INTRODUÇÃO
A Odontologia consiste em uma ciência da saúde que visa elevar a autoestima e aprimorar
a qualidade de vida do paciente. Esses resultados podem ser alcançados em razão do
caráter salutar e estético-funcional que determinados procedimentos odontológicos
detêm1. Contudo, a busca por procedimentos na face com finalidade estética tem se tornado
corriqueira, o que resulta em dilemas morais, éticos e legais no que diz respeito
à área de atuação dos cirurgiões-dentistas.
Dessa forma, limites da atuação profissional entre diferentes profissões da área da
saúde, tais como a Medicina e a Odontologia, têm sido motivo de debates e, até mesmo,
demandas judiciais, quando ambas as profissões não chegam a um pacto administrativo
mediado pelos conselhos de classe. Assim, contestações com esse enfoque já ocorreram,
como é o caso da remoção do corpo adiposo da bochecha (bichectomia) pelos cirurgiões-dentistas,
que devem executá-la, exclusivamente, com finalidade estético-funcional2.
Todavia, o surgimento de novos procedimentos clínicos em diversas regiões da face
levanta dúvidas e debates no que diz respeito ao limite da área de atuação dos cirurgiões-dentistas.
Nessa seara, enquadrase a intervenção na orelha denominada “ear shut”, procedimento divulgado pela classe odontológica e que promete a correção da orelha
em abano sem cirurgia3.
OBJETIVO
Realizar o levantamento das leis, normativas e resoluções que incumbem a área de atuação
dos cirurgiõesdentistas, bem como discutir os limites e as consequências de sua extrapolação
sob a perspectiva do procedimento propagado como “ear shut”.
PROCEDIMENTOS CORRETIVOS DA ORELHA EM ABANO NA MEDICINA E NA ODONTOLOGIA
A prominauris, popularmente conhecida como orelha em abano ou orelha de abano, é uma das anomalias
congênitas mais comuns na região de cabeça e pescoço, que pode se apresentar por fatores
genéticos, influências ambientais durante o desenvolvimento e migração auricular no
segundo trimestre de gestação4,5.
Caracteriza-se pela proeminência anterior da orelha, geralmente de forma bilateral
e, apesar de não acarretar alterações funcionais, pode afetar a autoestima dos indivíduos,
principal motivo da busca por cirurgias corretivas, pois pode gerar impactos psicossociais,
principalmente na infância e adolescência, quando a ridicularização de características
físicas tende a influenciar negativamente, causando quadros de estresse, ansiedade
e dificuldade de integração social6.
A orelha é formada por regiões anatômicas diretamente relacionadas ao diagnóstico
da prominauris (Figura 1). Desta forma, são três as causas mais frequentes da orelha em abano: subdesenvolvimento
da anti-hélice, que irá aumentar o ângulo escafoconchal; proeminência da concha, que
irá incrementar o ângulo auriculocefálico; e a protrusão do lóbulo, podendo ainda,
haver associação entre essas causas7.
Figura 1 - Regiões anatômicas da orelha em norma frontal (à esquerda) e posterior (à direita).
Figura 1 - Regiões anatômicas da orelha em norma frontal (à esquerda) e posterior (à direita).
O ângulo auriculocefálico, em geral, mede entre 25° e 30°; e pode atingir mais de
40° de angulação. Já o ângulo escafoconchal, de aproximadamente 90°, pode atingir
valores superiores a 150° de angulação8,9. Isto posto, a realização de procedimentos na região da orelha requer conhecimento
abrangente da sua anatomia, englobando anatomia superficial e profunda, inervação,
vascularização, origem embrionária e formação6.
Nesse contexto, a otoplastia – cirurgia plástica das orelhas – engloba variadas técnicas
para a correção da prominauris, e a escolha da técnica apropriada depende da análise de vários fatores. Logo, a
intervenção que visa a correção estética dessa condição deve ser planejada de forma
individualizada, sendo possível ainda a associação entre técnicas para se obter melhores
resultados8.
Além disso, a utilização de técnicas cirúrgicas deve considerar a idade em que o ouvido
tem seu desenvolvimento finalizado, o qual ocorre por volta dos 6 anos, para que a
partir de então um procedimento cirúrgico de correção das orelhas em abano possa ser
executado, sendo esse procedimento realizado sob anestesia geral ou sob sedação e
anestesia local, a depender da idade e do nível de colaboração do paciente9.
Quanto às técnicas cirúrgicas propriamente ditas, essas variam de acordo com sua invasividade,
descolamento tecidual e incisões de áreas estratégicas em cartilagem, com suturas
que permitirão a criação de uma nova curvatura9. Por outro lado, técnicas menos invasivas permitem acesso à cartilagem por meio de
pequenas incisões empregadas com o intuito de criar zonas de enfraquecimento na cartilagem,
onde ocorrerá sua remodelação8. Apesar de não haver uma técnica padrãoouro, todas apresentam vantagens e desvantagens,
convergindo para um mesmo objetivo estético10.
A otoplastia fechada consiste em uma abordagem minimamente invasiva, que a partir
da infiltração e fixação transcutânea de fios não absorvíveis propõe o tratamento
de orelhas em abano. As principais intercorrências da técnica são: desenvolvimento
de edema, equimose, recidiva, exposição de pontos e assimetria entre as orelhas11.
Atualmente, na Odontologia, procedimentos relacionados à correção de orelhas em abano
surgiram como novidade no mercado, prometendo sua execução sem a necessidade de cortes,
utilizando apenas a sutura, com pontos transcutâneos. Esse procedimento, que ficou
conhecido como “ear shut”, vem sendo comercializado como uma técnica inovadora, rápida, eficaz e que não deixa
cicatrizes3.
A técnica “ear shut” reproduz os passos da otoplastia fechada e não existem trabalhos na literatura abordando
diretamente o tema com essa nomenclatura. Apesar da promessa de resultado, Janis et
al. (2005)12 afirmam que técnicas não cirúrgicas para a correção de orelhas proeminentes demonstravam,
até aquela época, resultados insatisfatórios na maioria dos casos.
“EAR SHUT”, FAZER OU NÃO FAZER? ABORDAGEM LEGISLATIVA
Cuidar adequadamente e com diligência da saúde dos seus pacientes é dever de todo
e qualquer cirurgiãodentista13. Condutas abusivas e lesivas que infrinjam este bem estão descritas em diferentes
normas legais brasileiras14. E, nesse sentido, o exercício profissional da Odontologia deve ser praticado com
elevado grau de zelo e com bases científicas confiáveis; de tal forma que os cirurgiões-dentistas
devem conhecer a fundo os procedimentos, além de praticá-los na medida certa para
cada paciente e sua condição clínica15.
A Organização Mundial da Saúde define saúde como um estado de completo bem-estar físico,
mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade16. Desta forma, a prevenção, recuperação e conservação da saúde bucal é função basilar
da Odontologia, mantendo a integridade e funcionalidade adequada do sistema estomatognático,
devolvendo a saúde ou mesmo evitando o agravamento de certos problemas.
Questões morais, éticas e legais não devem ser desprezadas pelos cirurgiões-dentistas
durante a execução de qualquer tratamento ou procedimento odontológico, pois, além
do ato clínico, este abrange igualmente a relação profissional-paciente em todas as
suas minúcias17. O profissional, além do conhecimento teórico e a habilidade clínica, deve estar
bem esclarecido sobre as suas obrigações de ordem cível, penal, ética e administrativa,
às quais todos estão sujeitos nesta íntima relação com seus pacientes18.
O artigo 5º da Constituição Federal promulgada em 1988, inciso XIII, estabelece como
direito à liberdade de trabalho ou liberdade do exercício de qualquer ofício ou profissão,
que pode ser definida como a soberania do ser humano em desempenhar profissionalmente
qualquer atividade laborativa, desde que atendidas as qualificações profissionais
que a lei estabelecer. Como a literalidade do dispositivo constitucional sugere, há
possibilidade de que, por meio de lei, sejam impostas certas restrições ao exercício
de qualquer atividade profissional19.
Já no inciso XXXIII, do mesmo artigo, encontra-se a defesa do consumidor como garantia
constitucional ao afirmar que: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
Para assegurar a importância da saúde sob o enfoque da Constituição Federal, o artigo
6º ainda estabelece a saúde como um dos direitos fundamentais, inserida no título
destinado à ordem social, que visa o bem-estar e a justiça social. A partir desta
avaliação, o Estado passou a formular políticas sociais e econômicas voltadas à proteção
específica da saúde19.
Com a promulgação da Constituição Federal e na esteira dos seus artigos, publicou-se
o Código de Defesa do Consumidor, que abrange toda a sociedade como uma coletividade
de pessoas indeterminadas, em todas as suas relações, sendo destinado à defesa da
pessoa que adquire ou utiliza produto ou serviço, materializando uma relação de consumo.
Em destaque, o seu artigo 2º define o consumidor como “toda pessoa física ou jurídica
que adquire ou utiliza produto ou serviço com destinatário final”. Neste diapasão,
qualquer usuário de serviços odontológicos é um consumidor para o qual se presta um
serviço, sendo fornecedor o profissional que desenvolve sua atividade de forma remunerada.
Dessa forma, salienta-se que o cirurgião-dentista é profissional liberal e a relação
com o seu paciente tem natureza consumerista20.
Preliminarmente, tem-se que pontuar que o paciente dará a última palavra sobre a sua
própria saúde. Se não for caso de emergência, só este pode decidir sobre o interesse
ou não de implementar certo tratamento, ponderando riscos e benefícios. Sobre este
raciocínio, o artigo 94 do Código Civil Brasileiro afirma que, em atos bilaterais,
o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra
parte haja ignorado constituirá em omissão dolosa, evidenciando que sem ela não se
teria celebrado o contrato. Assim, é imperativo que o paciente seja prévia e devidamente
esclarecido, em linguagem compreensível, sobre sua enfermidade, limites do tratamento
indicado, efeitos colaterais e possíveis complicações21.
Sob o enfoque da natureza jurídica da responsabilidade civil, o Código Civil Brasileiro,
Lei N° 10.406, de 10 de janeiro de 2002, nos artigos 186, 187, 927, 949, 950 e 951,
estabelece que o profissional deve ter formação acadêmica correspondente à ciência
e à ética da profissão que ele abraçou, exercendo-a dentro de elevados padrões científicos,
com prudência e perícia. Tal formação deve ser aceita pelas academias e instituições
regulares e reconhecidas. Nunca é demais reforçar que tais artigos apresentam repercussões
sobre a negligência, a imprudência ou a imperícia21.
Ao avaliarmos a responsabilidade penal do cirurgião-dentista no exercício profissional,
sob a luz do Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei N° 2.848 de 7 de dezembro de 1940,
deve-se reforçar que este atuar é invasivo por excelência, por manusear instrumento
cortante, contundente e cortocontundente; podendo provocar diversas lesões e que poderão
acarretar denúncia de infração ao artigo 129 e seu 6º parágrafo22:
“Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal
Capítulo II
Das lesões corporais
Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano. (...)
Lesão corporal culposa
§ 6° Se a lesão é culposa:
Pena - detenção, de dois meses a um ano. (...)”
Em seu artigo 132, o Código Penal é transparente ao explicitar que a exposição da
vida ou da saúde de outrem a perigo iminente poderá levar à pena de detenção, de três
meses a um ano, isso se o fato não constituir crime mais grave. Tal citação caracteriza
o delito de periclitação da vida e da saúde. Imagina-se ao considerar que o cirurgião-dentista
agirá sem intenção dolosa, partindo da sua boa-fé. Com este princípio em mente, a
condenação criminal surgirá quando demonstrada a culpa do profissional na sua prática
clínica. Neste raciocínio deverá ficar caracterizada a imperícia, imprudência ou negligência
por parte do profissional, já que estes são os elementos caracterizadores de culpa,
e em decorrência disto produziu uma lesão durante ou como consequência do seu atuar22.
Já a mesma norma legal reforça no artigo 282 que a atuação profissional ilícita está
prevista e discorre que exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico,
dentista ou farmacêutico, sem a devida autorização legal ou ultrapassando seus limites,
sujeitase a pena de detenção, de seis meses a dois anos22. O descumprimento da autorização legal caracteriza-se pela inexistência do título
idôneo e os respectivos registros legais. Quanto ao excesso de limites citado na redação
do artigo, é definido quando o crime for cometido por um dos profissionais referidos,
exercendo atos típicos da profissão de outro campo do saber23.
“EAR SHUT” NA ODONTOLOGIA: NORMAS ADMINISTRATIVAS VIGENTES
No Brasil, a Odontologia é regulamentada pela Lei Nº 5.081, de 24 de agosto de 1966,
que dita as qualificações, competências e vedações dos cirurgiõesdentistas. Em seu
artigo 6°, inciso I, a referida lei dispõe que compete aos cirurgiões-dentistas a
prática de todos os atos pertinentes à Odontologia, sejam de conhecimentos adquiridos
em nível de graduação ou pós-graduação. Entretanto, a Lei não especifica as áreas
de atuação dos cirurgiões-dentistas de forma detalhada, com descrição de procedimentos
ou delimitações anatômicas24.
Nesse sentido, na tentativa de dirimir tais dúvidas, a Resolução Nº 176/2016, publicada
pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO), no parágrafo 1°, discorreu sobre o uso
de toxina botulínica nas áreas anatômicas de atuação clínica-cirúrgica. Tais limites
consistem entre a porção superior ao osso hioide à porção inferior aos ossos próprios
do nariz (ponto násio); e, lateralmente, à porção anterior ao tragus, abrangendo o que foi descrito na referida normativa como estruturas anexas e afins.
Quando na condição de procedimentos não cirúrgicos, incluise também o terço superior
da face, do ponto násio à linha de inserção do cabelo. No entanto, a delimitação anatômica
apresentada nessa norma define que a parte posterior ao tragus não é área de atuação dos cirurgiões-dentistas, de tal maneira que não compete a
esse profissional realizar qualquer procedimento para tratamento da orelha em abano,
quer seja cirúrgico ou não (Figura 2)25.
Figura 2 - Delimitação anatômica da área de atuação dos cirurgiões-dentistas de acordo com a
Resolução Nº 176/2016 do Conselho Federal de Odontologia.
Figura 2 - Delimitação anatômica da área de atuação dos cirurgiões-dentistas de acordo com a
Resolução Nº 176/2016 do Conselho Federal de Odontologia.
Em conformidade com a Resolução CFO Nº 198/2019, a harmonização orofacial foi reconhecida
como especialidade odontológica, incluindo entre os procedimentos o uso de toxina
botulínica, preenchedores faciais, biomateriais indutores percutâneos de colágeno,
a realização de intradermoterapia, procedimentos biofotônicos, laserterapia, lipoplastia,
bichectomia e liplifting. Verifica-se nessa pauta que não há inclusão de qualquer procedimento que vise intervenção
em orelhas26.
Assim, com o intuito de normatizar, estabelecer critérios e elucidar os limites da
atuação dos cirurgiõesdentistas, o CFO editou a Resolução Nº 230/2020, que veda a
realização de determinados procedimentos em áreas anatômicas de cabeça e pescoço,
elencando, entre estes, a otoplastia. Além disso, a mesma norma proíbe a publicidade
e propaganda de procedimentos não odontológicos e alheios à formação superior em Odontologia21,27.
Ademais, com a Resolução CFO Nº 237/2021, infere a “suspensão cautelar de cirurgião-dentista
cuja ação, decorrente do exercício profissional, coloque em risco a saúde e/ou a integridade
física dos pacientes, ou que esteja na iminência de fazê-lo”. O artigo 2º da referida
Resolução apresenta diversas situações em que a suspensão cautelar poderá ser aplicada
e, dentre estas, quando o cirurgião-dentista extrapola os limites da sua competência
legal28.
Além da região anatômica, por possuir caráter estritamente estético, o procedimento
de “ear shut” afronta diretamente a Resolução CFO Nº 63/2005, que em seu artigo 48 prevê a realização
de cirurgia estética apenas pela classe médica, com ressalva para as de caráter estético-funcional
do aparelho estomatognático29. E, nesse ponto, importante observar que o Conselho Federal de Medicina emitiu a
Resolução Nº 2.272 de 2020, que coloca, em seu artigo 1°, que é de competência exclusiva
do médico “a prática de cirurgia e procedimentos com finalidade estética e/ ou funcional,
ressalvando, não de forma exclusiva, a cirurgia reparadora e com finalidade estético-funcional
do aparelho estomatognático”30, ou seja, indicando uma interface de atuação com a Odontologia, mas no caso do procedimento
“ear shut”, não há o entendimento nessa norma de realização por cirurgião-dentista.
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seção I, p.132, e estabelece critérios quanto à atuação de médicos na área craniomaxilofacial,
à luz da Lei Nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Brasília: Conselho Federal de Medicina;
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1. Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Departamento
de Patologia e Medicina Legal, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
2. Universidade de São Paulo. Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, Departamento
de Odontologia Restauradora, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
3. Universidade Federal da Paraíba, Hospital Regional da Asa Norte, Brasília, Distrito
Federal, Brasil
4. Universidade de São Paulo. Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, Departamento
de Estomatologia, Saúde Coletiva e Odontologia Legal, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
Autor correspondente: Ricardo Henrique Alves da Silva USP – Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto. Área de Odontologia Legal. Av.
do Café, s/n, Bairro Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Brasil. CEP: 14040-904 E-mail:
ricardohenrique@usp.br
Artigo submetido: 07/10/2021.
Artigo aceito: 07/04/2022.
Conflitos de interesse: não há.