INTRODUÇÃO
Os procedimentos microcirúrgicos são caracterizados pela aplicação de um conjunto
de
técnicas e manobras operatórias em estruturas anatômicas milimétricas, realizadas
com o auxílio de lentes ópticas de magnificação
1
. Seus princípios podem ser aplicados em diversas especialidades médicas, como
nas áreas de cirurgia plástica reconstrutiva, oncológica, urologia, cabeça e pescoço
e transplantes
2
. Cirurgiões gerais também podem aplicar seus princípios em anastomoses
biliodigestivas, ou do ducto biliar, ou para reconstruções vasculares não complicadas
3
. Trata-se de uma técnica complexa, que demanda grande habilidade manual e
treinamento cirúrgico contínuo antes da aplicação em humanos
2
.
Na literatura existem diversos modelos descritos de treinamento envolvendo diferentes
materiais, tanto de origem animal quanto não animal. Cada modelo apresenta
particularidades, vantagens e desvantagens. No treinamento das técnicas básicas
iniciais, na maioria das descrições utilizam-se os modelos não animais, a exemplo
do látex
4 , 5
. No aprimoramento das habilidades cirúrgicas microscópicas, os modelos
animais são preferidos, como os camundongos, suínos, aves e cães, conforme a
disponibilidade de cada instituição
6 - 9
.
As práticas em materiais sintéticos que mimetizam o tecido orgânico para o
desenvolvimento de aptidões básicas, seguida da utilização de modelos com tecidos
de
origem animal, racionalizam o uso animal e reduzem custos nas fases iniciais do
aprendizado
10
. Os modelos experimentais desenvolvidos para o treinamento básico em
microssuturas devem possibilitar o ensino de cirurgia experimental com segurança,
permitir o manuseio do instrumental para microcirurgia e do microscópio cirúrgico
4
.
Em muitos países, não há centros de treinamentos ou instalações que dispõem de
recursos técnicos adequados para o aprendizado nessa área. Nesse contexto, o maior
obstáculo para se atingir o treinamento adequado se torna o investimento necessário.
Dessa forma, o desenvolvimento de modelos experimentais alternativos para a prática
das técnicas microcirúrgicas é fundamental. Com a diversidade de modelos, cada
centro pode escolher ou adaptar aquele que melhor se enquadre a sua rotina e as
suas
possibilidades em relação aos custos
11
.
OBJETIVO
O objetivo deste trabalho consiste em propor um modelo de treinamento de suturas
microcirúrgicas baseado na utilização de segmentos remanescentes, descartados,
de “
patch ” de pericárdio bovino, material utilizado em reparos
vasculares em humanos.
MÉTODO
Este trabalho foi submetido e analisado pela Comissão de Ética em Uso Animal do Setor
de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Paraná (CEUA-SCA-UFPR) e julgado
dispensado de aprovação, devido à comprovação da procedência do material biológico
comercializado, manipulado por indústria biomédica, certificada pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
A confecção do modelo de treinamento de suturas microcirúrgicas à base de um
fragmento de “ patch ” de pericárdio bovino ( Figura 1 ) emprega microscópio cirúrgico, “
microclamp ”, tesouras, pinças retas e curvas, porta-agulha
microcirúrgico, além de fios e materiais de síntese. O material utilizado neste
modelo são as sobras da placa de pericárdio bovino aberto, porém não completamente
utilizado, na realização de reparos de vasos em cirurgias vasculares em humanos,
o
qual seria descartado.
Figura 1 -
A: Placa de "patch" de pericárdio bovino.
B: Espessura do " patch " de
pericárdio bovino (0,5mm) e suas camadas.
Figura 1 -
A: Placa de "patch" de pericárdio bovino.
B: Espessura do " patch " de
pericárdio bovino (0,5mm) e suas camadas.
O procedimento inicia-se recortando um pequeno segmento do pericárdio bovino de 60mm
x 6,8mm, fixando-se uma de suas bordas ao campo cirúrgico através de “
clamp ” e posicionando-se o conjunto sob as lentes do
microscópio cirúrgico. Realiza-se uma incisão no meio da placa, dividindo-a em
dois
segmentos idênticos ( Figura 2 ).
Confeccionam-se, então, dois tubos, em cada uma das extremidade, com o auxílio
de
pontos simples separados, com Prolene® 8-0, aplicados de forma a unir as
bordas superior e inferior de cada segmento.
Figura 2 - Fragmento de pericárdio bovino de 30mm x 6,8mm cada um, após dividido
ao meio, formando duas placas independentes, fixadas ao campo cirúrgico
por “ clamp ” microcirúrgico.
Figura 2 - Fragmento de pericárdio bovino de 30mm x 6,8mm cada um, após dividido
ao meio, formando duas placas independentes, fixadas ao campo cirúrgico
por “ clamp ” microcirúrgico.
Ao final desta etapa, obtêm-se duas extremidades circulares livres, que mimetizam
as
extremidades seccionadas de um vaso de 2,0mm de diâmetro ( Figura 3 ). As bordas externas de ambos os segmentos dessa
secção foram preparadas à maneira que estruturas vasculares são preparadas para
microssutura, retirando-se o excesso de camada adventícia para prevenir a entrada
do
tecido excedente no futuro lúmen vascular durante o treinamento da confecção da
anastomose ( Figura 4 ).
Figura 3 -
A: Margens superiores de cada fragmento suturados às
margens inferiores, formando dois tubos de 2,0mm de diâmetro,
mimetizando cotos vasculares terminais, para confecção de anastomose
término-terminal. B: A mesma estrutura em vista posterior,
fixada ao campo cirúrgico com “ clamps ”.
Figura 3 -
A: Margens superiores de cada fragmento suturados às
margens inferiores, formando dois tubos de 2,0mm de diâmetro,
mimetizando cotos vasculares terminais, para confecção de anastomose
término-terminal. B: A mesma estrutura em vista posterior,
fixada ao campo cirúrgico com “ clamps ”.
Figura 4 - Excesso da camada adventícia sendo retirado, para evitar a entrada
acidental do tecido redundante no lúmen do modelo vascular durante a
anastomose término-terminal.
Figura 4 - Excesso da camada adventícia sendo retirado, para evitar a entrada
acidental do tecido redundante no lúmen do modelo vascular durante a
anastomose término-terminal.
A esta altura, o modelo encontra-se pronto para a confecção de uma anastomose
microvascular término-terminal das duas extremidades que mimetizam a luz de um
pequeno vaso. A anastomose vascular pode ser confeccionada com o auxílio de um
fio
de Prolene® 8-0, realizando-se dois pontos de ancoragem opostos em 180° e
seguidos de pontos simples separados entre os dois pontos de ancoragem iniciais
(
Figura 5 ).
Figura 5 -
A: Dois pontos iniciais de ancoragem da anastomose
término-terminal, opostos em 180º. B: Anastomose
término-terminal microcirúrgica concluída.
Figura 5 -
A: Dois pontos iniciais de ancoragem da anastomose
término-terminal, opostos em 180º. B: Anastomose
término-terminal microcirúrgica concluída.
Após a sutura da anastomose, é possível testar a patência do vaso com a introdução
de
um cateter vascular número 20F em seu interior. A transposição sem resistências
demonstra a inexistência de sutura acidental da parede posterior ( Figura 6 ).
Figura 6 - Passagem de um cateter, número 20F, pelo interior do modelo de vaso
com anastomose término-terminal, demonstrando perviedade do
mesmo.
Figura 6 - Passagem de um cateter, número 20F, pelo interior do modelo de vaso
com anastomose término-terminal, demonstrando perviedade do
mesmo.
RESULTADOS
Com o modelo experimental alternativo descrito, foi possível o treinamento de
técnicas de microssuturas e microanastomoses a partir do uso de placas de “
patch ” de pericárdio bovino. O modelo é reprodutível em
laboratório experimental que disponha de aparatos e instrumental para microcirurgia.
Trata-se de um modelo economicamente viável, uma vez que utilizou sobras de um
material biológico amplamente aplicado em cirurgias e reparos vasculares, que
seriam
descartadas após o procedimento cirúrgico original. Além da vantagem econômica,
pelo
aproveitamento de fragmentos de material biológico, o modelo não envolveu o uso
de
animal de experimentação.
Observou-se que o tecido de pericárdio bovino apresenta os mesmos inconvenientes
presentes nas suturas vasculares em humanos, como o risco de delaminação de camadas,
excesso de camada adventícia e o risco de sutura da parede posterior. Com a
visualização direta de todas as camadas do tecido suturado, dissecção da camada
adventícia excedente e passagem de cateter para prova de sua patência, foi possível
superar esses inconvenientes.
DISCUSSÃO
Devido à grande complexidade, o treinamento inicial em procedimentos microcirúrgicos
deve ser realizado primeiramente em um ambiente que não envolva pacientes. A rotina
de treinamento de habilidades microcirúrgicas deve ser definida no sentido de
familiarizar-se primeiramente com os instrumentais, manejar adequadamente os fios
cirúrgicos e dominar técnicas de dissecção, sutura e anastomose tecidual. A prática
destas habilidades mediante supervisão adequada, com rotina bem estabelecida e
com o
aproveitamento de materiais que seriam descartados, possibilita obter as bases
para
o treinamento inicial de acadêmicos, residentes e cirurgiões, uma vez que permite
a
aplicação imediata de conhecimentos teóricos em modelo experimental e racionaliza
o
uso animal, reduzindo custos
6 , 12
.
Diversos modelos experimentais para a prática de técnicas microcirúrgicas já foram
descritos em vários animais, tais como porcos, cães, galinhas e ratos
6 , 8 , 9
. Contudo, as rigorosas leis institucionais impostas pelas comissões de ética
em uso animal podem dificultar o amplo uso animal no processo de aprendizado.
Materiais artificiais como luvas ou tubos de silicone também são encontrados como
modelos alternativos na literatura
4 , 13 , 14
. No entanto, estes modelos podem apresentar a desvantagem de não mimetizarem
com perfeição o tecido vascular, reduzindo o nível de dificuldade no aprendizado
de
técnicas de microanastomoses
12
.
O treinamento dessas técnicas pode ser longo e desgastante. Dessa maneira, ao
escalonar a dificuldade técnica, iniciando-se com materiais sintéticos, evoluindo
para o modelo em “ patch ” pericárdico e, posteriormente modelos
animais, o treinamento pode se tornar estimulante, uma vez que se percebe a evolução
prática do treinamento em si
8
.
O modelo experimental aqui proposto possibilita a confecção de extremidades
anastomóticas mimetizando vasos de diferentes calibres, a depender do tamanho
de
placa que é cortada inicialmente. No procedimento descrito utilizou-se fio de
Prolene 8-0, para uma estrutura com diâmetro de 2,0mm, obtida a partir de uma
placa
recortada com extremidade livre de 6,8mm. Recomenda-se a utilização de fio 9-0
caso
o diâmetro das extremidades anastomóticas seja menor que 2mm.
Uma das vantagens da utilização do material excedente do “ patch ”
de pericárdio bovino é justamente a capacidade de o mesmo mimetizar as camadas
concêntricas do tecido vascular. Ao aplicar as microssuturas nesse material, existe
o risco de delaminação ou descolamento da camada íntima, quando a sutura transfixa
parcialmente a espessura da parede do material. Deve-se ter o cuidado de abranger
toda a espessura da parede do pericárdio bovino ao realizar a aplicação das suturas
durante o treino da anastomose término-terminal, devendo-se atentar também para
manter a parede posterior livre e não suturá-la junto com os pontos da linha de
anastomose anterior, para que se mantenha a anastomose pérvia ( Figura 6 ).
Antes de realizar uma anastomose microvascular, a adventícia e os tecidos
periadventiciais são rotineiramente removidos das pequenas artérias. Essa é uma
das
partes mais importantes das anastomoses vasculares, pois permite uma definição
clara
de onde o vaso termina e uma confecção mais precisa da sutura. Além disso, o tecido
excedente da camada adventícia, se próximo às extremidades cortadas do vaso, pode
ficar interposto na anastomose e, por ser um tecido altamente trombogênico, pode
levar à falha na anastomose. Modelos microcirúrgicos não animais dificilmente
são
capazes de mimetizar esta importante etapa
15
. Este também proporciona o treinamento da retirada da camada adventícia,
procedimento padrão realizado antes de uma anastomose microvascular ( Figura 3 ).
CONCLUSÃO
O uso de placas de pericárdio bovino como modelo de treinamento de suturas e
anastomoses término-terminais microcirúrgicas permite o desenvolvimento de
habilidades microcirúrgicas de forma realista, uma vez que a manipulação deste
material mimetiza as camadas de um vaso sanguíneo e apresenta as dificuldades
técnicas similares aos tecidos humanos.
O modelo proposto emprega um material de boa qualidade, que seria descartado, o que
torna o custo de realização baixo quando comparado a modelos que utilizam
simuladores ou animais. Ainda, evita os inconvenientes do uso animal, como
manutenção de biotérios de criação e armazenamento, custos com alimentação,
analgesia, descarte, entre outros. Portanto, o uso de excedentes de pericárdio
bovino que seria descartado é um modelo apropriado de treinamento microcirúrgico
em
fase inicial do aprendizado, uma vez que apresenta propriedades muito similares
aos
tecidos humanos e dispensa o uso animal.
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1. Universidade Federal de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil
2. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR,
Brasil
Autor correspondente: Caroline Cunico Rua Botucatu, 740, 2º andar,
Vila Clementino, São Paulo, SP, Brasil, CEP: 04023-062, E-mail:
cunico.caroline@gmail.com
Artigo submetido: 16/03/2023.
Artigo aceito: 13/06/2023.
Conflitos de interesse: não há.