INTRODUÇÃO
A cirurgia ortognática envolve manipulação da arquitetura óssea facial, através de
osteotomias, para restaurar a forma e a função, corrigindo a má oclusão, as
desproporções maxilomandibulares e assimetrias faciais1. O reposicionamento dos maxilares se dá através da
utilização de guias cirúrgicos confeccionados na fase laboratorial (pré-operatória)
durante o planejamento cirúrgico.
O planejamento virtual em cirurgia ortognática é realizado com ajuda de
softwares que utilizam as medidas reais do esqueleto
craniofacial e registros da oclusão do paciente, através de uma análise 3D,
diferente da avaliação 2D do planejamento convencional. É possível simular os
movimentos cirúrgicos virtualmente da maxila, mandíbula e mento em todos os sentidos
e criar no computador os guias cirúrgicos para impressão 3D. Entre as vantagens,
quando comparado ao método convencional, estão uma maior precisão da tradução
do
plano cirúrgico no intraoperatório, na confecção de guias e um menor tempo na
execução do planejamento2,3.
OBJETIVO
O objetivo desse trabalho é demonstrar a utilização do planejamento virtual em uma
série de 18 casos de pacientes com deformidades dentoesqueléticas tratados através
de cirurgia ortognática.
MÉTODO
Foram avaliados 18 pacientes com deformidades dentofaciais, de acordo com a
classificação de Angle (Classe 1, 2 e 3), submetidos a cirurgia ortognática com
o
uso do planejamento virtual, entre 2018 e 2019, no Hospital Felício Rocho - Belo
Horizonte-MG. Os critérios de inclusão foram pacientes entre 16 e 60 anos com
desproporções maxilomandibulares, com assimetrias ou não, nos quais o tratamento
ortodôntico isolado não era suficiente para correção da má oclusão e melhora da
estética facial. Os critérios de exclusão foram a presença de lesões císticas
ou
tumorais nos maxilares e comorbidades clínicas que contraindicavam o procedimento
cirúrgico.
O planejamento virtual foi realizado em todos os pacientes, utilizando o
software Dolphin® Imaging 11 e os guias cirúrgicos
confeccionados em impressora 3D. Foram utilizados em todos os casos para a execução
do planejamento tomografias computadorizadas de face multislice ou
cone beam, escaneamento intraoral das arcadas dentais, fotos
intra e extraorais. Os guias cirúrgicos foram todos confeccionados em resina na
mesma impressora 3D. Os planejamentos virtuais e a execução das cirurgias foram
realizados pelo mesmo cirurgião. As cirurgias foram feitas sob anestesia geral,
através de intubação nasotraqueal.
A técnica cirúrgica utilizada na maxila foi osteotomia Lefort I; na mandíbula, as
osteotomias sagitais dos ramos; e na mentoplastia, a osteotomia basilar. Todas
as
cirurgias iniciaram-se pela maxila, que, após mobilização, foi reposicionada com
auxílio do guia intermediário criado no planejamento virtual e fixada com materiais
de osteossíntese (placas e parafusos 1.5) na posição planejada virtualmente. Logo
em
seguida, foram realizadas as osteotomias da mandíbula, sendo reposicionada em
oclusão classe 1 e fixada com material de osteossíntese 2.0. A osteotomia basilar
foi realizada para reposicionamento do mento e fixada com placa de Paulus 2.0.
O tempo de seguimento foi de no mínimo 6 meses e o máximo, 14 meses. O grau de
satisfação do resultado estético-funcional com o uso do planejamento virtual foi
avaliado através de uma escala numérica 1-5 (1-totalmente insatisfeito,
2-insatisfeito, 3-nem satisfeito nem insatisfeito, 4-satisfeito, 5-totalmente
satisfeito). A telerradiografia de perfil foi realizada no pós-operatório com
7 dias
para avaliação da posição maxilomandibular.
RESULTADOS
A anomalia dentofacial mais encontrada foi a Classe 2 (10 pacientes), seguida da
Classe 3 (8 pacientes), com 3 pacientes do total apresentando assimetria facial
associada. O sexo feminino foi o prevalente (10 casos). A idade variou de 16 até
55
anos. O tempo gasto durante o planejamento virtual foi de 4 horas. Seis pacientes
foram submetidos a cirurgias bimaxilares (maxila e mandíbula), 11 pacientes a
cirurgias trimaxilares (maxila, mandíbula e mento) e 1 paciente a cirurgia
monomaxilar (mandíbula/mento) associada a artroplastia de articulação
temporomandibular esquerda com prótese customizada.
A média de internação foi de 1 dia. O tempo cirúrgico médio foi de 4 horas, sem
nenhuma intercorrência pós-operatória local grave como recidiva da má oclusão,
pseudoartrose ou infecção nos 18 casos operados. Um paciente do sexo masculino
evoluiu com rabdomiólise sem repercussão renal, sem etiologia diagnosticada. O
guia
cirúrgico intermediário apresentou adaptação perfeita nas faces oclusais promovendo
grande estabilidade para o reposicionamento e fixação da maxila na oclusão
intermediária.
Os 18 pacientes operados responderam como “totalmente satisfeitos” em relação ao
resultado estético-funcional nessa série estudada. Foi encontrada uma semelhança
muito grande da posição do esqueleto maxilofacial no planejamento virtual
pré-operatório e o obtido no pós-operatório, através da avaliação das
telerradiografias.
DISCUSSÃO
O desenvolvimento histórico da cirurgia ortognática remonta a 1906, quando a primeira
cirurgia para correção de prognatismo mandibular foi realizada em um estudante
de
medicina da Universidade de Washington pelo pioneiro da cirurgia plástica Vilray
Blair. O pai da cirurgia ortognática, Hugo Obwegeser, cirurgião europeu com formação
médica e odontológica, introduziu em 1950 a técnica de osteotomia sagital dos
ramos
mandibulares, sendo também o pioneiro na realização da cirurgia bimaxilar no mesmo
tempo cirúrgico. Bell, em 1975, em seu trabalho sobre a vascularização da maxila,
garantiu a segurança na mobilização completa das osteotomias Le Fort I4.
Em geral, um plano pré-operatório é a etapa mais importante do fluxo de trabalho dos
procedimentos ortognáticos3. A
cirurgia ortognática requer avaliação precisa de deformidades dentofaciais complexas
do esqueleto craniofacial e é indicada para correção das desproporções
maxilomandibulares com repercussão estética e/ou funcional (má oclusão, dificuldades
mastigatórias, fonatórias ou respiratórias) em que o tratamento ortodôntico isolado
não é suficiente.
O sucesso do plano cirúrgico não depende apenas da precisão do diagnóstico
esquelético e dentário da deformidade, mas também da predição pré-cirúrgica dos
movimentos propostos. É tarefa do cirurgião definir primeiro a posição original
do
esqueleto dentofacial e então estimar a posição final desejada e, finalmente,
desenvolver uma representação tridimensional dos movimentos necessários para atingir
o objetivo pretendido1.
Anteriormente, o planejamento cirúrgico convencional utilizava a análise
cefalométrica manual da telerradiografia de perfil, análise facial e cortes dos
modelos de gesso das arcadas dentárias do paciente. Realizava-se, então, o
reposicionamento dos modelos de gesso na posição determinada pelo cirurgião e
a
confecção manual dos guias cirúrgicos com resina acrílica na nova posição dos
maxilares.
No entanto, a abordagem tradicional tem suas limitações, especialmente no caso de
pacientes com grande deformidade facial ou assimetria, pois as imagens
cefalométricas 2D não podem fornecer informações completas sobre as estruturas
3D.
Quando planos cirúrgicos 2D convencionais são executados, podem ocorrer problemas
inesperados, como colisão óssea na área do ramo, discrepância no
pitch, rotação de giro plano, diferença na linha média e
inadequação do queixo5.
Avanços nos métodos de propedêutica por imagem como a tomografia cone
beam, tomografia multislice com reprodução fidedigna
da anatomia craniofacial e os scanners manuais com registro da
oclusão dentária em alta definição possibilitaram a execução virtual do planejamento
em cirurgia ortognática, trazendo uma mudança no paradigma de tratamento das
deformidades dentoesqueléticas. O planejamento virtual em cirurgia ortognática
é um
processo que integra o planejamento e a intervenção cirúrgica, através do uso
de
softwares que realizam a análise cefalométrica em três
dimensões (3D) da anatomia do tecido ósseo, oclusão e do tecido mole (Figura 1).
Figura 1 - Avaliação 3D do esqueleto craniofacial, tecido mole e
oclusão.
Figura 1 - Avaliação 3D do esqueleto craniofacial, tecido mole e
oclusão.
O cirurgião realiza o reposicionamento virtual dos maxilares (Figura 2) e a confecção de guias cirúrgicos que posteriormente
serão impressos em impressora 3D e utilizados durante o procedimento1,2,6 (Figuras 3 e 4).
Figura 2 - Simulação dos movimentos de maxila, mandíbula e mento durante
planejamento virtual.
Figura 2 - Simulação dos movimentos de maxila, mandíbula e mento durante
planejamento virtual.
Figura 3 - Utilização do guia intermediário criado durante o planejamento
virtual na posição definida pelo cirurgião com maxila fixada na nova
posição. Osteotomia Lefort I para avanço de maxila.
Figura 3 - Utilização do guia intermediário criado durante o planejamento
virtual na posição definida pelo cirurgião com maxila fixada na nova
posição. Osteotomia Lefort I para avanço de maxila.
Figura 4 - Planejamento do guia intermediário com software de planejamento
virtual. Fonte: Acervo pessoal.
Figura 4 - Planejamento do guia intermediário com software de planejamento
virtual. Fonte: Acervo pessoal.
Atualmente, o avanço tecnológico da tecnologia de impressão 3D e a melhoria do módulo
de elasticidade das matrizes cirúrgicas impressas em 3D têm permitido resultados
cada vez mais precisos5.
As aplicações do planejamento virtual na cirurgia craniomaxilofacial incluem cirurgia
ortognática, reconstrução protética da ATM, trauma e reconstrução oncológica,
para
citar alguns.
Em cirurgia ortognática, especificamente, as vantagens estão no aumento da acurácia
na relação oclusal, redução do tempo de cirurgia, aumento da satisfação do paciente,
diminuição do custo7,8 e diminuição do tempo de
planejamento em até 30%9. Além
disso, o planejamento virtual possibilita maior precisão na previsão do
posicionamento de tecidos moles no plano sagital, e pacientes tratados com ela
apresentam maior simetria na visão frontal3. A simulação da cirurgia no
pré-operatório permite medições de até um centésimo de milímetro, e quando
combinados com os guias impressos 3D, o resultado funcional e estético é superior
ao
tradicional bidimensional (2D). Este tempo cirúrgico reduzido também se traduz
diretamente em tempo sob anestesia e diminuição do custo total6.
Em 2012, pesquisas usando a satisfação do paciente, através de uma avaliação
subjetiva dos resultados funcionais e estéticos, mostraram que os pacientes que
foram submetidos ao planejamento virtual relataram escores mais favoráveis do
que
aqueles submetidos à cirurgia tradicional7.
O planejamento virtual desafiou o estado atual da preparação e dos procedimentos
pré-operatórios em cirurgia ortognática. Associado à prototipagem médica de
impressões 3D, tornou-se uma ferramenta significativa, demonstrando ser altamente
precisa em termos de imagem, análise quantitativa e previsibilidade dos movimentos
cirúrgicos planejados. Os guias cirúrgicos criados virtualmente são confiáveis
em
sua construção e precisão. Os cirurgiões estão relatando resultados da cirurgia
virtual com margens de erro dentro de 2mm das posições maxilar e mandibular
previstas ao comparar os desfechos pós-operatórios2,5 (Figura 5).
Figura 5 - Resultado pós-operatório da paciente. Realizado encurtamento vertical
de maxila com giro anti-horário de plano e avanço de mandíbula e
mento.
Figura 5 - Resultado pós-operatório da paciente. Realizado encurtamento vertical
de maxila com giro anti-horário de plano e avanço de mandíbula e
mento.
Todos esses benefícios podem fazer com que o tempo e as intercorrências do
planejamento e o tempo cirúrgico diminuam em relação ao planejamento
convencional1,2,4,8,10. A próxima geração de planejamento virtual irá
realizar guias de corte para osteotomias e placas de osteossíntese impressas
tridimensionalmente, correspondendo quase identicamente ao nível ósseo em todos
os
planos do espaço8.
O futuro planejamento cirúrgico ortognático será indiscutivelmente realizado pelo
planejamento virtual tridimensional. As despesas financeiras, o tempo de
planejamento do tratamento e o tempo intraoperatório provavelmente diminuirão
devido
ao maior desenvolvimento de técnicas de planejamento virtual
tridimensional11.
CONCLUSÃO
O planejamento virtual em cirurgia craniomaxilofacial, em especial em cirurgia
ortognática, é uma ferramenta que apresenta inúmeras vantagens, como diminuição
do
tempo da fase laboratorial pré-operatória, maior precisão na confecção dos guias
cirúrgicos e melhor reprodutibilidade dos resultados simulados.
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2023;14(1):e1.
1. Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, MG,
Brasil
2. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil
Autor correspondente: Klaus Rodrigues Oliveira Rua
Fernandes Tourinho, 840, Savassi, Belo Horizonte, MG, Brasil, CEP: 30112-006,
E-mail: contato@klausrodrigues.com.br
Artigo submetido: 12/07/2023.
Artigo aceito: 20/08/2023.
Conflitos de interesse: não há.