INTRODUÇÃO
A reconstrução da região plantar ainda é um dos grandes desafios da cirurgia plástica
reconstrutiva1,2. Os tecidos dessa região apresentam
características únicas e que são essenciais para a manutenção da funcionalidade
do
membro. Como características locais, podemos citar: forte aderência entre a pele
e
estruturas profundas, proporcionando estabilidade na marcha; presença de um coxim
espesso, permitindo a absorção do impacto ao deambular.
De toda a região plantar, a região do calcanhar é a área de maior sustentação do peso
e submetida ao maior impacto. Para isso, ela é ricamente vascularizada e possui
septos fibrosos que conectam a derme ao periósteo do osso calcâneo, formando
compartimentos de gorduras3-7.
Devemos, portanto, procurar tecidos com características semelhantes para a
reconstrução de defeitos plantares em calcanhar8.
Existem diversos métodos de reconstrução da região plantar, que variam desde enxertia
de pele até retalhos microcirúrgicos, mas poucos atendem a todas essas
necessidades1,2,8-14.
O retalho fasciocutâneo plantar medial é uma excelente opção, pois representa tecido
semelhante e mantém a sensibilidade para a área receptora15,16.
Inicialmente descrito em 1981 por Harrison & Morgan9, o retalho plantar medial é baseado na artéria
plantar medial e mantém a sensibilidade local por ramos cutâneos do nervo plantar
medial17. Desde então,
existem diversos estudos descritos na literatura, mas poucos que avaliem o seu
uso
em pacientes oncológicos18,19.
OBJETIVO
Descrever uma série de 7 casos de reconstrução de defeitos no calcanhar após
ressecção de melanoma lentiginoso acral, realizada no Serviço de Cirurgia Plástica
do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, no período de julho de 2013 a
setembro de 2019.
MÉTODO
Foi realizado um estudo retrospectivo através da coleta de dados de prontuário de
pacientes que realizaram reconstruções da região do calcanhar com retalho plantar
medial, no período de julho de 2013 a setembro de 2019.
Os pacientes foram selecionados de acordo com o tipo de reconstrução empregado após
ressecção de melanoma lentiginoso acral pelo Grupo de Sarcoma e Melanoma no
Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. O critério de inclusão do estudo foi:
pacientes internados no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo para ressecção
de
melanoma lentiginoso acral da região de calcanhar, submetidos a reconstrução com
retalho plantar medial.
Dos 7 pacientes, 3 (42,8%) eram do sexo feminino e 4 (57,1%) do sexo masculino (Tabela 1). Seis pacientes (85,7%) tinham alguma
comorbidade associada, sendo que tabagismo e hipertensão arterial sistêmica foram
as
comorbidades mais prevalentes. A média de idade dos pacientes foi de 57,3 anos,
com
variação de 45 a 73 anos.
Tabela 1 - Características dos pacientes, tipo de reconstrução realizada e
complicações relacionadas aos procedimentos.
|
Idade |
Sexo |
Tipo histológico
|
Comorbidades |
Reconstrução local adicional
|
Área doadora |
Complicações do
retalho
|
Complicações da área doadora
|
1 |
58 |
M |
Melanoma acral
|
Tabagismo,
HAS
|
Não |
Enxertia de
pele
|
Necrose |
Não |
2 |
53 |
M |
Melanoma acral
|
Tabagismo, HAS, DM
|
Não |
Enxertia de pele parcial
|
Necrose |
Não |
3 |
64 |
M |
Melanoma acral
|
Tabagismo,
HAS, etilismo, DRC
|
Não |
Enxertia de
pele parcial
|
Não |
Não |
4 |
73 |
M |
Melanoma acral
|
Tabagismo, HAS, IAM prévio
|
Não |
Enxertia de pele parcial
|
Não |
Não |
5 |
51 |
F |
Melanoma acral
|
Tabagismo,
artrite reumatoide
|
Enxertia de
pele total
|
Enxertia de
pele parcial
|
Não |
Perda do
enxerto
|
6 |
45 |
F |
Melanoma acral
|
|
Não |
Enxertia de pele parcial
|
Não |
Não |
7 |
57 |
F |
Melanoma acral
|
HAS |
Não |
Enxertia de
pele parcial
|
Necrose |
Não |
Tabela 1 - Características dos pacientes, tipo de reconstrução realizada e
complicações relacionadas aos procedimentos.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do
HCFMUSP (Número CAAE: 56849422.0.0000.0068).
Técnica cirúrgica
A artéria tibial posterior é identificada através da palpação posterior ao
maléolo medial e é realizada uma demarcação em linha quebrada logo acima dessa
região.
A ilha de pele é demarcada conforme o tamanho do defeito na região do calcanhar e
pode se estender por toda a área fora de apoio plantar.
A incisão se inicia pela demarcação posterior ao maléolo medial e identifica-se a
artéria tibial posterior. A incisão da borda medial do retalho é realizada e
disseca-se a artéria até sua bifurcação. O ramo medial é identificado entre os
músculos abdutor do hálux e flexor curto dos dedos. O retalho é então elevado
com a inclusão da fáscia plantar e do ramo lateral do nervo plantar medial,
poupando a inervação medial do hálux.
Conforme a dissecção progride, realiza-se a incisão das bordas lateral, distal e
proximal. O retalho é transposto para o defeito no calcanhar e a área doadora
é
reconstruída com enxerto de pele parcial da coxa ipsilateral (Figuras 1 e 2).
Figura 1 - A: Intraoperatório, após ressecção da lesão com
margens. B: Pós-operatório imediato de reconstrução com
retalho plantar medial pediculado em calcanhar e enxertia de pele
parcial em área doadora do retalho.
Figura 1 - A: Intraoperatório, após ressecção da lesão com
margens. B: Pós-operatório imediato de reconstrução com
retalho plantar medial pediculado em calcanhar e enxertia de pele
parcial em área doadora do retalho.
Figura 2 - Resultado pós-operatório, com resultado funcional e estético
adequados.
Figura 2 - Resultado pós-operatório, com resultado funcional e estético
adequados.
RESULTADOS
Um paciente necessitou de reconstrução adicional com enxertia de pele local; nos
demais, o retalho plantar medial foi suficiente para as coberturas cutâneas das
áreas ressecadas. Em todos os casos foi realizada a enxertia de pele parcial na
área
doadora do retalho.
A linfadenectomia foi realizada em 3 pacientes (42,8%), sendo 2 (28,6%) da região
inguinal esquerda e 1 (14,3%) da região inguinal esquerda associada à região
ilíaco-obturatória esquerda. Dentre os 7 pacientes, 2 apresentavam doença
metastática (28,6%).
Complicações cirúrgicas foram observadas em 3 pacientes, sendo que todos eles tinham
idade acima de 50 anos e/ou alguma comorbidade associada. A taxa de sobrevivência
do
retalho foi de 57%. Em relação às complicações, ocorreram 3 necroses totais de
retalho (42,9%) e 1 perda total de enxerto na área doadora (14,3%). Dos 3 pacientes
com necrose do retalho, 2 deles necessitaram de posterior reconstrução local com
retalho fasciocutâneo microcirúrgico anterolateral da coxa e 1 deles com retalho
microcirúrgico fasciocutâneo lateral do braço.
Um dos pacientes com necrose total do retalho plantar medial realizou ressecção de
melanoma lentiginoso acral em membro inferior esquerdo, com reconstrução imediata
com retalho plantar medial. Apresentou boa evolução durante a internação e recebeu
alta hospitalar no 7° dia de pós-operatório. Retornou em consulta ambulatorial
no
11° dia de pós-operatório, apresentando retalho com sinais de sofrimento em bordas.
Optou-se por tratamento expectante da complicação e o retalho apresentou necrose
total no 26° dia de pósoperatório. Realizado desbridamento e reconstrução com
retalho microcirúrgico anterolateral da coxa. Atualmente, o paciente apresenta
bom
aspecto do retalho e boa funcionalidade do membro inferior esquerdo.
DISCUSSÃO
A reconstrução de partes moles do calcanhar ainda representa um desafio para os
cirurgiões plásticos, devido à escassez de tecidos locais e à complexidade dessa
reconstrução para a preservação da funcionalidade.
Durante o planejamento cirúrgico, é importante avaliar se a lesão plantar se encontra
em área de apoio, pois enxertos nesta região podem evoluir com complicações como
ulceração, retração cicatricial, dor, deformidades ósseas e impossibilidade de
deambulação.
Descrito inicialmente em 1981, o retalho plantar medial representa até hoje uma das
melhores opções para a reconstrução da região do calcanhar, principalmente em
sua
face plantar9. Dentre suas
vantagens, destacam-se: tecido local semelhante e inervação preservada.
O tecido local é formado por coxim espesso de pele sem folículos pilosos, o que
possibilita uma cobertura adequada para a área de pressão e de suporte para o
peso
do paciente, além de ser esteticamente mais favorável. A inervação através do
ramo
cutâneo do nervo plantar medial permite ao paciente manter sensibilidade tátil
suficiente para a adequada deambulação e proteção do membro.
Como desvantagem do retalho plantar medial, podemos citar a morbidade da área
doadora, localizada na região do cavo plantar, que constitui uma área de não apoio
e
onde se faz necessária a enxertia de pele parcial. Apesar da secção da artéria
plantar medial, o pé mantém sua adequada vascularização pelo arco plantar profundo,
sendo formado pelas artérias plantar lateral e dorsal do pé.
O retalho plantar medial tem como limitações: tamanho e profundidade da área a ser
reconstruída, limitando-se a defeitos de menor extensão. Ressecções maiores
preferencialmente devem ser reconstruídas com retalhos microcirúrgicos
fasciocutâneos ou musculocutâneos e, alternativamente, podem ser reconstruídas
com o
retalho sural reverso.
Apesar do retalho plantar medial ser descrito na literatura com baixas taxas de
complicações, a maioria dos trabalhos publicados descrevem o retalho plantar medial
em pacientes vítimas de traumas ou úlceras de pressão, com menor idade
média4,8,11,16,17,20,21. O foco deste trabalho foi em pacientes
oncológicos, os quais normalmente possuem múltiplas comorbidades, idade avançada
e,
por conseguinte, ateromatose, viés de seleção que poderia explicar a maior taxa
de
complicações encontradas neste estudo. Outrossim, o estudo foi realizado em um
hospital-escola, no qual os procedimentos cirúrgicos foram realizados por diferentes
cirurgiões e que ainda estão em curva de aprendizado.
CONCLUSÃO
O retalho plantar medial é versátil e de anatomia vascular bem conhecida. Hoje se
apresenta como uma ótima alternativa para a realização de reconstruções oncológicas
de defeitos na região plantar do pé. Contudo, devese ponderar a escolha do paciente
ideal e lembrar que a dissecção do seu pedículo vascular não é de fácil
execução.
REFERÊNCIAS
1. Shanahan RE, Gingrass RP. Medial Plantar Sensory Flap for Coverage
of Heel Defects. Plast Reconstr Surg. 1979;64(3):295-8. DOI:
10.1097/00006534-197909000-00001
2. Reiffel RS, McCarthy JG. Coverage of Heel and Sole Defects. Plast
Reconstr Surg. 1980;66(2):250-60. DOI:
10.1097/00006534-198008000-00014
3. Cichowitz A, Pan WR, Ashton M. The heel: anatomy, blood supply, and
the pathophysiology of pressure ulcers. Ann Plast Surg. 2009;62(4):423-9. DOI:
10.1097/sap.0b013e3181851b55
4. Liette MD, Ellabban MA, Rodriguez P, Bibbo C, Masadeh S. Medial
Plantar Artery Flap for Wound Coverage of the Weight-Bearing Surface of the
Heel. Clin Podiatr Med Surg. 2020;37(4):751-64.
DOI:10.1016/j.cpm.2020.06.002
5. Wan DC, Gabbay J, Levi B, Boyd JB, Granzow JW. Quality of
innervation in sensate medial plantar flaps for heel reconstruction. Plast
Reconstr Surg. 2011;127(2):723-30.
6. Jahss MH, Michelson JD, Desai P, Kaye R, Kummer F, Buschman W, et
al. Investigations into the fat pads of the sole of the foot: anatomy and
histology. Foot Ankle. 1992;13(5):233-42. DOI:
10.1177/107110079201300502
7. Jørgensen U, Bojsen-Møller F. Shock absorbency of factors in the
shoe/heel interaction--with special focus on role of the heel pad. Foot Ankle.
1989;9(6):294-9. DOI: 10.1177/107110078900900607
8. Mourougayan V. Medial plantar artery (instep flap) flap. Ann Plast
Surg. 2006;56(2):160-3. DOI: 10.1097/01.sap.0000190830.71132.b8
9. Harrison DH, Morgan BD. The instep island flap to resurface plantar
defects. Br J Plast Surg. 1981;34(3):315-8.
10. Hartrampf CR Jr, Scheflan M, Bostwick J 3rd. The flexor digitorum
brevis muscle island pedicle flap: a new dimension in heel reconstruction. Plast
Reconstr Surg. 1980;66(2):264-70. DOI:
10.1097/00006534-198008000-00016
11. Baker GL, Newton ED, Franklin JD. Fasciocutaneous island flap based
on the medial plantar artery: clinical applications for leg, ankle, and
forefoot. Plast Reconstr Surg. 1990;85(1):47-58. DOI:
10.1097/00006534-199001000-00009
12. Colen LB, Buncke HJ. Neurovascular island flaps from the plantar
vessels and nerves for foot reconstruction. Ann Plast Surg. 1984;12(4):327-32.
DOI: 10.1097/00000637-198404000-00004
13. Colen LB, Replogle SL, Mathes SJ. The V-Y plantar flap for
reconstruction of the forefoot. Plast Reconstr Surg. 1988;81(2):220-8. DOI:
10.1097/00006534-198802000-00014
14. Morrison WA, Crabb DM, O’Brien BM, Jenkins A. The instep of the foot
as a fasciocutaneous island and as a free flap for heel defects. Plast Reconstr
Surg. 1983;72(1):56-63. DOI: 10.1097/00006534-198307000-00013
15. El-Shazly M, Yassin O, Kamal A, Makboul M, Gherardini G. Soft tissue
defects of the heel: a surgical reconstruction algorithm based on a
retrospective cohort study. J Foot Ankle Surg. 2008;47(2):145-52. DOI:
10.1053/j.jfas.2007.12.010
16. Macedo JLS, Rosa SC, Rezende Filho Neto AV, Silva AA, Amorim ACS.
Reconstrução de lesões de partes moles de pé com o uso de retalho plantar
medial. Rev Bras Ortop (Sao Paulo). 2017;52(6):699-704. DOI:
10.1016/j.rbo.2016.10.009
17. Opoku-Agyeman JL, Allen A, Humenansky K. The Use of Local Medial
Plantar Artery Flap for Heel Reconstruction: A Systematic Review. Cureus.
2020;12(8):e9880. DOI: 10.7759/cureus.9880
18. Woo SJ, Kang J, Hu JL, Kwon ST, Chang H, Kim BJ. Medial Plantar
Fasciocutaneous Flap Reconstruction for Load-Bearing Foot Defects in Patients
With Acral Melanoma. Ann Plast Surg. 2022;88(6):658-64.
19. Wang M, Xu Y, Wang J, Cui L, Wang J, Hu XB, et al. Surgical
Management of Plantar Melanoma: A Retrospective Study in One Center. J Foot
Ankle Surg. 2018;57(4):689-93. DOI: 10.1053/j.jfas.2017.12.004
20. Schwarz RJ, Negrini JF. Medial plantar artery island flap for heel
reconstruction. Ann Plast Surg. 2006;57(6):658-61. DOI:
10.1097/01.sap.0000235426.53175.e3
21. Khan FH, Beg MSA, Obaid-Ur-Rahman. Medial Plantar Artery Perforator
Flap: Experience with Soft-tissue Coverage of Heel. Plast Reconstr Surg Glob
Open. 2018;6(12):e1991. DOI: 10.1097/GOX.0000000000001991
1. Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil
2. Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina,
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Autor correspondente: Giulia Godoy Takahashi Rua
Arruda Alvim, 423, apto 51, Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil, CEP: 05410-020,
E-mail: giu.godoy@gmail.com
Artigo submetido: 24/05/2022.
Artigo aceito: 13/06/2023.
Conflitos de interesse: não há.