INTRODUÇÃO
A reconstrução oncológica de áreas extensas em cabeça e pescoço impõe ao cirurgião
plástico a difícil decisão entre o uso de retalhos livres e retalhos pediculados.
Retalhos livres são classicamente considerados o tratamento padrão-ouro, mas prolongam
o tempo cirúrgico, aumentam os custos do procedimento e o tempo da recuperação pós-operatória.
Assim, retalhos pediculados ressurgiram nos últimos anos como opção a ser considerada
em pacientes idosos, com câncer avançado e clinicamente debilitados, que se beneficiam
de técnicas reconstrutivas mais simples1,2.
Dentre os retalhos pediculados, podemos utilizar retalhos miocutâneos e fasciocutâneos.
Os primeiros costumam ser a escolha em áreas mais profundas, que demandam tecidos
moles para preenchimento3. Por outro lado, retalhos fasciocutâneos são excelentes opções para coberturas mais
finas, adaptáveis ao contorno no segmento cervicofacial.
O retalho supraclavicular tem sido cada vez mais utilizado para reconstruções de defeitos
após ressecções oncológicas de cabeça e pescoço. É versátil, possui fina espessura
e cor semelhante à região a ser reconstruída. Além disso, apresenta vascularização
confiável e é de fácil dissecção, sendo reprodutível em serviços de baixa complexidade.
OBJETIVO
Apresentar uma série de casos de retalho supraclavicular, demonstrando a viabilidade
dessa cirurgia para reconstrução oncológica em cabeça e pescoço em tumores de diversos
tipos histológicos e diferentes estadios.
MÉTODOS
Um estudo retrospectivo foi realizado através da coleta de dados de prontuário de
pacientes internados no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, entre dezembro
de 2010 e março de 2020. Nesse período, 62 pacientes foram submetidos a reconstrução
com retalhos supraclaviculares pela equipe de cirurgia plástica para reconstruções
oncológicas de cabeça e pescoço.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HCFMUSP
(Número CAAE: 58900522.6.0000.0068).
As seguintes informações foram coletadas: dados epidemiológicos, comorbidades, tipo
histológico e estadiamento do tumor tratado, tipo de ressecção, área do defeito (calculada
por análise fotográfica), margens no anatomopatológico, realização de terapia complementar
neoadjuvante ou adjuvante, recidiva, complicações. A área do defeito foi calculada
por análise fotográfica com o uso do software Adobe Photoshop®.
RESULTADOS
Dentre os 62 pacientes reconstruídos com retalho supraclavicular, 37 eram do sexo
masculino e 25 do sexo feminino. Cinquenta e oito pacientes (93,5%) possuíam alguma
comorbidade associada, sendo as mais prevalentes a hipertensão arterial sistêmica
(53,2%), tabagismo (53,2%) e etilismo (30,6%) (Tabela 1). A idade média foi de 64,1 anos, com mediana de 65,5 anos.
Tabela 1 - Características dos pacientes.
|
|
Valor/ Porcentagem |
Sexo |
Feminino |
21 (41,1%) |
Masculino |
30 (58,8%) |
Comorbidades |
Hipertensão arterial sistêmica |
26 ( 55,3%) |
Tabagismo |
25 ( 53,2%) |
Etilismo |
18 (38,3%) |
Diabetes mellitus |
15 (31,9%) |
Dislipidemia |
6 (12,8%) |
Obesidade |
5 (10,6%) |
Tipo histológico |
Carcinoma espinocelular
|
36 (70,5%) |
Sarcoma |
5 (9,8%) |
Carcinoma basocelular
|
5 (9,8%) |
Tumor de glândula salivar
|
4 (7,8%) |
Tumor neuroendócrino
|
1 (1,9%) |
Margens livres |
Sim |
37 (72,5%) |
Não |
13 (25,5%) |
Desconhecida |
1 (1,9%) |
Esvaziamento cervical |
Seletivo |
26 (50,9%) |
Radical |
7 (13,7%) |
Não realizado |
18 (35,3%) |
Neoadjuvância |
Sim |
2 (3,9%) |
Não |
49 (96%) |
Adjuvância |
Sim |
30 (63,8%) |
Não |
21 (41,2%) |
Reconstrução adicional |
Sim |
11 (21,6%) |
Não |
40 (78,4%) |
Complicações do retalho |
Sim |
27 (52,9%) |
Não |
24 (47%) |
Complicações da área doadora |
Sim |
4 (7,8%) |
Não |
47 (92,2%) |
Tabela 1 - Características dos pacientes.
O tipo histológico mais prevalente foi o carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço,
presente em 45 casos (72,5%), sendo 9 de laringe. Foram também tratados sarcoma (8%),
carcinoma basocelular de pele (6%), tumores de glândulas salivares (4%), tumores neuroendócrinos
(1,96%) e melanoma (1,61%).
Entre os carcinomas espinocelulares (CEC), os estádios T2 (33,3%) e T3 (37,8%) foram
os mais prevalentes. Apenas 4 casos de tumor inicial, T1 (8,9%), e 8 casos de tumor
localmente avançado, T4 (17,8%), foram incluídos.
Margens livres foram obtidas em 48 ressecções (77,4%). Em 13 pacientes, margens comprometidas
foram mantidas devido à morbidade da ampliação necessária, mas todos foram submetidos
a radioterapia adjuvante. Houve ainda 1 caso de margem desconhecida, uma vez que a
ressecção foi realizada em serviço externo, sem registro em prontuário. A área final
a ser reconstruída foi em média de 40,62cm2, variando de 0,78cm2 (fístula salivar) a 137,15cm2.
Na Figura 1, temos um paciente que realizou parotidectomia total ampliada para a pele por lipossarcoma
mixoide. Na Figura 2 vemos o mesmo paciente e seu resultado pós-operatório de reconstrução com retalho
supraclavicular pediculado. Na Figura 3, o mesmo paciente durante o planejamento intraoperatório.
Figura 1 - Pré-operatório (A). Intraoperatório, com demarcação do retalho supraclavicular, baseando-se
na localização adequada de seu pedículo, com ilha de pele 25 x 7,5cm e extensão da
área cruenta de 8 x 7,5cm após parotidectomia total ampliada para pele (B).
Figura 1 - Pré-operatório (A). Intraoperatório, com demarcação do retalho supraclavicular, baseando-se
na localização adequada de seu pedículo, com ilha de pele 25 x 7,5cm e extensão da
área cruenta de 8 x 7,5cm após parotidectomia total ampliada para pele (B).
Figura 2 - Resultado pós-operatório: visão frontal (A) e perfil (B) de área receptora. Área doadora
(C).
Figura 2 - Resultado pós-operatório: visão frontal (A) e perfil (B) de área receptora. Área doadora
(C).
Figura 3 - À esquerda, intraoperatório, demonstrando o posicionamento do retalho para a cobertura
do defeito. À direita, pós-operatório imediato da reconstrução do defeito com retalho
supraclavicular e fechamento primário da área doadora.
Figura 3 - À esquerda, intraoperatório, demonstrando o posicionamento do retalho para a cobertura
do defeito. À direita, pós-operatório imediato da reconstrução do defeito com retalho
supraclavicular e fechamento primário da área doadora.
Esvaziamento cervical foi efetuado em 41 casos (66,1%), sendo 32 esvaziamentos seletivos
(51,6%) e 9 radicais modificados (14,5%). Vinte e um pacientes (33,9%) não foram submetidos
a linfadenectomia. Apenas três pacientes receberam neoadjuvância com quimioterapia
antes do procedimento. Adjuvância foi realizada em 34 pacientes, sendo que 23 receberam
exclusivamente radioterapia e 11 quimiorradioterapia.
Para cobertura total da área, alguma forma de reconstrução adicional, além do retalho
supraclavicular, foi necessária em 13 pacientes (21%). Os mais utilizados foram retalho
microcirúrgico de fíbula (4) e enxerto de pele (3). Reconstrução complementar com
retalho osteomiocutâneo microcirúrgico de fíbula foi realizada em 4 casos, além de
enxerto de nervo sural para reconstrução do nervo facial em 1 paciente.
Ao todo, 37 complicações relacionadas ao retalho (43,5%) foram registradas, sendo
16 necroses parciais (25,8%), 11 deiscências (17,7%), 5 necroses totais (8%), 3 fístulas
salivares (4,8%), 1 hematoma (1,6%) e 1 sangramento (1,6%). Reoperação foi necessária
em 15 pacientes (29,4%), sendo que 9 foram convertidos para outra forma de reconstrução.
Em todos os casos a área doadora foi fechada primariamente. Complicações na área doadora
ocorreram em 4 pacientes, sendo 3 deiscências e 1 seroma. Todos foram tratados de
forma conservadora.
A média de cirurgias realizadas por paciente até finalização da reconstrução, incluindo
o tratamento de complicações e retoques, foi de 2,92.
As informações estão reunidas na Tabela 1.
DISCUSSÃO
As cirurgias para reconstrução de cabeça e pescoço ainda são desafiadoras para a cirurgia
plástica. O profissional que lida com essa área deve saber aliar função (fala, mímica
facial, mastigação e respiração) à estética, já que envolve áreas em região determinante
na aparência e autoestima4.
Os retalhos livres ganharam grande destaque e se estabeleceram como escolha para cobertura
de lesões extensas em cabeça e pescoço. Entretanto, devido ao prolongado tempo cirúrgico
e ao perfil comum do paciente oncológico
- idoso, tabagista e com diversas comorbidades - nem todo paciente é candidato à reconstrução
com retalho microcirúrgico2. Assim, retalhos pediculados permanecem como opção. Os benefícios inerentes à dissecção
e transferência mais rápidas reduzem a morbidade relacionada à anestesia geral prolongada
e muitas vezes dispensam os cuidados intensivos no pós-operatório1.
O retalho supraclavicular é um retalho axial, baseado em ramos supraclaviculares dos
vasos cervicais transversos, cujos primeiros relatos datam do século XIX. Seu uso,
entretanto, foi restrito devido à não confiabilidade de seu suprimento vascular, explicado
pela falta de estudos anatômicos na época em que era realizado de forma aleatória5.
Em 1979, seu padrão de vascularização axial foi inicialmente descrito por Lamberty6. Foi redescoberto como ótima opção reconstrutiva em 1997 por Pallua et al.3,7-9, sendo aplicado no tratamento de retrações cervicais por queimaduras, e em 2009 por
Chiu et al. como alternativa confiável na reconstrução oncológica de cabeça e pescoço1.
Trata-se de um retalho fasciocutâneo fino, flexível e de pele com textura semelhante
à da face, tornando-o fonte ideal de tecidos moles para reconstruções de cabeça e
pescoço10. Dessa forma, supera os resultados obtidos com outros retalhos regionais, como peitoral
maior e trapézio, que são volumosos e pouco adaptáveis ao contorno da região1,2. É um retalho que permite a manutenção da mímica facial e da mobilidade da região
cervical3. Atualmente, o angiossoma do seu pedículo é bem descrito, pautado em estudos recentes
que demonstram sua anatomia vascular10.
A técnica de dissecção do retalho foi padronizada e popularizada por Pallua et al.,
em 19972. O retalho deve ter forma quadrangular; seu pedículo deve ser encontrado dentro do
triângulo demarcado entre a borda anterior do músculo esternocleidomastóideo, a clavícula
e a veia jugular externa; seu tamanho deve ter entre 4 e 12cm de largura e 20 a 30cm
de extensão7.
É um retalho versátil, capaz de cobrir lesões localizadas até o limite entre o terço
médio e distal da face. Seu alcance o diferencia de outros retalhos pediculados desta
região, como o deltopeitoral e o peitoral, uma vez que seu ponto de rotação é mais
proximal, proporcionando arco de rotação mais adequado para região cervicofacial.
Além disso, por não ter pelos, é apropriado para reconstruções na cavidade oral ou
restante do trato aerodigestivo superior2.
Em nossa casuística, oito reconstruções faríngeas foram realizadas com esse retalho.
Podemos ainda citar a possibilidade de tunelização do retalho, o que evita uma nova
reabordagem e diminui a cicatriz da área doadora.
O conhecimento adequado da anatomia do retalho supraclavicular e o aprimoramento da
técnica de sua dissecção nos permitiu utilizá-lo para reconstrução de defeitos mais
extensos e complexos. Em nosso serviço, a área média do defeito a ser reconstruído
é relativamente extensa (40,62cm2), maior do que havia sido descrita anteriormente
na literatura, demonstrando a possibilidade de reconstrução de defeitos maiores com
uma técnica relativamente simples e de baixa morbidade.
O retalho supraclavicular pode ser levantado rapidamente, uma vez que seu pedículo
superficial garante que toda a dissecção fique restrita ao plano subfascial. Séries
anteriores demonstraram tempo de dissecção médio de 50 minutos2, vantajoso em pacientes submetidos a cirurgias oncológicas de longa duração. A área
doadora costuma ser fechada primariamente, sem grandes sequelas3.
No presente estudo, pudemos observar uma taxa relativamente alta de complicações relacionadas
ao retalho (52,9%). Contudo, parte destas foram complicações menores, como necroses
parciais ou pequenas deiscências (44,4%), em taxas semelhantes ao encontrado na literatura9. Dois pacientes submetidos a reconstrução faríngea apresentaram fístula salivar,
tratadas de forma conservadora, não prejudicando a função final de deglutição. Estudos
posteriores para avaliação das principais causas de complicações relacionadas ao retalho
supraclavicular devem ser realizados.
Devemos ressaltar que, embora este retalho seja confiável, ainda possui suas limitações.
Não possui indicação em reconstruções complexas, resultantes de áreas extensas ou
profundas, devido ao seu menor volume. Também não é aplicável em casos de reconstruções
tardias, em que não se tem certeza da integridade de seu pedículo12. Nessas situações, os retalhos livres ainda possuem protagonismo. Ainda assim, nessa
casuística, fomos capazes de reconstruir com sucesso 4 defeitos resultantes de cânceres
localmente avançados (T4), existindo inclusive estudos que demonstram sua aplicação
nesse tipo de tumores2.
CONCLUSÃO
O retalho supraclavicular possui importante papel nas reconstruções oncológicas de
cabeça e pescoço. Devido à confiabilidade de seu pedículo, abreviado tempo cirúrgico
e baixa morbidade à área doadora, deve ser considerado opção em pacientes maus candidatos
a retalhos microcirúrgicos.
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12. Chiu ES, Liu PH, Friedlander PL. Supraclavicular artery island flap for head and neck
oncologic reconstruction: indications, complications, and outcomes. Plast Reconstr
Surg. 2009;124(1):115-123.
1. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil
2. Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, Divisão de Cirurgia Plástica, São Paulo,
SP, Brasil
Autor correspondente: Giulia Godoy Takahashi Rua Arruda Alvim, 423, apto 51, Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil, CEP: 05410-020,
E-mail: giu.godoy@gmail.com
Artigo submetido: 04/04/2023.
Artigo aceito: 23/10/2023.
Conflitos de interesse: não há.