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Original Article - Year2023 - Volume38 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2023RBCP0808-PT

RESUMO

Introdução: A reconstrução oncológica de defeitos extensos em cabeça e pescoço impõe ao cirurgião plástico a difícil decisão entre o uso de retalhos livres e retalhos pediculados. O retalho supraclavicular é um dos principais exemplos de retalho pediculado, sendo versátil, com espessura delgada e cor semelhante à região a ser reconstruída.
Método: Um estudo retrospectivo foi realizado através da coleta de dados de prontuário de pacientes internados no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, entre dezembro de 2010 e março de 2020.
Resultados: Dentre os 62 pacientes reconstruídos com retalho supraclavicular, 37 eram do sexo masculino e 25 do sexo feminino. Cinquenta e oito pacientes (93,5%) possuíam alguma comorbidade associada. Ao todo, 27 complicações relacionadas ao retalho (43,5%) foram registradas, sendo 5 necroses totais (8%).
Conclusão: O retalho supraclavicular possui importante papel nas reconstruções oncológicas de cabeça e pescoço e deve ser considerado como opção em pacientes maus candidatos a retalhos microcirúrgicos.

Palavras-chave: Neoplasias de cabeça e pescoço; Retalho perfurante; Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos; Relatos de casos; Cabeça; Pescoço; Pacientes.

ABSTRACT

Introduction: The oncological reconstruction of extensive defects in the head and neck requires the plastic surgeon to make a difficult decision between the use of free flaps and pedicled flaps. The supraclavicular flap is one of the main examples of a pedicled flap, being versatile, with a thin thickness and similar color to the region to be reconstructed.
Method: A retrospective study was carried out by collecting data from medical records of patients admitted to the Cancer Institute of the State of São Paulo between December 2010 and March 2020.
Results: Among the 62 patients reconstructed with a supraclavicular flap, 37 were male and 25 female. Fifty-eight patients (93.5%) had some associated comorbidity. In total, 27 complications related to the flap (43.5%) were recorded, 5 of which were total necrosis (8%).
Conclusion: The supraclavicular flap plays an important role in head and neck oncological reconstructions and should be considered as an option in patients who are poor candidates for microsurgical flaps.

Keywords: Head and neck neoplasms; Perforator flap; Reconstructive surgical procedures; Case reports; Head; Neck; Patients.


INTRODUÇÃO

A reconstrução oncológica de áreas extensas em cabeça e pescoço impõe ao cirurgião plástico a difícil decisão entre o uso de retalhos livres e retalhos pediculados. Retalhos livres são classicamente considerados o tratamento padrão-ouro, mas prolongam o tempo cirúrgico, aumentam os custos do procedimento e o tempo da recuperação pós-operatória. Assim, retalhos pediculados ressurgiram nos últimos anos como opção a ser considerada em pacientes idosos, com câncer avançado e clinicamente debilitados, que se beneficiam de técnicas reconstrutivas mais simples1,2.

Dentre os retalhos pediculados, podemos utilizar retalhos miocutâneos e fasciocutâneos. Os primeiros costumam ser a escolha em áreas mais profundas, que demandam tecidos moles para preenchimento3. Por outro lado, retalhos fasciocutâneos são excelentes opções para coberturas mais finas, adaptáveis ao contorno no segmento cervicofacial.

O retalho supraclavicular tem sido cada vez mais utilizado para reconstruções de defeitos após ressecções oncológicas de cabeça e pescoço. É versátil, possui fina espessura e cor semelhante à região a ser reconstruída. Além disso, apresenta vascularização confiável e é de fácil dissecção, sendo reprodutível em serviços de baixa complexidade.

OBJETIVO

Apresentar uma série de casos de retalho supraclavicular, demonstrando a viabilidade dessa cirurgia para reconstrução oncológica em cabeça e pescoço em tumores de diversos tipos histológicos e diferentes estadios.

MÉTODOS

Um estudo retrospectivo foi realizado através da coleta de dados de prontuário de pacientes internados no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, entre dezembro de 2010 e março de 2020. Nesse período, 62 pacientes foram submetidos a reconstrução com retalhos supraclaviculares pela equipe de cirurgia plástica para reconstruções oncológicas de cabeça e pescoço.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HCFMUSP (Número CAAE: 58900522.6.0000.0068).

As seguintes informações foram coletadas: dados epidemiológicos, comorbidades, tipo histológico e estadiamento do tumor tratado, tipo de ressecção, área do defeito (calculada por análise fotográfica), margens no anatomopatológico, realização de terapia complementar neoadjuvante ou adjuvante, recidiva, complicações. A área do defeito foi calculada por análise fotográfica com o uso do software Adobe Photoshop®.

RESULTADOS

Dentre os 62 pacientes reconstruídos com retalho supraclavicular, 37 eram do sexo masculino e 25 do sexo feminino. Cinquenta e oito pacientes (93,5%) possuíam alguma comorbidade associada, sendo as mais prevalentes a hipertensão arterial sistêmica (53,2%), tabagismo (53,2%) e etilismo (30,6%) (Tabela 1). A idade média foi de 64,1 anos, com mediana de 65,5 anos.

Tabela 1 - Características dos pacientes.
Valor/ Porcentagem
Sexo Feminino 21 (41,1%)
Masculino 30 (58,8%)
Comorbidades Hipertensão arterial sistêmica 26 ( 55,3%)
Tabagismo 25 ( 53,2%)
Etilismo 18 (38,3%)
Diabetes mellitus 15 (31,9%)
Dislipidemia 6 (12,8%)
Obesidade 5 (10,6%)
Tipo histológico Carcinoma
espinocelular
36 (70,5%)
Sarcoma 5 (9,8%)
Carcinoma
basocelular
5 (9,8%)
Tumor de
glândula salivar
4 (7,8%)
Tumor
neuroendócrino
1 (1,9%)
Margens livres Sim 37 (72,5%)
Não 13 (25,5%)
Desconhecida 1 (1,9%)
Esvaziamento cervical Seletivo 26 (50,9%)
Radical 7 (13,7%)
Não realizado 18 (35,3%)
Neoadjuvância Sim 2 (3,9%)
Não 49 (96%)
Adjuvância Sim 30 (63,8%)
Não 21 (41,2%)
Reconstrução adicional Sim 11 (21,6%)
Não 40 (78,4%)
Complicações do retalho Sim 27 (52,9%)
Não 24 (47%)
Complicações da área doadora Sim 4 (7,8%)
Não 47 (92,2%)
Tabela 1 - Características dos pacientes.

O tipo histológico mais prevalente foi o carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço, presente em 45 casos (72,5%), sendo 9 de laringe. Foram também tratados sarcoma (8%), carcinoma basocelular de pele (6%), tumores de glândulas salivares (4%), tumores neuroendócrinos (1,96%) e melanoma (1,61%).

Entre os carcinomas espinocelulares (CEC), os estádios T2 (33,3%) e T3 (37,8%) foram os mais prevalentes. Apenas 4 casos de tumor inicial, T1 (8,9%), e 8 casos de tumor localmente avançado, T4 (17,8%), foram incluídos.

Margens livres foram obtidas em 48 ressecções (77,4%). Em 13 pacientes, margens comprometidas foram mantidas devido à morbidade da ampliação necessária, mas todos foram submetidos a radioterapia adjuvante. Houve ainda 1 caso de margem desconhecida, uma vez que a ressecção foi realizada em serviço externo, sem registro em prontuário. A área final a ser reconstruída foi em média de 40,62cm2, variando de 0,78cm2 (fístula salivar) a 137,15cm2.

Na Figura 1, temos um paciente que realizou parotidectomia total ampliada para a pele por lipossarcoma mixoide. Na Figura 2 vemos o mesmo paciente e seu resultado pós-operatório de reconstrução com retalho supraclavicular pediculado. Na Figura 3, o mesmo paciente durante o planejamento intraoperatório.

Figura 1 - Pré-operatório (A). Intraoperatório, com demarcação do retalho supraclavicular, baseando-se na localização adequada de seu pedículo, com ilha de pele 25 x 7,5cm e extensão da área cruenta de 8 x 7,5cm após parotidectomia total ampliada para pele (B).

Figura 2 - Resultado pós-operatório: visão frontal (A) e perfil (B) de área receptora. Área doadora (C).

Figura 3 - À esquerda, intraoperatório, demonstrando o posicionamento do retalho para a cobertura do defeito. À direita, pós-operatório imediato da reconstrução do defeito com retalho supraclavicular e fechamento primário da área doadora.

Esvaziamento cervical foi efetuado em 41 casos (66,1%), sendo 32 esvaziamentos seletivos (51,6%) e 9 radicais modificados (14,5%). Vinte e um pacientes (33,9%) não foram submetidos a linfadenectomia. Apenas três pacientes receberam neoadjuvância com quimioterapia antes do procedimento. Adjuvância foi realizada em 34 pacientes, sendo que 23 receberam exclusivamente radioterapia e 11 quimiorradioterapia.

Para cobertura total da área, alguma forma de reconstrução adicional, além do retalho supraclavicular, foi necessária em 13 pacientes (21%). Os mais utilizados foram retalho microcirúrgico de fíbula (4) e enxerto de pele (3). Reconstrução complementar com retalho osteomiocutâneo microcirúrgico de fíbula foi realizada em 4 casos, além de enxerto de nervo sural para reconstrução do nervo facial em 1 paciente.

Ao todo, 37 complicações relacionadas ao retalho (43,5%) foram registradas, sendo 16 necroses parciais (25,8%), 11 deiscências (17,7%), 5 necroses totais (8%), 3 fístulas salivares (4,8%), 1 hematoma (1,6%) e 1 sangramento (1,6%). Reoperação foi necessária em 15 pacientes (29,4%), sendo que 9 foram convertidos para outra forma de reconstrução.

Em todos os casos a área doadora foi fechada primariamente. Complicações na área doadora ocorreram em 4 pacientes, sendo 3 deiscências e 1 seroma. Todos foram tratados de forma conservadora.

A média de cirurgias realizadas por paciente até finalização da reconstrução, incluindo o tratamento de complicações e retoques, foi de 2,92.

As informações estão reunidas na Tabela 1.

DISCUSSÃO

As cirurgias para reconstrução de cabeça e pescoço ainda são desafiadoras para a cirurgia plástica. O profissional que lida com essa área deve saber aliar função (fala, mímica facial, mastigação e respiração) à estética, já que envolve áreas em região determinante na aparência e autoestima4.

Os retalhos livres ganharam grande destaque e se estabeleceram como escolha para cobertura de lesões extensas em cabeça e pescoço. Entretanto, devido ao prolongado tempo cirúrgico e ao perfil comum do paciente oncológico

- idoso, tabagista e com diversas comorbidades - nem todo paciente é candidato à reconstrução com retalho microcirúrgico2. Assim, retalhos pediculados permanecem como opção. Os benefícios inerentes à dissecção e transferência mais rápidas reduzem a morbidade relacionada à anestesia geral prolongada e muitas vezes dispensam os cuidados intensivos no pós-operatório1.

O retalho supraclavicular é um retalho axial, baseado em ramos supraclaviculares dos vasos cervicais transversos, cujos primeiros relatos datam do século XIX. Seu uso, entretanto, foi restrito devido à não confiabilidade de seu suprimento vascular, explicado pela falta de estudos anatômicos na época em que era realizado de forma aleatória5.

Em 1979, seu padrão de vascularização axial foi inicialmente descrito por Lamberty6. Foi redescoberto como ótima opção reconstrutiva em 1997 por Pallua et al.3,7-9, sendo aplicado no tratamento de retrações cervicais por queimaduras, e em 2009 por Chiu et al. como alternativa confiável na reconstrução oncológica de cabeça e pescoço1.

Trata-se de um retalho fasciocutâneo fino, flexível e de pele com textura semelhante à da face, tornando-o fonte ideal de tecidos moles para reconstruções de cabeça e pescoço10. Dessa forma, supera os resultados obtidos com outros retalhos regionais, como peitoral maior e trapézio, que são volumosos e pouco adaptáveis ao contorno da região1,2. É um retalho que permite a manutenção da mímica facial e da mobilidade da região cervical3. Atualmente, o angiossoma do seu pedículo é bem descrito, pautado em estudos recentes que demonstram sua anatomia vascular10.

A técnica de dissecção do retalho foi padronizada e popularizada por Pallua et al., em 19972. O retalho deve ter forma quadrangular; seu pedículo deve ser encontrado dentro do triângulo demarcado entre a borda anterior do músculo esternocleidomastóideo, a clavícula e a veia jugular externa; seu tamanho deve ter entre 4 e 12cm de largura e 20 a 30cm de extensão7.

É um retalho versátil, capaz de cobrir lesões localizadas até o limite entre o terço médio e distal da face. Seu alcance o diferencia de outros retalhos pediculados desta região, como o deltopeitoral e o peitoral, uma vez que seu ponto de rotação é mais proximal, proporcionando arco de rotação mais adequado para região cervicofacial. Além disso, por não ter pelos, é apropriado para reconstruções na cavidade oral ou restante do trato aerodigestivo superior2.

Em nossa casuística, oito reconstruções faríngeas foram realizadas com esse retalho. Podemos ainda citar a possibilidade de tunelização do retalho, o que evita uma nova reabordagem e diminui a cicatriz da área doadora.

O conhecimento adequado da anatomia do retalho supraclavicular e o aprimoramento da técnica de sua dissecção nos permitiu utilizá-lo para reconstrução de defeitos mais extensos e complexos. Em nosso serviço, a área média do defeito a ser reconstruído é relativamente extensa (40,62cm2), maior do que havia sido descrita anteriormente na literatura, demonstrando a possibilidade de reconstrução de defeitos maiores com uma técnica relativamente simples e de baixa morbidade.

O retalho supraclavicular pode ser levantado rapidamente, uma vez que seu pedículo superficial garante que toda a dissecção fique restrita ao plano subfascial. Séries anteriores demonstraram tempo de dissecção médio de 50 minutos2, vantajoso em pacientes submetidos a cirurgias oncológicas de longa duração. A área doadora costuma ser fechada primariamente, sem grandes sequelas3.

No presente estudo, pudemos observar uma taxa relativamente alta de complicações relacionadas ao retalho (52,9%). Contudo, parte destas foram complicações menores, como necroses parciais ou pequenas deiscências (44,4%), em taxas semelhantes ao encontrado na literatura9. Dois pacientes submetidos a reconstrução faríngea apresentaram fístula salivar, tratadas de forma conservadora, não prejudicando a função final de deglutição. Estudos posteriores para avaliação das principais causas de complicações relacionadas ao retalho supraclavicular devem ser realizados.

Devemos ressaltar que, embora este retalho seja confiável, ainda possui suas limitações. Não possui indicação em reconstruções complexas, resultantes de áreas extensas ou profundas, devido ao seu menor volume. Também não é aplicável em casos de reconstruções tardias, em que não se tem certeza da integridade de seu pedículo12. Nessas situações, os retalhos livres ainda possuem protagonismo. Ainda assim, nessa casuística, fomos capazes de reconstruir com sucesso 4 defeitos resultantes de cânceres localmente avançados (T4), existindo inclusive estudos que demonstram sua aplicação nesse tipo de tumores2.

CONCLUSÃO

O retalho supraclavicular possui importante papel nas reconstruções oncológicas de cabeça e pescoço. Devido à confiabilidade de seu pedículo, abreviado tempo cirúrgico e baixa morbidade à área doadora, deve ser considerado opção em pacientes maus candidatos a retalhos microcirúrgicos.

REFERÊNCIAS

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3. Pallua N, Magnus Noah E. The tunneled supraclavicular island flap: an optimized technique for head and neck reconstruction. Plast Reconstr Surg. 2000;105(3):842-854.

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12. Chiu ES, Liu PH, Friedlander PL. Supraclavicular artery island flap for head and neck oncologic reconstruction: indications, complications, and outcomes. Plast Reconstr Surg. 2009;124(1):115-123.











1. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
2. Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, Divisão de Cirurgia Plástica, São Paulo, SP, Brasil

Autor correspondente: Giulia Godoy Takahashi Rua Arruda Alvim, 423, apto 51, Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil, CEP: 05410-020, E-mail: giu.godoy@gmail.com

Artigo submetido: 04/04/2023.
Artigo aceito: 23/10/2023.

Conflitos de interesse: não há.

 

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