão no centro cirúrgico.
Figura 3 - Desbridamento da lesão no centro cirúrgico.
Na quarta semana, foi repetido o desbridamento do tecido desvitalizado em centro cirúrgico
sob raquianestesia, associando desta vez um curativo a vácuo na lesão por 48 horas,
sem sucesso na estabilização do quadro infeccioso local. Optou-se pelo escalonamento
da antibioticoterapia para meropenem e polimixina B por 13 dias em conjunto com a
lavagem e troca de curativo simples diária, associada a novo desbridamento do tecido
desvitalizado e infeccionado semanalmente por duas semanas.
Na sexta semana, com controle do quadro infeccioso, foi realizada sutura com inversão
das bordas, sutura elástica nos tecidos viáveis na coxa (Figura 4) e desbridamento nos demais tecidos lesionados (Figuras 5 e 6), com retirada da sutura elástica após 7 dias. Os níveis de hemoglobina foram mantidos
acima de 10 g/dl durante todo o tratamento, com suporte transfusional de 9 concentrados
de hemácias no total.
Figura 4 - Aspecto pós-operatório da sutura elástica.
Figura 4 - Aspecto pós-operatório da sutura elástica.
Figura 5 - Lesão na perna direita.
Figura 5 - Lesão na perna direita.
Figura 6 - Lesão na coxa direita.
Figura 6 - Lesão na coxa direita.
Com o sucesso na redução do leito cruento da lesão, foi programada troca de curativo
a cada 3 dias com sulfadiazina de prata e novo desbridamento em centro cirúrgico semanal.
Na nona semana, foi realizada enxertia de pele parcial em tornozelo e dorso do pé
direito com área doadora de coxa esquerda, seguida de enxerto de pele parcial na coxa
direita após mais duas semanas devido ao não fechamento total da lesão após a sutura
elástica devido à dimensão da lesão (Figura 7).
Figura 7 - Enxerto de pele parcial na coxa direita.
Figura 7 - Enxerto de pele parcial na coxa direita.
Durante a internação, foi realizada fisioterapia motora em dias alternados visando
a manutenção da funcionalidade do membro inferior. O paciente apresentou resolução
total do quadro após 3 meses, com manutenção da internação por mais um mês para realização
de fisioterapia por razões sociais, recebendo alta após 4 meses de internação, deambulando
sem auxílio, com o enxerto integrado sem deiscência (Figura 8).
Figura 8 - Pós-operatório de 30 dias da enxertia de pele parcial na coxa direita e perna direita.
Figura 8 - Pós-operatório de 30 dias da enxertia de pele parcial na coxa direita e perna direita.
DISCUSSÃO
O tratamento da LML é altamente individualizado, levando em consideração a extensão
da lesão, a presença de complicações associadas e a resposta do paciente ao tratamento
inicial. As opções terapêuticas podem variar desde abordagens conservadoras até intervenções
mais invasivas, dependendo da gravidade e da evolução da lesão.
Em lesões de menor gravidade, a drenagem do fluido acumulado é frequentemente realizada
por meio de aspiração percutânea guiada por imagem ou uso de drenos fechados, visando
a remoção do líquido e o estabelecimento de um ambiente propício à cicatrização. O
desbridamento cirúrgico é uma opção terapêutica mais invasiva que pode ser indicada
em casos de tecido necrótico extenso, presença de abscessos ou infecção persistente.
A remoção completa do tecido desvitalizado e contaminado é essencial para promover
a cicatrização adequada e evitar complicações infecciosas subsequentes5, 6.
O caso relatado ilustra bem essa abordagem terapêutica. O paciente sofreu o trauma,
apresentando apenas escoriações no joelho direito inicialmente, mas evolui com edema
local, sinais flogísticos e febre após três dias. A ultrassonografia e a tomografia
computadorizada confirmaram o diagnóstico de LML. O paciente evoluiu para sepse, necessitando
de antibioticoterapia direcionada e múltiplos desbridamentos cirúrgicos para remover
o tecido necrosado. Durante a internação, a complexidade do manejo incluiu a utilização
de curativos a vácuo, troca de antibióticos e repetidos desbridamentos, demonstrando
a importância de uma abordagem agressiva, individualizada e multimodal para casos
complicados.
Após o desbridamento cirúrgico, o uso de curativos a vácuo desempenha um papel fundamental
na estabilização da lesão e progressão para tecido de granulação. Esses curativos
ajudam a reduzir a formação de seroma, promovem a aderência dos tecidos, minimizam
o risco de infecção secundária e favorecem a cicatrização por segunda intenção7.
Em situações mais graves, em que há envolvimento significativo do tecido muscular
subjacente, a cirurgia pode ser necessária para a remoção do tecido necrótico e para
a reparação das lesões musculares8. Nesses casos, a reconstrução tecidual pode ser realizada por meio de enxertos de
pele, retalhos musculares ou técnicas de fechamento primário, dependendo da extensão
da lesão e das características do paciente9, 10. Esses procedimentos visam restabelecer a integridade estrutural e funcional da região
afetada, permitindo a recuperação adequada da função muscular.
O tratamento do nosso paciente incluiu várias dessas estratégias, culminando em enxertos
de pele e sutura elástica para a recuperação funcional. A fisioterapia foi essencial
para a reabilitação, permitindo que o paciente recuperasse a funcionalidade completa
do membro afetado. O processo de recuperação foi prolongado, com alta hospitalar após
quatro meses de internação, destacando a necessidade de um manejo multidisciplinar
e prolongado para otimizar os resultados clínicos.
CONCLUSÃO
O caso apresentado ressalta a importância crucial do diagnóstico rápido e do manejo
cirúrgico precoce na lesão de Morel-Lavallée. A prontidão na identificação desse tipo
de lesão é fundamental para evitar complicações graves e favorecer uma recuperação
mais eficaz.
A intervenção cirúrgica com o desbridamento dos tecidos desvitalizados em ambiente
cirúrgico emerge como um elemento-chave para limitar o avanço da lesão, prevenir infecções
secundárias e promover a cicatrização saudável, com posterior aplicação de enxertos
de pele parciais conforme necessário.
Além disso, a abordagem multidisciplinar é um aspecto vital desse processo, evidenciado
pela colaboração estreita com uma equipe de fisioterapia motora. A integração de estratégias
de reabilitação desde as fases iniciais do tratamento é fundamental para otimizar
a função motora e acelerar a recuperação do paciente.
REFERÊNCIAS
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do tratamento cirúrgico da lesão de Morel-Lavallée. Rev Bras Ortop. 2015;50(2):148-52.
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lesion revisited: management in spinopelvic dissociation. Spine J. 2015;15(6):e45-51.
3. Nickerson TP Zielinski MD, Jenkins DH, Schiller HJ. The Mayo Clinic experience with
Morel-Lavallée lesions: establishment of a practice management guideline. J Trauma
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A review of the literature. J Orthop. 2018;15(4):917-21. DOI: 10.1016/j.jor.2018.08.032
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7. Camargo PAB, Bertanha M, Moura R, Jaldin RG, Yoshida RA, Pimenta REF et al. Uso de
curativo a vácuo como terapia adjuvante na cicatrização de sítio cirúrgico infectado.
J Vasc Bras. 2016;15(4):312-6.
8. Nakajima T, Tada K, Nakada M, Matsuta M, Tsuchiya H. Two Cases of Morel-Lavallée Lesion
Which Resulted in a Wide Skin Necrosis from a Small Laceration. Case Rep Orthop. 2020;2020:5292937.
DOI: 10.1155/2020/5292937
9. Monte ALR. Tratamento das lesões por desenluvamento cutâneo traumático. Rev Bras Cir
Plást. 2012;27(3 Suppl.1):89.
10. Badjate DM, Jain D, Phansopkar P, Wadhokar OC. A Physical Therapy Rehabilitative Approach
in Improving Activities of Daily Living in a Patient With Morel-Lavallée Syndrome:
A Case Report. Cureus. 2022;14(9):e29523. DOI: 10.7759/cureus.29523
1. Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo, SP Brasil
2. Hospital São Luiz Gonzaga, São Paulo, SP Brasil
Autor correspondente: Bruno Losi Zacharias R. Dr. Cesário Mota Júnior, 112, Vila Buarque, São Paulo, SP Brasil. CEP: 01221-010.
E-mail: bruno_zaka@hotmail.com
Artigo submetido: 16/03/2024.
Artigo aceito: 27/07/2024.
Conflitos de interesse: não há.