INTRODUÇÃO
Os acidentes botrópicos são responsáveis pela maioria dos acidentes ofídicos no
Brasil, representando aproximadamente 90,5% dos casos. Serpentes da família
Viperidae, especificamente dos gêneros
Bothrops e Bothrocophias, são encontradas em
todo o Brasil, principalmente em áreas agrícolas, costeiras e periurbanas.
Em 2021, foram notificados 31.354 acidentes ofídicos no país, sendo 5.723 casos no
estado do Pará, 3.118 casos no estado da Bahia, 3.030 casos no estado de Minas
Gerais, 2.238 casos no estado do Maranhão, 2.112 casos no estado do Amazonas e
2.023
casos no estado de São Paulo, classificando-o como o 6º estado com maior incidência
nesse período1-3. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o
envenenamento por picada de cobra como uma doença tropical negligenciada que
representa um problema significativo de saúde pública, com altas taxas de morbidade
e mortalidade4-6.
A doença tem baixa letalidade, estimada em 0,3%. Entretanto, as complicações
decorrentes dos acidentes botrópicos são a maior preocupação nesses incidentes,
pois
podem causar sangramento, síndrome compartimental, necrose muscular e lesão renal
aguda, resultando em sequelas anatômicas ou funcionais significativas. Nestes
casos,
o tratamento específico é fundamental, principalmente a administração precoce
de
soro antiveneno para neutralizar as toxinas injetadas3,7.
OBJETIVO
Nesse contexto, o objetivo deste relato é descrever o caso de um paciente submetido
a
fasciotomia em membro superior após síndrome compartimental aguda secundária a
envenenamento botrópico, num momento em que o tempo de internação era restrito
devido à pandemia de SARS-CoV-2. Além disso, explora a indicação técnica da
fasciotomia descompressiva, bem como sua abordagem para enxerto dermoepidérmico
em
procedimento cirúrgico subsequente.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 52 anos, destro, branco, procedente de zona rural
(fazenda), foi encaminhado de um centro médico de Jarinu, SP, Brasil, ao Pronto
Atendimento do Hospital de Beneficência São Vicente de Paulo (HCSP), no dia 2
de
abril de 2021, em Jundiaí, SP - Brasil. Chegou 4 horas após ser picado por cobra
Jararaca (Bothrops) na região tenar da mão esquerda, procurando
atendimento médico especializado.
Na avaliação inicial, observou-se pequena perfuração na mão esquerda, sem
sangramento. O membro superior esquerdo do paciente apresentava-se edemaciado
e
endurecido até a região cubital, com sistema neurovascular íntegro. O paciente
apresentava estado geral estável, sem sinais de cianose ou icterícia, respirando
confortavelmente, com leve confusão mental aguda, mas com nível de consciência
preservado. Não houve déficits neurológicos ou ptose. Sua frequência cardíaca
era de
85bpm e sua pressão arterial era de 90/60mmHg. A avaliação neurológica foi
desafiadora devido à intoxicação.
O manejo inicial foi realizado no pronto-socorro, que incluiu hidratação intravenosa,
alívio da dor, corticoterapia, suporte clínico, além de monitorização hemodinâmica
e
neurológica. Os exames laboratoriais iniciais mostraram aumento progressivo de
níveis de creatina fosfoquinase (2.782U/L), tempo e atividade de protrombina
prolongados (INR: 1,78) e trombocitopenia grave (18.000/mm3).
Entretanto, não foi necessária transfusão sanguínea, pois os valores melhoraram após
o tratamento inicial. Não houve evidência de acidose metabólica (pH 7,37), lesão
renal aguda (Cr 0,88mg/dl) ou distúrbios eletrolíticos (sódio 137mEq/L; potássio
5,0mEq/L; cálcio 1,18mmol/L). O Centro de Informação e Assistência Toxicológica
de
Campinas (CIATox) foi consultado e recomendou a administração de soro antibotrópico,
dose única de 120mL, com infusão programada para 7 horas após o evento inicial.
Durante a avaliação de acompanhamento, após 2 horas, o paciente apresentou dor
intensa que não respondeu à analgesia com opioides. Foram observadas lesões bolhosas
e limitação de movimentos, como extensão e flexão do cotovelo. Apesar de receber
soro antiveneno, o edema continuou a se espalhar para a região axilar.
Devido ao agravamento do quadro clínico, acompanhado de parestesia e paresia, foi
diagnosticada síndrome compartimental aguda. Consequentemente, foi indicada
fasciotomia do membro superior esquerdo após 16 horas. O procedimento cirúrgico
consistiu em incisão única na pele e tecido subcutâneo com bisturi frio, iniciando
na região palmar da mão, continuando na superfície anterior do antebraço e terço
médio do braço, seguindo as linhas naturais de tensão da pele. A hemostasia foi
alcançada e a fáscia muscular tensa foi liberada com tesoura de Metzenbaum. Nenhuma
evidência de necrose muscular foi observada durante a cirurgia, eliminando a
necessidade de incisões adicionais de fasciotomia (Figura 1).
Figura 1 - Fasciotomia da região tenar, antebraço e braço distal para liberação
de tensão compartimental, sem áreas de necrose muscular.
Figura 1 - Fasciotomia da região tenar, antebraço e braço distal para liberação
de tensão compartimental, sem áreas de necrose muscular.
Durante o pós-operatório imediato na unidade de terapia intensiva, o paciente
apresentou estabilidade clínica e melhora gradual da dor, edema e parestesia,
mas
continuou com extensão limitada dos movimentos dos braços e dedos. Após 12 dias
(14
de abril de 2021), foi realizada enxertia dermoepidérmica na área cruenta (Figura 2).
Figura 2 - Enxerto dermoepidérmico após integração, sem coleções ou sinais de
infecção.
Figura 2 - Enxerto dermoepidérmico após integração, sem coleções ou sinais de
infecção.
O paciente evoluiu sem sinais de infecção ou coleção, com integração adequada do
enxerto. Durante reavaliação ambulatorial pós-operatória tardia (5 meses após
o
procedimento cirúrgico), o paciente queixou-se de extensão limitada do cotovelo
esquerdo. Optou-se por reavaliar o assunto devido à hipótese diagnóstica de
contração do enxerto.
No dia 27 de outubro de 2021 foi realizada excisão parcial da área de enxerto de pele
do braço e região cubital (áreas fibróticas), com confecção de 2 retalhos de
zetaplastia. O paciente manteve-se clínica e hemodinamicamente estável, sem queixas,
e recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial. Durante a consulta
de
seguimento, observou-se o retorno da funcionalidade do membro superior esquerdo,
sem
novas indicações cirúrgicas (Figuras 3 e 4).
Figura 3 - Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço
estendido).
Figura 3 - Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço
estendido).
Figura 4 - Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço
flexionado).
Figura 4 - Resultado pós-operatório tardio após zetaplastia (braço
flexionado).
DISCUSSÃO
No Brasil, os acidentes ofídicos continuam sendo um problema de saúde pública e são
considerados a segunda causa mais frequente de intoxicação humana, perdendo apenas
para as intoxicações relacionadas a medicamentos8. O veneno é injetado no corpo através das presas após a
picada de cobra. A toxina secretada consiste em misturas complexas de proteínas
(90
a 95% do total), peptídeos, aminoácidos, lipídios, carboidratos, enzimas (como
acetilcolinesterase, proteases, colagenases, fibrogenases, entre outras), compostos
inorgânicos e cátions, que determinam um perfil bioquímico e toxicológico com
ampla
gama de manifestações clínicas4,9.
Esses compostos têm como alvo receptores celulares, proteínas de membrana e
coagulação. A ação do veneno de Bothrops resulta principalmente em
citotoxicidade, miotoxicidade e hemotoxicidade no corpo humano. Isto leva à
hemólise, destruição de células musculares, miócitos e linfócitos, necrose tecidual,
aumento da permeabilidade vascular e interferência no sistema de coagulação. As
possíveis consequências desse processo incluem lesão renal aguda, falência de
órgãos, hemorragia local ou sistêmica, hipotensão, rabdomiólise e síndrome
compartimental aguda.
A investigação desta toxina levou não só ao desenvolvimento de tratamentos para
envenenamento, mas também a avanços farmacêuticos, como a produção de captopril
e
outras terapias4,9.
As medidas de primeiros socorros após uma picada de cobra envolvem retirar o paciente
do local e transferi-lo para um centro médico apropriado, imobilizando e descansando
o membro afetado. A identificação da cobra só é aconselhada se puder ser feita
em
ambiente seguro, sem atrasar o atendimento médico, sendo recomendável tirar foto
digital para identificação. Além disso, é aconselhável retirar joias do membro
afetado devido ao risco aumentado de síndrome compartimental10-12.
No ambiente intra-hospitalar, a abordagem envolve o manejo dos sinais vitais e
atenção ao risco de sangramento e choque (hipovolemia por hemorragia secundária
a
coagulopatia, ação de toxinas ou edema da área afetada). A infusão inicial de
solução cristaloide pode ser iniciada ou avançada para transfusão sanguínea com
base
em parâmetros laboratoriais (hemograma completo).
O tratamento específico consiste na administração precoce e direcionada de soro
antibotrópico quando há suspeita do agente. Países tropicais com alta incidência
de
acidentes envolvendo animais peçonhentos, como a Austrália, utilizam kits combinados
de detecção de veneno para esse fim, para identificar o animal mais provável.
Entretanto, esse teste não está disponível no Brasil e métodos clínicos são
utilizados para distinção10-12.
Dentre os desfechos potenciais, a síndrome compartimental se destaca por sua rápida
progressão e morbidade significativa, incluindo mionecrose, amputação de membros,
neuropatia e até morte, embora a incidência relatada seja baixa (6,6%)13. A maioria dos casos ocorre nos
membros superiores, correspondendo a 69,6%, conforme observado neste
relato14.
A fisiopatologia da síndrome compartimental envolve aumento da pressão dentro dos
compartimentos musculares, que são circundados por fáscia. Essa pressão ultrapassa
a
pressão de perfusão tecidual e obstrui o retorno venoso no membro afetado,
resultando em isquemia e dano celular.
Inicialmente, há dor desproporcional em relação à extensão da lesão, além de
alteração na condução nervosa, levando a parestesia e fraqueza muscular quando
a
pressão do compartimento excede 30mmHg ou quando o gradiente de pressão diastólica
dentro do compartimento cai abaixo de 30mmHg. Posteriormente, desenvolve-se
isquemia, levando à necrose tecidual.
O monitoramento pode ser feito medindo diretamente a pressão intracompartimental ou
avaliando parâmetros clínicos.
É crucial destacar que qualquer compartimento muscular tenso e doloroso após uma
lesão pode indicar uma potencial síndrome compartimental. Reavaliações regulares,
avaliação cirúrgica especializada e posterior liberação compartimental são
necessárias nesses casos15,16.
A fasciotomia precoce, idealmente nas primeiras 4 horas do início dos sintomas
clínicos, é o tratamento definitivo e reduz a necessidade de amputações. As
indicações para o procedimento incluem forte suspeita clínica ou medição da pressão
compartimental para confirmar a presença de síndrome compartimental aguda.
A cirurgia deve ser realizada em centro cirúrgico, mas nos casos em que pacientes
instáveis não podem ser transportados, pode ser benéfico realizar o procedimento
em
unidade de terapia intensiva com sedação leve e anestesia local. O objetivo é
dissecar cuidadosamente o membro afetado ao longo de planos específicos, liberando
a
fáscia muscular tensa sob visualização direta e, posteriormente, aliviando a pressão
compartimental. Após o procedimento, é importante avaliar a integridade e a
aparência dos músculos, tendo cuidado com a síndrome de reperfusão.
Após a resolução da síndrome compartimental, é necessário considerar opções de
reconstrução da ferida operatória. Essas opções incluem fechamento primário precoce,
aproximação gradual da ferida (a “Técnica Lace”), terapia com pressão negativa
(TPN)
e enxerto de pele de espessura parcial16-19. De acordo com a
literatura, até o momento não se chegou a um consenso sobre o melhor método de
fechamento19.
Consequentemente, a técnica escolhida varia de acordo com a preferência do cirurgião
e o contexto em que o paciente está inserido20.
Em nosso caso, o paciente não foi considerado adequado para fechamento primário
precoce, pois estava no pós-operatório com hérnia muscular significativa e alto
risco de recorrência da síndrome compartimental18. O uso da TPN e da técnica de aproximação gradual da ferida
foi limitado pela necessidade para uma internação hospitalar prolongada17,20.
Esses procedimentos não foram viáveis devido ao contexto da pandemia de SARS-CoV-2,
quando todos os recursos humanos e materiais estavam direcionados aos pacientes
com
COVID-19. Além disso, a TNP apresentou a limitação adicional de seu custo
consideravelmente elevado, principalmente em hospitais carentes de recursos, como
os
integrados ao sistema público de saúde (Sistema Único de Saúde - SUS).
CONCLUSÃO
Acidentes envolvendo animais peçonhentos, embora categorizados como doenças tropicais
negligenciadas, permanecem altamente prevalentes no Brasil, resultando em baixas
taxas de letalidade, mas em morbidade significativa. Uma complicação notável é
a
síndrome compartimental aguda, uma condição que avança rapidamente e que deve
ser
levada em conta em tais acidentes. A identificação e o tratamento precoces desta
complicação, com ênfase em reavaliações regulares por cuidados médicos
especializados, são cruciais para resultados favoráveis. Embora a literatura
recomende um tempo máximo ideal de 4 horas, o procedimento foi eficaz na prevenção
de maiores morbidades em nosso paciente, mesmo sendo realizado além do tempo
recomendado.
Dada a falta de consenso sobre a melhor técnica, a experiência do cirurgião e o
contexto do paciente determinam a abordagem mais adequada. Além disso, o
acompanhamento pós-operatório é crucial para identificar e tratar possíveis
complicações tardias, incluindo deiscência de sutura, necrose tecidual e contraturas
cicatriciais.
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1. Hospital São Vicente de Paulo, Jundiaí,
Jundiaí, SP, Brasil
2. Faculdade de Medicina de Jundiaí, Jundiaí, SP,
Brasil
Autor correspondente: Alexandre Venâncio de Sousa
Rua São Vicente de Paulo, 223, Centro, Jundiaí, SP, Brasil, CEP: 13201-625,
E-mail: alexandrevenancio@gmail.com
Artigo submetido: 17/07/2023.
Artigo aceito: 05/12/2023.
Conflitos de interesse: não há.