ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175

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Original Article - Year2020 - Volume35 - Issue 2

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2020RBCP0025

RESUMO

Introdução: A identificação de complicações da palatoplastia primária pode variar entre profissionais de diferentes áreas da saúde, devido à falta de padronização da classificação de fístula. Este estudo teve o objetivo de verificar o consenso entre profissionais da cirurgia plástica (CP) e da fonoaudiologia (FGA), quanto à ocorrência de fístula, conforme reportado em um mesmo serviço craniofacial.
Métodos: Foi realizada uma análise dos registros das áreas da CP e FGA quanto à presença e localização de fístulas, conforme reportado em 466 prontuários de pacientes com história de fissura transforame incisivo unilateral. Para comparar os achados entre ambas as áreas uma verificação padrão ouro da ocorrência de fístula (POF) foi estabelecida por um cirurgião plástico experiente.
Resultados: A área da CP reportou que 25% dos 466 pacientes apresentaram fístula comparado à 37% reportado pela FGA, enquanto o POF indicou fístula em 35% dos casos. Estatística Kappa revela concordância regular entre POF e CP (r=0,32) e concordância substancial entre POF e FGA (r=0,63).
Conclusão: Observou-se discordância entre as áreas da fonoaudiologia e da cirurgia plástica quanto à ocorrência e localização da fístula após a palatoplastia primária, em um mesmo centro craniofacial. Os dados apontam para a necessidade da criação e da implementação de um sistema de classificação de fístula padronizado, que possa ser utilizado de forma efetiva por equipes craniofaciais favorecendo evidências científicas dos resultados do tratamento da fissura labiopalatina.

Palavras-chave: Fissura palatina; Fístula bucal; Registros médicos; Cirurgia plástica; Fonoaudiologia

ABSTRACT

Introduction: The identification of complications of primary palatoplasty may vary among professionals from different areas of health due to the lack of standardization of the fistula classification. This study aimed to verify the consensus among professionals of plastic surgery (PC) and Speech-Language Pathology (SLP), regarding the occurrence of fistula, according to what was reported in the same craniofacial service.
Methods: Analysis of the chart's records of the areas of the PC and SLP of 466 patients with cleft lip and palate was performed about the presence and location of fistula about the presence and location of fistulas, as reported in 466 medical records of patients with a history of unilateral cleft lip and palate. To compare the findings between both areas, a gold standard classification for the occurrence of fistula (GSF) was established by an experienced plastic surgeon.
Results:
The PC area reported that 25% of the 466 patients had a fistula compared to the 37% reported by the SLP, while the GSF indicated fistula in 35% of the cases. The Kappa statistic reveals regular agreement between GSF and PC (r = 0.32) and substantial agreement between GSF and SLP (r = 0.63).
Conclusion: There was a discrepancy between the areas of Speech-Language Pathology and plastic surgery regarding the occurrence and location of the fistula after primary palatoplasty in the same craniofacial center. The data indicates the need to create and implement a standardized fistula classification system. In this way, craniofacial teams can use it effectively, taking advantage of the scientific evidence that emerges from the results of cleft lip and palate treatment.

Keywords: Cleft palate; Oral fistula; Medical records; Plastic surgery; Speech Therapy.


INTRODUÇÃO

Dentre as complicações após a palatoplastia primária, uma das mais discutidas na literatura, é a formação de fístulas oronasais1-6. Na literatura, observa-se que a ocorrência de fístula de palato é amplamente variável, encontrando-se autores que reportam ausência destas complicações (0%) até aqueles que indicam uma ocorrência de 78% fístula de palato após palatoplastia primária7,8. A ampla variação da ocorrência de fístula reflete a diversidade de protocolos para correção cirúrgica primária da fissura, mas também pode estar relacionada à falta de consenso quanto à terminologia e a classificação de fístula conforme reportado por profissionais de distintas áreas da saúde9.

A terminologia encontrada na literatura para classificar a fístula é bastante variada. Estudos reportam que fístulas localizadas no palato primário (anteriores ao forame incisivo), por exemplo, podem ser denominadas de fístula de palato, fístula de palato anterior, fístula labioalveolar, fístula linguoalveolar e ainda fístula vestibular5,10-12. As fístulas localizadas no palato secundário (ou posteriores ao forame incisivo), por sua vez, também podem ser denominadas fístulas de palato, observando-se variação quanto a terminologia de acordo com a região afetada (fístula de palato duro, fístula de transição entre o palato duro e o palato mole, fístula de palato mole)2,3,5,12,13.

Sistemas para classificação de fístula envolvendo uma abordagem sistemática para documentação da ocorrência e do local da fístula foram descritos na literatura internacional4,14. Um nível aceitável de concordância entre avaliadores na identificação de fístula, no entanto, pode ser difícil de alcançar mesmo quando um protocolo padronizado é implementado12. Caracterizar os aspectos onde ocorre a falta de consenso entre avaliadores durante identificação de fístula é importante para o desenvolvimento de um protocolo padronizado de classificação que possa ser implementado nos serviços craniofaciais brasileiros de forma a favorecer uma documentação sistemática dos resultados da palatoplastia primária11.

OBJETIVO

Este estudo teve o objetivo de verificar o consenso entre profissionais da cirurgia plástica (CP) e da fonoaudiologia (FGA) quanto à ocorrência de fístula em um mesmo serviço craniofacial.

MÉTODOS

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da instituição sob número 1.337.917. Este estudo envolveu uma análise quanto a presença e localização de fístulas em dados registrados em prontuários de 466 pacientes. Os prontuários estudados pertenciam a pacientes com fissura transforame unilateral, sem síndromes ou malformações associadas, de ambos os sexos, submetidos à palatoplastia primária em um único estágio pelas técnicas cirúrgicas de von Langenbeck ou Furlow. As palatoplastia primárias, para o grupo estudado, foram realizadas no período entre 1996 e 2004. Os relatos quanto à ocorrência de fístula, de interesse para este estudo, foram obtidos durante a avaliação clínica e registrados nos protocolos de avaliação pós-cirúrgica nos prontuários dos pacientes, conforme realizado rotineiramente na instituição da pesquisa, pelas áreas da CP e FGA. Foram identificados, para este estudo, os registros de fístula registrados (pela área da CP, pela área da FGA ou por ambas as áreas) até três anos após a palatoplastia primária.

Neste trabalho, os registros de deiscência (parcial ou total) foram tratados como fístula. O levantamento dos dados que constavam nas fichas de avaliação pós-cirúrgica da cirurgia plástica deu origem ao registro de ocorrência de fístula pela área da CP, enquanto o levantamento dos dados que constavam no protocolo de avaliação fonoaudiológica deu origem ao registro de ocorrência de fístula pela área da FGA.

Registro clínico de fístula pela cirurgia plástica

O protocolo de avaliação pós-cirúrgica da área da cirurgia plástica, vigente no período estudado, foi aplicado pelo cirurgião plástico que realizou uma avaliação presencial a partir de uma inspeção oral das áreas do palato duro e mole após a palatoplastia primária. A inspeção oral foi realizada com uso de lanterna para iluminar a área avaliada e de espátula para abaixar a língua e possibilitar visualização de todo o palato mole. Ao observar no palato uma região sugestiva de fístula falsa (fundo-falso) ou fístula oculta, as provas diagnósticas realizadas pelo profissional incluíram: a) iluminação com a lanterna para verificar projeção da luz na área nasal; b) palpação/manipulação da área irregular do palato buscando verificar fundo-falso em reentrâncias de tecido; c) uso de injeção de ar na área (usando equipo odontológico) para verificar a passagem de ar para as narinas por meio de relato do paciente ou observação de borbulha.

Os dados foram registrados presencialmente pelo cirurgião plástico no protocolo de avaliação pós-cirúrgica da cirurgia plástica, incluindo as seguintes observações: registro do método de fechamento do palato anterior e do palato mole (incisões relaxantes; retalho vomeriano, retalho faríngeo, outros); complicações transoperatórias (esgarçamento de retalho, sutura sobtensão; revisão de hemostasia, outras) e complicações pós-operatórias (fístula ou deiscência; infecção, outras). Nos casos de fístula o protocolo de avaliação também solicita a indicação da área afetada e o desenho da ocorrência em um diagrama do palato (conforme consta na ficha de avaliação). Do protocolo de avaliação pós-cirúrgica da área da CP, portanto, identificou-se para o presente estudo o registro quanto à presença e a localização de fístula no palato.

Registro clínico de fístula pela fonoaudiologia

O protocolo de avaliação da área da fonoaudiologia, vigente no período estudado, foi aplicado por uma fonoaudióloga no mesmo dia em que foi aplicado o protocolo de avaliação pós-cirúrgica da CP. Para a inclusão no estudo, portanto, todos os pacientes tiveram as avaliações da CP e FGA realizadas presencialmente independentemente por cada área, no mesmo dia.

Durante a avaliação, a fonoaudióloga realizou uma inspeção das áreas do palato duro e mole usando um lanterna para iluminar a área avaliada e uma espátula para abaixar a língua de forma a visualizar todo o palato mole, incluindo a úvula. Nos casos de identificação de área sugestiva de fístula falsa ou oculta a fonoaudióloga reencaminhou o paciente para realização das provas diagnósticas pelo cirurgião plástico de iluminação, palpação e/ou injeção de ar.

Os dados foram registrados presencialmente pela fonoaudióloga no protocolo de avaliação da fonoaudiologia incluíram as seguintes informações com relação à fístula: ausente; vestibular à direita; vestibular à esquerda; no palato duro; no palato mole; na região de transição do palato duro para o palato mole. Do protocolo de avaliação da área da FGA, portanto, identificou-se para o presente estudo o registro quanto a presença e localização de fístula.

Avaliação padrão ouro de ocorrência de fístula (POF)

Uma vez coletados os dados dos protocolos das áreas da CP e da FGA, observou-se divergência nos registros entre as áreas, e optou-se por aplicar uma avaliação padrão ouro de ocorrência de fístula (POF). Para a avaliação POF, definiu-se fístula como uma falha de cicatrização ou uma ruptura da sutura, observada após o reparo primário do palato. Ou seja, após uma tentativa de reparo dos tecidos na área da fissura de palato ocorreu abertura indesejada das suturas.

A avaliação POF foi realizada por um único profissional da área da cirurgia plástica, com mais de 30 anos de experiência clínica na correção cirúrgica do palato e na avaliação pós-palatoplastia. A POF não foi realizada presencialmente e foi baseada na análise de todos os registros documentados nos prontuários sobre fístula e também na análise de imagens fotográficas da fístula, quando existentes. Salienta-se, no entanto, que na época da avaliação pós-cirúrgica dos casos estudados, os registros fotográficos das fístulas, apesar de indicados, não foram feitos de forma padronizada nem foram obtidos para todos os casos. As fotografias existentes no acervo institucional foram realizadas pelo fotógrafo da instituição e não pelos profissionais das áreas da CP e da FGA, e estas imagens foram utilizadas de forma complementar ao levantamento dos registros de fístula do prontuário.

No prontuário foram consultados todos os protocolos documentais existentes onde pudesse estar registrado a ocorrência de fístula. Ou seja, além da consulta realizada nos protocolos da CP e da FGA (objetos deste trabalho), foram analisadas as documentações de outras áreas (enfermagem, pediatria e odontologia). Para a análise das fotografias o profissional da cirurgia plástica que realizou a avaliação POF usou o forame incisivo (FI) como marco anatômico1 e agrupou as fístulas de acordo com a localização das mesmas em relação ao FI, indicando, portanto, se as ocorrências eram anteriores ou posteriores ao FI.

Os achados obtidos a partir da análise de todos os registros documentais do prontuário mais os achados da análise das fotografias existentes foram combinados estabelecendo-se a avaliação padrão-ouro da ocorrência de fístula (POF). A POF foi a ferramenta usada como referência para interpretação dos achados registrados individualmente nos protocolos das áreas da CP e da FGA, permitindo aos pesquisadores corroborar e comparar os achados deste estudo. De acordo com a POF os 466 pacientes foram agrupados em quatro categorias, quanto à existência e localização de fístula após palatoplastia primária, incluindo: Grupo 1: pacientes que não apresentaram fístula (N=302; 65%); Grupo 2: pacientes com fístulas localizadas em área anterior ao forame incisivo (N=91, 20%); Grupo 3: pacientes com fístulas localizadas em área posterior ao forame incisivo (N=43; 9%); Grupo 4: pacientes com fístulas abrangendo área anterior e posterior ao forame incisivo (N=30; 6%). Ou seja, enquanto a maioria dos pacientes não apresentou fístula (65%), um total de 164 (35%) pacientes apresentou algum tipo de fístula no palato conforme indicado na POF. Das 164 fístulas identificadas na avaliação POF, 78 (17%) ocorreram em pacientes que receberam o procedimento de Furlow e 86 (18%) ocorreram em pacientes que receberam o procedimento de von Langenbeck. Salienta-se, no entanto, que dados sobre a amplitude transversal da fissura, sobre a técnica cirúrgica e sobre o cirurgião na palatoplastia primária não foram objetos deste estudo.

Os dados apresentados a seguir incluem as porcentagens de ocorrência de fístula relatadas pelas áreas de CP, de FGA e pela POF. A concordância entre os achados foi verificada com estatística Kappa.

RESULTADOS

Ao analisar os dados obtidos nos registros da área da CP, observou-se que os cirurgiões reportaram que 275 pacientes (59%) não apresentaram fístulas, 117 pacientes (25%) apresentaram algum tipo de fístula e 74 pacientes (16%) não apresentaram registros sobre a presença ou ausência de fístula (sem dados). Dos 117 pacientes que tiveram fístula reportada pelo CP, 48 pacientes (10%) não tinham indicação do local (dados incompletos), 31 pacientes (7%) apresentaram fístulas na região anterior ao FI, 32 pacientes (8%) apresentaram fístula na região posterior ao FI e 6 pacientes (1%) apresentaram fístulas envolvendo ambas regiões, anterior e posterior ao FI.

A mesma análise foi feita para os registros na área da FGA observando-se, que as fonoaudiólogas reportaram 295 pacientes (63%) sem fístulas e 171 pacientes (37%) com algum tipo de fístula. Dos 171 pacientes que apresentaram fístula, 69 pacientes (15%) não tinham indicação do local (dados incompletos), 73 pacientes (15,6%) eram fístulas na região anterior ao FI, 27 pacientes (6%) eram fístulas na região posterior ao FI e 2 pacientes (0,4%) eram fístulas envolvendo as duas regiões, anterior e posterior ao FI.

Conforme apresentado na Tabela 1, a avaliação padrão ouro da ocorrência de fístula (POF) identificou fístula em 164 pacientes (35% casos estudados), diferindo da área da fonoaudiologia e de cirurgia plástica que reportaram 171 (37%) e 117 (25%) casos com fístula, respectivamente. Ou seja, quando foram considerados os achados reportados no protocolo específico da cirurgia plástica a ocorrência de fístula foi 10% menor que a ocorrência observada na POF. E quando foram considerados os achados reportados no protocolo específico da fonoaudiologia a ocorrência de fístula foi 2% maior que a ocorrência observada na POF.

Tabela 1 - Presença e localização de fístulas nos registros dos profissionais da cirurgia plástica (CP), da fonoaudiologia (FGA) e na avaliação padrão ouro da ocorrência de fístula (POF).
N=466 Sem Fístula Total de
Fístula
Fístula
Anterior ao FI
Fístula
Posterior ao FI
Anterior e
Posterior ao FI
Dado
Incompleto
Sem Dados
CP 275 (59%) 117 (25%) 31 (6%) 32 (7%) 6 (2%) 48 (10%) 74 (16%)
FGA 295 (63%) 171 (37%) 73 (16%) 27 (5%) 2 (1%) 69 (15%) 0
POF 302 (65%) 164 (35%) 91 (20%) 43 (9%) 30 (6%) 0 0

FI: Forame incisivo; Fístula CP: 31+32+6+48=117; Fístulas FGA: 73+27+2+69=171; Fístulas POF: 91+43+30=164.

Tabela 1 - Presença e localização de fístulas nos registros dos profissionais da cirurgia plástica (CP), da fonoaudiologia (FGA) e na avaliação padrão ouro da ocorrência de fístula (POF).

Observou-se também que a indicação da localização da fístula (anterior ou posterior ao FI) não foi possível para 48 casos avaliados pela CP devido a dados incompletos. Ou seja, 10% das fístulas identificadas pela CP não tiveram indicação do local de ocorrência (dados incompletos). Ainda analisando os achados da CP, verificou-se que 74 pacientes (16%) não tiveram registro quanto à ausência ou presença de fístula (sem dados). Os dados levantados nos protocolos da FGA, por sua vez, não permitiram a identificação da localização da fístula para 69 (15%) casos devido a dados incompletos. Não houve caso sem informação sobre a presença ou ausência de fístula na avaliação da FGA.

A concordância e discordância entre os achados da POF, da CP e da FGA foram apresentadas em porcentagens e comparadas com estatística Kappa. Os dados reportados na Tabela 2 indicam que os achados quanto à identificação e localização de fístula relatados nos prontuários pelos cirurgiões plásticos concordaram com a avaliação POF em 59,7% dos casos, enquanto os registros dos fonoaudiólogos concordaram com a avaliação POF em 79,6% dos casos. Segundo estatística Kappa, observou-se uma concordância regular entre a POF e os relatos da área da CP (r=0,32) e uma concordância substancial entre a POF e os relatos da área da FGA (r=0,63).

Tabela 2 - Porcentagem de concordância e discordância entre os achados da cirurgia plástica (CP), da fonoaudiologia (FGA) e da avaliação padrão ouro da ocorrência de fístula (POF).
POF Cirurgia Plástica (r=0,32) Fonoaudiologia (r=0,63)
CP Concorda CP Discorda FGA Concorda FGA Discorda
Sem Fístula (N=302) 233 (77,2%) 69 (22,8%) 285 (94,4%) 17 (5,6%)
"Fístula Anterior ao FI (N=91)" 19 (20,9%) 72 (79,1%) 65 (71,4%) 26 (28,6%)
"Fístula Posterior ao FI (N=43)" 21 (48,8%) 22 (51,2%) 20 (46,5%) 23 (53,5%)
"Anterior+Posterior FI (N=30)" 5 (16,7%) 25 (83,3%) 1 (3,3%) 29 (96,6%)
Total 278 (59,7%) 188 (40,3%) 371 (79,6 %) 95 (20,4%)

FI: Forame incisivo; r: Kappa.

Tabela 2 - Porcentagem de concordância e discordância entre os achados da cirurgia plástica (CP), da fonoaudiologia (FGA) e da avaliação padrão ouro da ocorrência de fístula (POF).

Nota-se que a maior porcentagem de concordância entre os profissionais das áreas da CP e FGA, com a POF foi observada para os casos onde houve ausência de fístula, sendo 77,2% para a área da CP e 94,4%, para a área da FGA. A maior porcentagem de discordância com a POF foi para o grupo de fístulas que envolveram tanto a área anterior quanto posterior ao FI, sendo 83,3% para a área da CP e 96,6% para a área da FGA.

DISCUSSÃO

Os dados do presente estudo refletem discordância entre as áreas da cirurgia plástica e da fonoaudiologia, em um mesmo centro craniofacial, ao reportarem ocorrência e a localização de fístula após palatoplastia primária. A dificuldade para interpretar dados oriundos de prontuários e a falta de informação quanto à ocorrência ou localização de fístula justifica estes achados e foi mencionada em outros estudos4,5,10,11,13,15,16.

Comparar os achados sobre a ocorrência de fístula observados neste estudo com os achados reportados na literatura é tarefa complexa, uma vez que, segundo a área da CP, um total de 25% dos 466 pacientes apresentou fístula e segundo a área da FGA um total de 37% apresentou fístula. A avaliação POF, por sua vez, sugeriu que um total de 35% dos casos apresentou fístula. Essa discordância pode ser explicada tanto pela ausência de dados quanto pelos dados incompletos agravados pela discordância quanto à terminologia para indicar o local da fístula.

Por se tratar de pacientes com fissura transforame, era esperado que a maior incidência de fístula ocorresse na região pré-forame incisivo, o que foi documentado neste estudo pela área da FGA e na avaliação POF. A área da CP, por sua vez, nem sempre considera a fístula pré-forame incisivo uma complicação cirúrgica, uma vez que a “fístula intencional” pode ser resultado de uma decisão clínica tomada no momento da cirurgia dependendo da amplitude transversal da fissura e do procedimento cirúrgico sendo executado, o que justifica, em parte, a ausência de dados para 74 pacientes observada nos protocolos preenchidos pela área da CP. Salienta-se, ainda que quando a fístula pré-forame incisivo acomete apenas a região vestibular, o exame de inspeção e as fotografias intraorais podem não ser suficientes para a correta identificação deste tipo de fístula. Uma documentação padronizada, sistemática e consecutiva dos resultados das cirurgias, portanto, deve ser estabelecida pela equipe interdisciplinar, pois é essencial e necessária para a identificação de complicações cirúrgicas.

A força tarefa conhecida como “Task Force Beyond Eurocleft17, relata a importância de estudos multicêntricos (nacionais e internacionais) para documentar os resultados do gerenciamento da fissura labiopalatina, de forma que se possa estabelecer evidências científicas que substanciem o uso de protocolos de tratamento com resultados aceitáveis mundialmente. A ausência de um protocolo padronizado e validado para documentação de complicações após cirurgias primárias na fissura labiopalatina no Brasil justifica, em parte, a existência de relatos divergentes e também torna a realização de estudos comparativos entre diferentes centros craniofaciais uma tarefa complicada.

A avaliação padrão ouro da ocorrência de fístula usada como ferramenta para comparar os achados deste estudo deve ser considerada com cautela, uma vez que, além de não ser uma avaliação realizada presencialmente, considerou dados de várias áreas do prontuário (além da CP e FGA) combinados aos achados da análise de fotografias. Salienta-se também que as fotografias intraorais não foram obtidas para todos os casos (com fístula e também sem fístula). Ou seja, todos os 466 casos deveriam ter imagens fotográficas intraorais obtidas por meio de protocolo padronizado e com controle de qualidade. A falta de uma terminologia única e de um protocolo de avaliação pós-cirúrgica padronizado e usado em consenso pelas áreas da CP e FGA, portanto, justifica a divergência encontrada neste estudo.

Além das limitações metodológicas com relação às imagens fotográficas que não foram obtidas para todos os 466 casos e quanto à avaliação POF não ter sido realizada presencialmente, salienta-se também que informações sobre a amplitude transversal da fissura e sobre o cirurgião na palatoplastia primária não foram objeto deste estudo.

Independente das limitações existentes na metodologia implementada no presente estudo, os presentes dados evidenciaram a falta de consenso quanto aos relatos de fístula, sugerindo que uma documentação sistemática e adequada dos resultados da palatoplastia primária somente será possível a partir de um registro fidedigno dos achados clínicos registrados de forma interprofissional, presencial e também com registro de imagens fotográficas. Sugere-se, portanto, a necessidade de estabelecer e validar um protocolo de classificação de fístula, que possa ser aplicado tanto durante a inspeção oral presencial quanto a partir de análise de fotografias intraorais (as quais devem ser obtidas para todos os casos: com e sem fístula).

CONCLUSÃO

Observou-se neste estudo a existência de discordância entre as áreas da fonoaudiologia e da cirurgia plástica quanto à ocorrência e localização da fístula após a palatoplastia primária, em um mesmo centro craniofacial. Os dados apontam para a necessidade de ajustes nos protocolos de avaliação de forma a considerar-se a terminologia e localização da fístula.

Sugere-se ser essencial a criação e implementação de um sistema de classificação de fístula padronizado, que possa ser utilizado de forma efetiva, consecutiva e sistemática, por equipes craniofaciais, de forma a favorecer estudos multicêntricos que possam estabelecer evidências científicas dos resultados do tratamento da fissura labiopalatina.

COLABORAÇÕES

MFJ

Análise e/ou interpretação dos dados, análise estatística, aprovação final do manuscrito, coleta de dados, concepção e desenho do estudo, gerenciamento do projeto, metodologia, redação - preparação do original, redação - revisão e edição.

GAP

Análise e/ou interpretação dos dados, aprovação final do manuscrito, coleta de dados, redação - preparação do original, redação - revisão e edição.

TVSB

Análise e/ou interpretação dos dados, aprovação final do manuscrito, coleta de dados, redação - preparação do original, redação - revisão e edição.

HLAS

Análise e/ou interpretação dos dados, aprovação final do manuscrito, coleta de dados, metodologia, redação - revisão e edição.

JCRD

Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Aprovação final do manuscrito, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão

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1. Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, Universidade de São Paulo, Bauru, SP, Brasil.
2. Universidade de São Paulo, Bauru, SP, Brasil.

*Autor correspondente: Jeniffer de Cassia Rillo Dutka Rua Silvio Marchione, nº3-20, Vila Nova, Cidade Universitária, Bauru, SP, Brasil. CEP: 17012-900 E-mail: jdutka@usp.br

Artigo submetido: 27/06/2019.
Artigo aceito: 29/02/2020.

Conflitos de interesse: não há.

Instituição: Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, Universidade de São Paulo, Bauru, SP, Brasil.

 

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