INTRODUÇÃO
A hidradenite supurativa (HS) é uma doença folicular cutânea crônica, inflamatória,
recorrente e debilitante que geralmente se apresenta após a puberdade com lesões
dolorosas profundas e inflamadas nas áreas do corpo com glândulas apócrinas, mais
comumente axilar, inguinal e região anogenital, podendo levar a consequências
físicas e emocionais sérias.
A prevalência de HS é desconhecida, mas as estimativas variam de 0,00033% a 4,10%.
Ocorre com mais frequência em adultos jovens e é duas vezes mais comum em mulheres
em comparação aos homens1,2. A área perineal é a segunda mais
comumente afetada, sendo tratada com excisões amplas, precisando de reconstruções
desafiadoras. A ressecção cirúrgica dos tecidos afetados oferece maior expectativa
de tratamento definitivo da HS, e por essa razão ter uma opção de retalho para
reconstruir defeitos perineais amplos após ressecções de HS é importante2.
Já foram divulgadas algumas técnicas para reconstrução de defeitos de região perineal
e glútea no tratamento de HS como fechamento primário, enxertos ou retalhos
perfurantes da artéria glútea superior e inferior, porém não estão amplamente
estudadas em defeitos extensos que comprometam o períneo anterior e
posterior2,3.
O retalho fasciocutâneo medial da coxa V-Y é um retalho baseado em artérias
perfurantes da artéria femoral, é tecnicamente reprodutível, fornece volume
suficiente com boa cobertura de pele e tecido celular subcutâneo para defeitos
extensos do períneo no tratamento de HS.
OBJETIVO
Apresentar um relato de caso que mostra o uso do retalho fasciocutâneo medial da coxa
em avanço V-Y bilateral como uma opção de reconstrução de áreas extensas da região
perineal no tratamento de hidradenite supurativa.
Paciente do sexo feminino, 43 anos, encaminhada ao serviço de cirurgia plástica após
diagnóstico de hidradenite supurativa no períneo anterior e posterior, sem
tratamento prévio (Figura 1). Foi planejada
ressecção do tecido afetado e reconstrução com retalho fasciocutâneo medial da
coxa
V-Y bilateral em dois tempos cirúrgicos.
Figura 1 - Lesão por hidradenite supurativa da região perineal total
bilateral.
Figura 1 - Lesão por hidradenite supurativa da região perineal total
bilateral.
Com a paciente em posição de litotomia, sob anestesia geral, foram ressecadas lesões
da região perineal e grandes lábios bilaterais, com margem de 1,5cm lateralmente
e
medialmente, até o plano subcutâneo, com ressecção de toda a lesão (Figura 2), coleta de amostras para estudo
anatomopatológico, culturas com uso de terapia por pressão negativa a 125mmHg
contínuo. Laudo anatomopatológico concluiu diagnóstico de hidradenite supurativa
bilateral e os resultados das culturas indicaram infecção por Staphylococcus
aureus multissensível e Corynebacterium striatum,
sendo indicada antibioticoterapia.
Figura 2 - Aspecto do defeito perineal após 3 dias de terapia por pressão
negativa.
Figura 2 - Aspecto do defeito perineal após 3 dias de terapia por pressão
negativa.
Após 48 horas, foi realizada a reconstrução do defeito com retalhos de 25x30cm na
coxa direita e 25x22cm na coxa esquerda, baseados em artérias perfurantes da artéria
femoral. A dissecção foi realizada no plano fasciocutâneo até o plano fascial
com
descolamento do terço proximal e distal do retalho e avanço em V-Y, com pontos
de
fixação e colocação de drenos portovac com exteriorização distal e fechamento
por
planos (Figura 3).
Figura 3 - Reconstrução perineal concluída com retalho fasciocutâneo medial da
coxa em avanço V-Y bilateral.
Figura 3 - Reconstrução perineal concluída com retalho fasciocutâneo medial da
coxa em avanço V-Y bilateral.
O procedimento realizou-se sem intercorrências, os retalhos apresentaram boa
cobertura de pele e tecido celular subcutâneo, não foram prescritos medicamentos
para diminuir o número das evacuações nem ostomia. 24 horas após a cirurgia foi
prescrita profilaxia antitrombótica, mantida por 7 dias. No segundo dia
pós-operatório foi autorizada a sentar e deambular com passos curtos e teve alta
no
sexto dia. Os drenos foram retirados no oitavo dia. Dois meses após a cirurgia,
foram observadas três áreas de deiscência tratadas de forma conservadora. Um ano
e
meio após a cirurgia o retalho se mantém em bom estado, sem evidência de recidiva
da
doença ou irritação vulvar, com resultado estético aceitável (Figuras 4 a 6).
Figura 4 - Retalho fasciocutâneo medial da coxa em V-Y bilateral um 1 ano 6
meses de pós-operatório.
Figura 4 - Retalho fasciocutâneo medial da coxa em V-Y bilateral um 1 ano 6
meses de pós-operatório.
Figura 5 - Retalho fasciocutâneo medial da coxa em V-Y bilateral um 1 ano 6
meses de pós-operatório. Visão anterior.
Figura 5 - Retalho fasciocutâneo medial da coxa em V-Y bilateral um 1 ano 6
meses de pós-operatório. Visão anterior.
Figura 6 - Retalho fasciocutâneo medial da coxa em V-Y bilateral um 1 ano 6
meses de pós-operatório. Visão posterior.
Figura 6 - Retalho fasciocutâneo medial da coxa em V-Y bilateral um 1 ano 6
meses de pós-operatório. Visão posterior.
DISCUSSÃO
Hidradenite supurativa (HS) é uma doença crônica, inflamatória, recorrente,
debilitante e cutânea caracterizada por lesões dolorosas, profundas e inflamadas,
principalmente nas regiões portadoras de glândulas apócrinas e folículos pilosos,
caracterizada por um infiltrado leucocitário perifolicular. A prevalência da HS
varia de 1% a 4% na Europa e nos Estados Unidos na população em geral. Geralmente,
manifesta-se após a puberdade na segunda e terceira décadas de vida, com
predominância feminina. As lesões a longo prazo podem complicar-se com carcinoma
de
células escamosas1-3.
No ambiente clínico, o estadiamento Hurley é recomendado, pois é simples e ajuda a
determinar as necessidades terapêuticas. O estágio Hurley I caracteriza-se por
presença de abcesso único, ou múltiplos, porém, sem fístula ou cicatrizes; o estágio
II por presença de abscesso recorrente único, ou múltiplos, separados com formação
de fístulas e cicatrizes; e o estágio III se caracteriza por presença de múltiplas
fístulas interconectadas e abcessos envolvendo ao menos uma área anatômica completa.
Para estágio III, o tratamento preferencial são as resseções cirúrgicas amplas
de
pele, glândulas apócrinas e folículos pilosos porque apresentam maior probabilidade
de cura, com menor taxa de recorrência da HS2-4. Por essa razão, ter
opções de retalhos para reconstruir defeitos após grandes resseções de HS na região
perineal é fundamental.
As feridas perineais que fecham primariamente estão associadas a alta taxa de
recorrência da HS3. A cura por
segunda intenção, mesmo em excisões grandes, apesar de ser uma opção resolutiva,
submete os pacientes a longos períodos de troca de curativos, que são dolorosos,
com
contração cicatricial pronunciada e aparência final desagradável2,3. O fechamento com enxerto de pele parcial também é descrito, mas
na região perineal o risco de perda por contaminação bacteriana é grande3-5.
Alguns retalhos baseados nos ramos descendentes e medial da artéria glútea inferior
e
femoral profunda foram divulgados na reconstrução de feridas por HS do períneo
parcialmente, mas nenhum deles foi descrito para reconstruir feridas grandes que
comprometam o períneo total4,6.
Com retalhos glúteos pediculados baseados em perfurantes da artéria glútea superior
e
inferior, estudados em reconstrução de defeitos perineais por HS, apesar de serem
considerados retalhos grandes, foi necessária dissecção pelicular de 10 a 12cm
para
alcançar áreas mais distantes, tornando-se retalhos mais difíceis de ser feitos,
em
contraste com os fasciocutâneos da coxa. Ademais, pela proximidade à região
perianal, em alguns casos foram indicados medicamentos antidiarreicos ou colostomia
para inibir contaminação fecal das áreas reconstruídas com tempo mínimo de
internação de 6 dias4,5,7.
Em geral, retalhos glúteos precisam de posição prona no pós-operatório, sendo mais
desconfortável para o paciente. Outros retalhos como o retalho fasciocutâneo de
pétala de lótus e da prega glútea foram descritos para feridas perineais por HS,
porém foram indicados para defeitos da zona medial e posterior do períneo, e no
caso
do períneo total não foram descritos até agora5,6,8.
O retalho fasciocutâneo medial da coxa V-Y é um retalho baseado em perfurantes da
artéria femoral, foi amplamente estudado em defeitos perineais por câncer e não
para
HS, apesar das múltiplas vantagens como cobrir defeitos do períneo anterior e
posterior sem precisar dissecção pedicular, tornando-se um retalho mais fácil
e
prático de ser feito9,10. Este retalho não sacrifica
músculo, evitando morbidade da área doadora e o suprimento vascular é confiável.
O retalho fasciocutâneo medial da coxa em avanço V-Y é uma técnica reprodutível,
oferece cobertura de pele e tecido celular subcutâneo suficiente, sendo uma boa
opção para reconstruir defeitos após ressecções amplas de pele, glândulas apócrinas
e folículos pilosos no tratamento da HS perineal grave, com resultados estéticos
e
funcionais aceitáveis.
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1. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP,
Brasil
2. Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Autor correspondente: Alexander Fabricio
Vicente-Rivas Rua Alves Guimarães, 1554, Pinheiros, São Paulo, SP,
Brasil, CEP: 05410-000, E-mail: afvr90@live.com
Artigo submetido: 26/06/2022.
Artigo aceito: 20/08/2023.
Conflitos de interesse: não há.