INTRODUÇÃO
A fissura labiopalatina é a má-formação congênita craniofacial mais comum, com prevalência
estimada em 1 caso a cada 700 nascidos vivos. Dificuldades de alimentação, alterações
na fala e distúrbios auditivos são comuns nestes pacientes, tornando o tratamento
adequado multidisciplinar geralmente envolvendo cirurgia plástica, otorrinolaringologia,
fonoaudiologia, fisioterapia, ortodontia, enfermagem e psicologia. A necessidade de
diferentes especialidades dificulta a criação e manutenção de serviços especializados
nesta condição1,2.
A diversidade de classificações e o grande número de técnicas cirúrgicas utilizadas
nas cirurgias primárias (queiloplastia e palatoplastia) dificultam a comparação dos
dados epidemiológicos entre os serviços especializados e a avaliação de incidência
de complicações associadas a estas cirurgias.
Apesar de existirem muitos estudos que avaliaram a incidência de complicações em pacientes
submetidos a queiloplastia e palatoplastia, são escassos os trabalhos realizados em
centros especializados com menor tempo de criação3-9.
OBJETIVO
O objetivo desse trabalho foi avaliar o perfil epidemiológico e a incidência de complicações
dos pacientes com fissuras labiopalatinas submetidos a correção cirúrgica no Hospital
de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), em Uberlândia-MG, durante
os anos iniciais de estruturação do serviço de tratamento aos pacientes com fissuras
labiopalatinas (composto por um cirurgião plástico e craniomaxilofacial, equipe de
otorrinolaringologia, fonoaudióloga, odontólogo e residentes em cirurgia craniomaxilofacial
e otorrinolaringologia).
MATERIAIS E MÉTODOS
Foi realizado um estudo tipo coorte prospectiva com os pacientes com diagnóstico de
fissuras labiopalatinas submetidos a procedimentos cirúrgicos primários, pelo mesmo
cirurgião, acompanhado de residentes em cirurgia crâniomaxilo-facial, no HC-UFU, no
período de julho de 2017 a fevereiro de 2023.
Foram incluídos pacientes com idade inferior a 18 anos, submetidos aos procedimentos
cirúrgicos primários (queiloplastia e/ou palatoplastia) e que apresentavam acompanhamento
pós-operatório de pelo menos 3 meses no período analisado.
Pacientes com idade igual ou superior a 18 anos e submetidos a outros procedimentos
cirúrgicos foram excluídos do estudo.
Foi realizada a coleta dos seguintes dados: data de nascimento, data da realização
da cirurgia, classificação do tipo de fissura labiopalatina (através da classificação
de Veau), tipo(s) de cirurgia(s) realizada(s) e complicações associadas aos procedimentos.
Os pais ou responsáveis assinaram termo de consentimento informado previamente à cirurgia
concordando com os procedimentos cirúrgicos e autorizando a utilização dos dados.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o número
57032022.5.0000.5152.
Foi utilizada exclusivamente estatística descritiva para caracterização epidemiológica
e determinação da incidência de complicações.
RESULTADOS
Durante o período analisado, foram acompanhados 79 pacientes com diagnóstico de fissura
labiopalatina que foram submetidos a 115 cirurgias primárias (54 queiloplastias e
61 palatoplastias).
Dentre os pacientes acompanhados, 15 pacientes (18,98%) apresentavam classificação
de Veau tipo I , 12 pacientes (15,18%) tipo II, 31 pacientes (39,24%) tipo III e 21
pacientes (26,58%) tipo IV (Tabela 1).
Tabela 1 - Dados epidemiológicos dos pacientes com fissuras labiopalatinas.
Classificação (Veau) |
Número de casos |
Percentual |
Tipo 1 |
15 |
18,98% |
Tipo 2 |
12 |
15,18% |
Tipo 3 |
31 |
39,24% |
Tipo 4 |
21 |
26,58% |
Total |
79 |
|
Tabela 1 - Dados epidemiológicos dos pacientes com fissuras labiopalatinas.
As técnicas utilizadas nas queiloplastias foram Fisher em 35 casos (64,81%), Mulliken
(bilateral) em 2 casos (3,70%) e adesão labial em 15 casos (27,78%) (Tabela 2).
Tabela 2 - Tipos de cirurgias realizados.
Técnicas cirúrgicas |
Número de casos |
Percentual |
Queiloplastia |
|
|
Fisher |
35 |
64,81% |
Adesão labial |
17 |
27,78% |
Mulliken (bilateral) |
2 |
3,70% |
Total |
54 |
|
Palatoplastia |
|
|
Bardach (dois retalhos) |
38 |
62,29% |
Von Langenbeck |
20 |
32,78% |
Furlow |
3 |
4,92% |
Total |
61 |
|
Tabela 2 - Tipos de cirurgias realizados.
As técnicas utilizadas nas palatoplastias foram: Bardach (dois retalhos) em 38 pacientes
(62,29%), Von Langenbeck em 20 pacientes (32,78%) e Furlow em 3 pacientes (4,92%).
Em 5 pacientes (8,19%) foi associado o retalho de vômer (Tabela 2).
Onze complicações foram relatadas neste período: 2 deiscências em queiloplastias (3,70%),
1 cicatriz hipertrófica em queiloplastia (1,85%), 6 fístula em palatoplastias (9,83%)
e 2 deiscências em palatoplastias (3,28%) (Tabela 3).
Tabela 3 - Incidências de complicações.
Complicações |
Número de casos |
Percentual |
Queiloplastia |
|
|
Deiscência |
2 |
3,70% |
Cicatriz hipertrófica |
1 |
1,85% |
Total |
3 |
5,55% |
Palatoplastia |
|
|
Fístula |
6 |
9,83% |
Deiscência |
2 |
3,28% |
Total |
8 |
13,11% |
Tabela 3 - Incidências de complicações.
A incidência de complicações foi de 9,56% quando analisado o total de cirurgias, 5,55%
em pacientes submetidos a queiloplastia e 13,11% em pacientes submetidos a palatoplastia.
DISCUSSÃO
Este trabalho avaliou o perfil epidemiológico e a incidência de complicações em pacientes
com FLP submetidos a cirurgias primárias nos anos iniciais de estruturação do serviço
de fissuras labiopalatinas do HC-UFU.
A comparação de incidência de complicações totais encontra limitação na literatura
devido ao fato de trabalhos considerarem diferentes ocorrências como complicações
(alguns trabalhos consideram, por exemplo, a presença de febre no período pós-operatório
como complicação). Apesar da diferença de critérios, nossa incidência de 9,56% apresenta-se
inferior ao trabalho realizado por Gatti et al.10, que apresentou incidência de 14,16%.
Em relação à queiloplastia, trabalhos recentes mostram presença de complicações variando
entre 4,4% e 40%, enquanto apresentamos 5,55%3,6,7,11. A presença de deiscência em queiloplastias apresenta variação entre 3,2% e 15,4%
dos pacientes, enquanto nós observamos em 3,70%3,11. E a cicatrização hipertrófica em 14,9%, enquanto em nossos pacientes foi de 1,85%11.
Nas palatoplastias a incidência total de complicações apresenta grande variabilidade
na literatura recente (15,8% a 70%); nossa incidência foi de 13,11%5-7. A evolução com fístulas apresenta-se em 2,4% a 28% dos pacientes e, em nosso serviço
a incidência foi de 9,83%4,5,11-17. Já a presença de deiscência em palatoplastia varia entre 0,7% e 4%, enquanto apresentamos
3,28%5,12,18.
Trabalhos recentes mostram que o volume cirúrgico (acima de 25 cirurgias/ano) bem
como a experiência do cirurgião influenciam na redução de complicações em pacientes
com fissuras labiopalatinas18,19.
Nosso trabalho apresenta limitações importantes (quantidade de pacientes devido à
estruturação recente do serviço, somente um cirurgião com experiência em fissuras
labiopalatinas, dificuldade de comparação com outros estudos devido à variação de
critérios de diagnóstico e complicações e variabilidade de técnicas cirúrgicas utilizadas
em cada serviço) e, apesar destas limitações, a incidência de complicações foi semelhante
a estudos em centros já consolidados.
CONCLUSÃO
Nosso estudo evidenciou incidência de complicações similar à de outros centros já
consolidados e é necessário acompanhamento de longo prazo para avaliarmos a possibilidade
de redução de complicações com o aumento do volume cirúrgico e maior experiência.
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DOI: 10.1177/10556656211046810
1. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil
Autor correspondente: José Mauro de Oliveira Squarisi Rua Francisco Sales, 86, Osvaldo Resende, Uberlândia, MG, Brasil., CEP: 38400-440,
E-mail: josemauroeu@yahoo.com.br
Artigo submetido: 14/09/2023.
Artigo aceito: 04/02/2024.
Conflitos de interesse: não há.