ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175
Hemodiluição Aplicada ao Tratamento Cirúrgico das Escaras de Decúbito
Hemodilution in the Surgical Treatment of Pressure Sores
Articles -
Year2001 -
Volume16 -
Issue
1
Marcelo Figueiredo AlmeidaI, Nilo Garonci AlvesII, Kennedy Rossi Santos SilvaIII
RESUMO
A hemodiluição normovolêmica é um dos vários métodos existentes que visam a diminuir ou abolir o uso de sangue homólogo em cirurgias eletivas. Dez pacientes portadores de escaras de decúbito foram submetidos a tratamento de suas feridas com retalhos de vizinhança, sem necessidade de reserva de sangue pré-operatória, ou transfusão homóloga per-operatória, usando essa modalidade de autotransfusão. Após removida uma unidade de sangue concentrado, em uma bolsa usual de coleta, faz-se uma infusão rápida de soluções isotônicas na proporção de 4 por 1, até um hematócrito igualou menor que 30%, induzindo uma oligoemia. Conseqüentemente, o sangue perdido durante a cirgia tem menor concentração de hemácias, reduzindo a espoliação, e obtendo uma melhora da oxigenação tecidual. O sangue coletado é reposto ao final da intervenção. As indicações para a sua realização seriam as mesmas de uma transfusão homóloga, ou pelo menos quando fosse prudente fazer uma reserva pré-operatória. O método proposto foi considerado equivalente à transfusão homóloga nos casos operados, com as vantagens da facilidade de execução, do fato de dispensar refrigeração e exames laboratoriais pré-transfusionais, além de eliminar o risco de reações imunológicas e de transmissão de doenças infecciosas de origem hematogênica.
Palavras-chave:
Hemodiluição; autotransfusão; transfusão homóloga; transfusão sangüínea
ABSTRACT
The normovolemic hemodilution is one of the various methods available to reduce (or to abolish) the use of homologous blood during elective surgeries. Ten patients with pressure sores had plastic surgery without the need for allogeneic blood transfusion using this autotranfusion modality. After removal of a concentrated blood unit into a common collection bag, a quick infusion of isotonic solution in the proportion 4:1 is carried out up to hematocrit equal to or lower than 30% inducing oligohemia. Consequently, blood lost during surgery has lower erythrocyte concentration, reducing spoliation and getting an improved tissue oxygenation. The blood collected is replaced at the end of intervention. The indications are those of an homologous transfusion or, at least, when it would be judicious to make a preoperative storage. The proposed method was considered equivalent to homologous transfusion in the cases operated, with the advantages of easy performance, no need for refrigeration, and no need for laboratorial tests before transfusion. In additum, the risk of immunological reactions and hematogenic transmission of infectious diseases is abolished.
Keywords:
Hemodilution; autotranfusion; homologous transfusion; blood transfusion
INTRODUÇÃO
A autotransfusão sangüínea é uma prática antiga, que quase foi abandonada quando as transfusões homólogas tornaram-se simples e de fácil execução(1). O surgimento de complicações cada vez mais freqüentes relativas ao sangue homólogo, principalmente o risco de transmissão de doenças viróticas, levou à retomada dos métodos anteriores e estimulou a busca de novas alternativas.
A hemodiluição é uma modalidade de autotransfusão introduzida por Messmer(2), em 1972, que ganhou importância crescente quando passou a ser pesquisada e aplicada em diversas especialidades médicas (cirurgia geral e cardiovascular, ginecologia e obstetrícia,urologia, ortopedia, anestesia, hematologia).
A dinâmica do procedimento proposto estrutura-se em critérios fisiopatológicos bem definidos(3). O volume circulante é mais importante do que o hematócrito na manutenção da estabilidade hemodinâmica, que se mantém, assim como a oxigenação tecidual, até o limite de 20% do hematócrito(4). Mecanismos compensatórios, como o aumento do fluxo sangüíneo, da capacidade de extração de oxigênio e a diminuição da sua afinidade pela hemoglobina, facilitando a sua liberação para os tecidos, seriam acionados pelo organismo(5,6). A taxa de 30% surge como sendo aquela na qual há o melhor nível de transferência de oxigênio(7).
A diminuição da viscosidade e o aumento transitório de volume ocasionados pela hemodiluição levariam ao aumento do débito cardíaco, do retorno venoso e da resistência vascular periférica, aumentando o fluxo sangüíneo e melhorando a perfusão de órgãos vitais, pele e músculos(5,8,9).
A oligoemia decorrente da hemodiluição diminuiria a espoliação pré-operatória, que seria proporcional à queda do hematócrito. O objetivo final seria a diminuição do uso de sangue homólogo em pacientes portadores de escaras de decúbito.
PACIENTES E MÉTODO
Num período de 2 anos, 10 portadores de escaras de decúbito foram submetidos ao tratamento de suas feridas com retalhos fáscio e miocutâneos (músculo tensor da fáscia lata), sem necessidade de reserva de sangue pré-operatória ou de transfusão homóloga pré-operatória (Tabela I). Seis pacientes eram paraplégicos e foram submetidos apenas à sedação. Daqueles com sensibilidade cutânea normal, 3 foram submetidos à anestesia geral balanceada e 1 à anestesia peridural.
A coleta foi realizada imediatamente antes ou logo após o início do ato anestésico, numa bolsa habitualmente utilizada pelos bancos de sangue, que tem uma capacidade média de 500 ml. Finda a coleta, foram infundidas soluções isotônicas (soro fisiológico a 0,9%, Ringer), na proporção de 4 por 1, com base no peso da bolsa de coleta, rapidamente, com o objetivo de reduzir o hematócrito a níveis entre 27% e 30%, e só então a cirurgia foi iniciada. O restante da reposição hídrica teve como referência os padrões habitualmente utilizados em cirurgias de grande porte. O sangue coletado foi mantido na sala de cirurgia até o momento da transfusão, no final do procedimento cirúrgico.
A aferição laboratorial do método deu-se através de um eritrograma (contagem de hemácias - HM, hemoglobina - HGB e hematócrito - HCT) e um coagulograma (contagem de plaquetas - PLT, atividade de protrombina - AT, tempo de tromboplastina parcial- TTP, tempo de sangria - TS), realizados imediatamente antes e após a hemodiluição, e no 3º dia de pós-operatório, depois de alcançada a estabilidade hemodinâmica.
Foram considerados parâmetros pré-operatórios as dimensões e o tipo de retalho (Tabela I), o peso das compressas descartadas e a monitorização, que constou da medição da pressão arterial, da eletrocardiografia contínua e da sondagem vesical de demora. O peso dos pacientes, quando necessário, foi estimado por aproximação.
Todos os pacientes receberam, no pós-operatório, 100 mg diários de ferro elemento, por 2 meses.
RESULTADOS
O período máximo de coleta foi de 15 minutos. O tempo despendido na hemodiluição ficou em torno de 40 minutos, coincidindo, na sua quase totalidade, com o período gasto no preparo pré-operatório imediato. A perda de sangue detectável no pré-operatório variou de 300 a 475 ml.
A pressão arterial, o pulso, a diurese e a oxigenação estiveram dentro dos padrões desejados. Considerando-se a variação estipulada como sendo ideal de hematócrito (27% a 30%), os fatores de coagulação e a contagem de plaquetas oscilaram dentro da faixa de normalidade. Em um dos pacientes, a hemodiluição ultrapassou o planejado, levando a um hematócrito de 22,5%, com uma variação da contagem de plaquetas de 41%, da atividade de protrombina de 51%, e um tempo de tromboplastina parcial infinito, sem que houvesse alterações clinicamente perceptíveis da coagulação ou qualquer outro distúrbio que interferisse no ato cirúrgico ou anestésico (caso 8).
A avaliação laboratorial no 3° dia demonstrou perda de hemoglobina de até 18,9% e coagulograma normal (Tabela II).
DISCUSSÃO
A hemodiluição constitui-se numa modalidade de autotransfusão de farta aceitação(8,10,11,12), tendo sempre como objetivo principal evitar os riscos da transfusão homóloga. Entre esses, poderíamos citar a possibilidade de transmissão de hepatite, AIDS, citomegaloviroses, tripanossomíase e malária, além do risco de ocorrerem reações imunológicas.
O sangue armazenado também traria consigo alguns inconvenientes, como a perda do ácido 2,3- difosfoglicérico (2,3-DGP), importante para a liberação de oxigênio para os tecidos, o aumento de ácido lático, potássio e amônia, além da perda de plaquetas e fatores 5 e 8 da coagulaçâo(5,13,14).
É importante lembrar que seria necessário um período em torno de 6 meses para que o vírus da AIDS fosse detectado pelos exames de rotina e que há uma estimativa de contaminação de uma em cada 50.000 bolsas de sangue(12). Outro dado importante é que cerca de 10% dos transfundidos adquirem hepatite(13).
O sangue coletado para a hemodiluição pode ser mantido sem refrigeração por até 6 horas(15,16), na própria sala de cirurgia, o que virtualmente elimina o risco potencial de extravio ou troca do recipiente.
A opção pelo uso de colóides ou cristalóides é amplamente discutida. Considerando-se que apenas 25% do volume de uma solução isotônica (cristalóide) vai para o espaço intravascular(3), em uma hemodiluição normovolêmica, a reposição seria de 4 vezes o volume retirado. Se essa reposição for feita à custa de colóides, o volume será igual ao da retirada, o que implica o uso de um número maior de bolsas de coleta. Existe ainda a possibilidade da associação de ambos os diluentes(15,17).
Seria interessante ressaltar que o portador de escaras de decúbito, além da patologia básica que proporcionou o surgimento da ferida, geralmente passa por um longo período de internação e por algumas cirurgias prévias espoliantes (debridamentos), além da perda sangüínea constante pela ferida aberta.
Isto faz com que raramente tenha níveis elevados de hemoglobina, tornando prudente, no mínimo, fazer uma reserva de sangue pré-operatória. Além disso, o preparo da área receptora do retalho, que geralmente inclui a ressecção das proeminências ósseas envolvidas na etiologia da escara, implica considerável sangramento.
O grau de anemia tolerado pelo indivíduo não está bem definido. Níveis de 9 g/dl(17), 8 g/dl(4), até 7 g/dl (10, 17, 18) são aceitos por alguns autores. Devemos ponderar, contudo, que a fadiga e a morbidade podem ser consideráveis para perdas agudas expressivas, necessitando de até 6 semanas para recuperação.
As contra-indicações para a realização da hemodiluição seriam a anemia (hemoglobina menor que 11 g/dl), nefropatias com incapacidade de excretar o grande volume de líquidos oferecido, cardiopatia severa que limite a resposta compensatória e a baixa concentração de proteínas de coagulação(15).
CONCLUSÃO
São amplas e subjetivas as variáveis indicativas de uma hemotransfusão, assim como não há consenso absoluto com relação aos níveis ideais de hemoglobina pós-operatória desejados.
A técnica cirúrgica, o uso de vasoconstritores, do termocautério e a hipotensão controlada são fatores que minoram a espoliação.
O objetivo maior foi manter uma concentração de hemoglobina no 3° dia de pós-operatório próxima de 10 g/dl, o que foi conseguido quando o hematócrito pós-diluição esteve entre 27% e 30%, sem alteração da coagulabilidade. Mesmo no caso em que as condições padronizadas foram excedidas, o procedimento manteve sua eficácia, o que demonstra a sua segurança.
As indicações da hemodiluição normovolêmica seriam as mesmas de uma transfusão homóloga moderada, ou pelo menos quando fosse prudente proceder a uma reserva de sangue pré-operatória, por considerarmos os método equivalentes em termo de reposição de volume, com inequívocas vantagens. Seriam as cirurgias para as quais fosse esperada uma redução de hemoglobina aquém de 10 g/dl, como no tratamento das escaras de decúbito.
Trata-se, pois, de um procedimento simples, de fácil execução e de baixo custo, sem os riscos de transmissão de doenças veiculadas pelo sangue ou de reações imunológicas, realizado pela própria equipe cirúrgica, e que não altera expressivamente a rotina pré, per e pós-operatória.
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I - Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
II - Anestesista.
III - Membro Associado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
Trabalho realizado nos Hospitais Maria de Lourdes Drummond, Mater Dei e Prontocor
Endereço para correspondência:
Marcelo Figueiredo Almeida
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Belo Horizonte - MG 30110-100
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