INTRODUÇÃO
Defeitos de grandes dimensões na região superior do dorso, como nos casos de exposição
de vértebras, nas úlceras de pressão ou naqueles que evoluem com deiscência e exposição
de placas ou parafusos, podem ser de fechamento complexo, assim como nas exposições
de meninge em mielomeningoceles altas. O tratamento convencional pode exigir grandes
retalhos com enxertia de pele na área doadora e, por vezes, o tempo necessário para
a suficiente granulação1.
O músculo trapézio pode ser dividido em três partes: ascendente, transversa e descendente,
com irrigação pelas artérias occipital, cervical transversa, dorsal da escápula e
intercostais posteriores. De acordo com a classificação de Mathes & Nahai1, essa vascularização é do tipo II baseada em um pedículo dominante, a artéria cervical
transversa (ACT)1.
Segundo Horch & Stark2, após a extirpação de tumores, o tratamento ideal é o fechamento precoce e feito
de eleição com retalho muscular, que leva à irrigação ao defeito.
O primeiro retalho musculocutâneo do trapézio foi descrito por Baek et al., em 1980,
com aplicação em cabeça e pescoço, porém com limitações de vascularização que ainda
são referidas em outras publicações1-5.
De acordo com os estudos de Weiglein et al.3, a artéria dorsal da escápula (ADE) tem importância na garantia de um território
cutâneo maior e sua preservação nos retalhos de trapézio pode incluí-la na classificação
de tipo V de Mathes e Nahai.
Segundo Cormack & Lamberty6, a irrigação das partes ascendente e transversa do músculo é feita pelas artérias
occipital e cervical transversa com ramos perfurantes para a pele que garantem um
território cutâneo dentro dos limites anatômicos do músculo. Porém, na parte descendente,
quando a porção cutânea ultrapassa em 5 centímetros o ângulo inferior da escápula,
sofre e necrosa, pois a pele desta região é irrigada por perfurantes diretas da ADE
que, embora tenha território cutâneo maior, não é preservada nos retalhos baseados
na ACT2,6.
Yang & Morris4 dissecaram 20 cadáveres e descreveram dois padrões de irrigação para a porção descendente
do músculo trapézio e constataram a constância da ADE cujo território cutâneo é descrito
com dimensões que ultrapassam os limites daquele atribuído à ACT, mas não estabeleceram
seus limites.
Netterville & Wood5 estudaram a irrigação do músculo trapézio e relataram o encontro da ADE como pedículo
dominante em 15 lados de 30 dissecções, a ACT em 9 lados e em 6 lados a dominância
de ambas as artérias. Os autores enfatizaram a importância da primeira na irrigação
da porção musculocutânea caudal ao ângulo inferior da escápula.
Rocha et al.7 estudaram oito lados por dissecções em cadáveres e 60 lados por EcoDoppler em voluntários
e constataram a constância da artéria dorsal da escápula com os dois padrões de trajeto
já descritos. Verificaram que os dois padrões permitem a mobilização do retalho em
composição musculocutânea com território cutâneo que ultrapassa os limites do músculo
em seu terço inferior.
Tendo em vista estes conceitos e as dificuldades encontradas em casos de defeito na
região superior do dorso, os autores planejaram um retalho musculocutâneo do trapézio
que, com a preservação da artéria dorsal da escápula, assegurasse um território cutâneo
de grandes dimensões e permitisse o fechamento primário da área doadora com mobilização
em V-Y.
OBJETIVO
Tratar defeitos de grandes dimensões com exposição óssea na região superior do dorso
com retalho musculocutâneo do trapézio com território cutâneo maior que o recomendado
na literatura e fechar a área doadora primariamente com mobilização em V-Y.
MÉTODO
O protocolo deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade
de Ciências Médicas da Universidade do Vale do Sapucaí, sob o número 169/02, em 20
de agosto de 2002, e os procedimentos foram conduzidos no período de 2002 a 2012.
Cinco casos de pacientes sucessivos portadores de neoplasia maligna na região superior
do dorso (Tabela 1) foram submetidos a biópsia incisional diagnóstica.
Tabela 1 - Pacientes.
Sexo |
Idade em anos
|
Diagnóstico |
Dimensões do defeito (longitudinal x transversal)
|
Masculino |
69 |
Carcinoma basocelular |
8cm x 8cm |
Feminino |
80 |
Carcinoma escamocelular |
9cm x 9cm |
Masculino |
17 |
Dermatofibrosarcoma Protuberans |
10cm x 16cm |
Masculino |
70 |
Carcinoma basocelular |
10cm x 9cm |
Masculino |
53 |
Carcinoma basocelular semeado por tatuagem ornamental |
10cm x 14cm |
Por consentimento pós-informado aderiram ao protocolo e foram individualmente submetidos
a extirpação do tumor.
Os procedimentos consistiram na confecção de uma ilha triangular de pele e subcutâneo
à vizinhança do defeito e com uma parte de sua extensão sobre o músculo trapézio do
lado escolhido, preservando as perfurantes da extremidade inferior provenientes da
artéria dorsal da escápula. Em cada caso o músculo foi dissecado em sua parte descendente,
liberado de suas origens vertebrais e inserções escapulares. Os vasos intercostais
posteriores foram ligados com fio 4-0 de poliglactina 910 e seccionados sem o uso
de termocautério. O músculo foi rebatido da margem medial para a lateral para permitir
a identificação e preservação da ADE que penetra pela face profunda (Figuras 1 a 20).
Figura 1 - (Caso 1): Carcinoma basocelular em região superior do dorso.
Figura 1 - (Caso 1): Carcinoma basocelular em região superior do dorso.
Figura 2 - (Caso 1): Defeito de 8 x 8cm com exposição de vértebras.
Figura 2 - (Caso 1): Defeito de 8 x 8cm com exposição de vértebras.
Figura 3 - (Caso 1): Ilha de pele e subcutâneo sobre a porção inferior do músculo trapézio esquerdo.
Figura 3 - (Caso 1): Ilha de pele e subcutâneo sobre a porção inferior do músculo trapézio esquerdo.
Figura 4 - (Caso 1): Músculo rebatido e artéria dorsal da escápula preservada. A ilha de pele
ultrapassa as dimensões do músculo e a linha média.
Figura 4 - (Caso 1): Músculo rebatido e artéria dorsal da escápula preservada. A ilha de pele
ultrapassa as dimensões do músculo e a linha média.
Figura 5 - (Caso 1): Rotação do músculo com transferência da ilha de pele para o defeito. A seta
indica a artéria dorsal da escápula no pivô da rotação.
Figura 5 - (Caso 1): Rotação do músculo com transferência da ilha de pele para o defeito. A seta
indica a artéria dorsal da escápula no pivô da rotação.
Figura 6 - (Caso 1): Retalho transferido e área doadora fechada em V-Y.
Figura 6 - (Caso 1): Retalho transferido e área doadora fechada em V-Y.
Figura 7 - (Caso 2): Carcinoma basocelular em transição toracocervical.
Figura 7 - (Caso 2): Carcinoma basocelular em transição toracocervical.
Figura 8 - (Caso 2): Defeito de 9 x 9cm com exposição de vértebras.
Figura 8 - (Caso 2): Defeito de 9 x 9cm com exposição de vértebras.
Figura 9 - (Caso 2): Retalho com ilha de pele que ultrapassa os limites do músculo. A seta indica
a artéria dorsal da escápula penetrando a face profunda do músculo.
Figura 9 - (Caso 2): Retalho com ilha de pele que ultrapassa os limites do músculo. A seta indica
a artéria dorsal da escápula penetrando a face profunda do músculo.
Figura 10 - (Caso 2): Retalho suturado no defeito e área doadora fechada em V-Y.
Figura 10 - (Caso 2): Retalho suturado no defeito e área doadora fechada em V-Y.
Figura 11 - (Caso 3): Dermatofibrossarcoma em região superior do dorso.
Figura 11 - (Caso 3): Dermatofibrossarcoma em região superior do dorso.
Figura 12 - (Caso 3): Defeito de 10 x16cm com exposição de vértebras e escápula direita.
Figura 12 - (Caso 3): Defeito de 10 x16cm com exposição de vértebras e escápula direita.
Figura 13 - (Caso 3): Retalho com ilha de pele que ultrapassa os limites do músculo e a linha
média. A seta indica a artéria dorsal da escápula penetrando a face profunda do músculo.
Figura 13 - (Caso 3): Retalho com ilha de pele que ultrapassa os limites do músculo e a linha
média. A seta indica a artéria dorsal da escápula penetrando a face profunda do músculo.
Figura 14 - (Caso 3): Terceiro dia pós-operatório. Retalho suturado no defeito e área doadora
fechada em V-Y.
Figura 14 - (Caso 3): Terceiro dia pós-operatório. Retalho suturado no defeito e área doadora
fechada em V-Y.
Figura 15 - (Caso 4): Carcinoma basocelular em transição toracocervical.
Figura 15 - (Caso 4): Carcinoma basocelular em transição toracocervical.
Figura 16 - (Caso 4): Defeito de 10 x 9cm com exposição de vértebras.
Figura 16 - (Caso 4): Defeito de 10 x 9cm com exposição de vértebras.
Figura 17 - (Caso 4): Terceiro mês pós-operatório.
Figura 17 - (Caso 4): Terceiro mês pós-operatório.
Figura 18 - (Caso 5): Carcinoma basocelular semeado por tatuagem ornamental.
Figura 18 - (Caso 5): Carcinoma basocelular semeado por tatuagem ornamental.
Figura 19 - (Caso 5): Defeito de 10 x 14cm com remoção da porção transversa do músculo trapézio
e da artéria cervical transversa (ACT), sendo preservada somente a artéria dorsal
da escápula (ADE).
Figura 19 - (Caso 5): Defeito de 10 x 14cm com remoção da porção transversa do músculo trapézio
e da artéria cervical transversa (ACT), sendo preservada somente a artéria dorsal
da escápula (ADE).
Figura 20 - (Caso 5): Quarta semana pós-operatória.
Figura 20 - (Caso 5): Quarta semana pós-operatória.
Os retalhos foram transferidos por rotação do músculo de modo a promover, num movimento
pendular, o avanço da ilha de pele para o defeito e fechamento em V-Y. Os descolamentos
foram drenados com aspiração contínua por três dias.
RESULTADOS
Todos os espécimes foram estudados e apresentaram margens livres de tumor.
Não houve complicações relativas à anestesia nem ao procedimento operatório, exceto
pela ocorrência de seroma que foi constatado e drenado ambulatorialmente na segunda
semana de pós-operatório nos dois primeiros casos, a despeito do uso do dreno.
Os pontos da pele foram removidos entre o 10º e o 15º dias.
Nos cinco casos, os retalhos evoluíram sem sofrimento e foram suficientes para tratar
defeitos de grandes dimensões (Tabela 1).
DISCUSSÃO
Os pedículos foram facilmente identificados nos dois padrões anatômicos da ADE e preservados1,3,4.
A preservação da ADE não dificultou o arco de rotação do retalho, uma vez que os retalhos
foram desenhados distalmente aos defeitos e mobilizados no sentido cefálico, aproximando-se
da origem dos vasos2,4-7.
Em todos os casos o território cutâneo ultrapassou os limites longitudinal e transverso,
diferentemente das recomendações desencorajadoras descritas na literatura como características
dos retalhos baseados na ACT. A viabilidade ficou demonstrada muito além dos 5cm caudais
à ponta da escápula e da dimensão do músculo trapézio e, até mesmo, além da linha
média do dorso2,4,6,7.
A extensão do território cutâneo obtido com a preservação da ADE permitiu a confecção
da ilha de pele com formato alongado, conveniente para o fechamento em V-Y, atenuando
a tensão na área doadora e as dimensões do pedículo permitiram a mobilização da ilha
para defeitos até a quarta vértebra cervical e acima da espinha da escápula (Figuras 8, 9, 10, 18, 19, 20).
O retalho em V-Y tem a virtude de transferir grande território cutâneo e tratar a
área doadora simultaneamente, pela redistribuição da ilha cutânea, diferentemente
dos retalhos de transposição, habitualmente confeccionados com o músculo trapézio.
A inervação motora, pelo XI nervo craniano, da porção ascendente do músculo foi preservada
e manteve o movimento de elevação da escápula em todos os casos.
CONCLUSÃO
O retalho musculocutâneo ilhado do trapézio baseado na ADE é seguro e pode ser transferido
em V-Y com fechamento primário da área doadora para os casos de defeito com exposição
óssea na região superior do dorso.
REFERÊNCIAS
1. Mathes SJ, Nahai F. Reconstructive surgery: principles, anatomy and technique. 1st
ed. New York: Churchill Livingstone; 1997. p. 651-77.
2. Horch RE, Stark GB. The contralateral bilobed trapezius myocutaneous flap for closure
of large defects of the dorsal neck permitting primary donor site closure. Head Neck.
2000;22(5):513-9.
3. Weiglein AH, Haas F, Pierer G. Anatomic basis of the lower trapezius musculocutaneous
flap. Surg Radiol Anat. 1996;18(4):257-61.
4. Yang D, Morris SF. Trapezius muscle: anatomic basis for flap design. Ann Plast Surg.
1998;41(1):52-7.
5. Netterville JL, Wood DE. The lower trapezius flap. Vascular anatomy and surgical technique.
Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1991;117(1):73-6.
6. Cormack GC, Lamberty BGH. The arterial anatomy of skin flaps. 2nd ed. New York: Churchill
Livingstone; 1994. p. 324.
7. Rocha JLBS, Paiva GR, Rocha LCS. A artéria dorsal da escápula no terço inferior do
músculo trapézio. Rev Bras Cir Plást. 2021;36(2):151-5.
1. Fundação Hospitalar do Acre, Programa de Reabilitação e Assistência aos Fissurados
da Face, Rio Branco, AC, Brasil
2. Clínica Paiva e Rocha, Pouso Alegre, MG Brasil
Autor correspondente: João Lorenzo Bidart Sampaio Rocha Av. Alberto de Barros Cobra, 717, Pouso Alegre, MG, Brasil. CEP: 37553-459, E-mail:
joaolorenzorocha@gmail.com
Artigo submetido: 16/07/2023.
Artigo aceito: 04/02/2024.
Conflitos de interesse: não há.