INTRODUÇÃO
Calcinose cutânea é uma doença rara caracterizada por precipitação de cristais de
cálcio no tecido cutâneo1. De acordo com o balanço fosfo-cálcio, pode ser classificada em distrófica, metastática,
iatrogênica ou idiopática1.
A forma distrófica é a mais comum1-3, não há alterações laboratoriais dos níveis séricos de cálcio e fósforo nem envolvimento
visceral. O tipo metastático ocorre em tecidos normais como resultado do aumento dos
níveis séricos de cálcio e/ou de fosfato4. A manifestação iatrogênica decorre de extravasamento intravenoso de gluconato de
cálcio e da deposição de sais de cálcio na pele, subsequente à eletromiografia ou
eletroencefalografia5. Já a idiopática ocorre na ausência de alterações teciduais e metabólicas4.
A calcinose pode ser localizada (dano tecidual por trauma, inflamação, infecção, necrose
ou neoplasia) ou generalizada (associada a colagenoses, genodermatoses e alguns tipos
de paniculites)2.
RELATO DO CASO
Paciente A.G.C., feminina, 66 anos, natural de Marau - Rio Grande do Sul. Vítima de
queimadura com fogo em abdome e coxas aos 8 anos de idade, atingindo, na época, aproximadamente
25% de superfície corporal, com queimaduras de segundo e terceiro graus. Permaneceu
aproximadamente 3 meses internada na cidade de origem, sendo submetida a debridamentos
seriados e enxertos de pele parcial.
No primeiro ano após a queimadura, já apresentava retrações cicatriciais em membros
inferiores, com dificuldade de abdução e deambulação, tendo desenvolvido encurtamento
de perna esquerda. Em 2005, a paciente referiu o aparecimento de lesões endurecidas
semelhantes a cartilagem em meio a áreas cicatriciais das queimaduras da infância,
de início somente em coxa esquerda e evoluindo logo em seguida para o abdome inferior.
Em avaliação dermatológica em novembro de 2018, notou-se a presença de lesões ulceradas
com material córneo-ceratótico em seu interior, eritema e enduramento importante das
bordas das lesões em abdome inferior e coxa esquerda. Devido à suspeita de úlcera
de Marjolin, optou-se por biópsia das lesões.
O exame anatomopatológico de janeiro de 2019 apontava como achados histológicos a
hiperceratose, hipergranulose e infiltrado linfoplasmocitário em derme papilar associado
a crosta fibrinoleucocitária e fibrose dérmica, concluindo o exame com ausência de
sinais de malignidade e diagnóstico de calcinose distrófica.
Encaminhada ao serviço de cirurgia plástica do Hospital Universitário Evangélico Mackenzie
em setembro de 2019 para realização de exérese cirúrgica de calcinoses que causavam
extremo desconforto estético e funcional para a paciente. O procedimento cirúrgico
foi realizado em novembro do mesmo ano.
Na região de abdome inferior, optou-se pela realização de tratamento das sequelas
de queimadura em conjunto com a ressecção de fibrose cicatricial e das áreas de calcinose
com rotação de retalho dermogorduroso de abdome superior. Já na região lateral de
coxa esquerda, optou-se por enxertia de pele total proveniente do retalho abdominal
(Figuras 1 a 5).
Figura 1 - Aspecto pré-operatório.
Figura 1 - Aspecto pré-operatório.
Figura 2 - Lesão cartilaginosa de coxa esquerda e lesão cartilaginosa de abdome inferior.
Figura 2 - Lesão cartilaginosa de coxa esquerda e lesão cartilaginosa de abdome inferior.
Figura 3 - Aspecto intraoperatório.
Figura 3 - Aspecto intraoperatório.
Figura 4 - Aspecto 1 dia de pós-operatório.
Figura 4 - Aspecto 1 dia de pós-operatório.
Figura 5 - Aspecto 10 meses de pós-operatório.
Figura 5 - Aspecto 10 meses de pós-operatório.
O material ressecado durante o procedimento cirúrgico de região de abdome inferior
e coxa esquerda foi enviado para exame de anatomopatológico, com resultados de esclerose
hipertrófica associada a inflamação crônica e aguda, além de áreas de ossificação
metaplásica, com ausência de malignidade em ambas as peças.
Os exames laboratoriais pré-operatórios evidenciaram cálcio, fósforo, CPK, aldolase,
paratormônio, bilirrubina total, direta e indireta, ureia, creatinina e tempo de protrombina
dentro dos valores de normalidade. A vitamina D encontrava-se abaixo dos valores de
referência. O fator antinuclear, os anticorpos anticentrômeros e o antiescleroderma
(SCL 70) foram não reagentes, com antiSS A (RO) e antiSS B (LA) negativos.
O hemograma apontou hemoglobina, leucócitos e plaquetas dentro dos valores de referência.
O hematócrito encontrava-se abaixo dos valores de referência e os bastões, acima.
A urina de 24 horas mostrou cálcio dentro dos valores de normalidade e volume urinário
de 1.200,00 ml.
Ao eletrocardiograma, taquicardia sinusal com FC de 102 bpm. O raio-X de tórax mostrou
transparência normal dos pulmões, seios e cúpulas frênicas livres e área cardíaca
dentro dos padrões da normalidade. Na radiografia de coxa esquerda houve evidências
de rarefação óssea difusa, sinais de coxartrose severa, com deformidade em achatamento
e esclerose na cabeça femoral. A radiografia da bacia também evidenciou rarefação
óssea difusa, além de luxação coxofemoral esquerda, com deslocamento do fêmur, superiormente,
neoarticulando-se com o íleo e redução articular coxofemoral direita.
DISCUSSÃO
A etiologia da calcinose ainda é indefinida, com várias hipóteses descritas5. Apesar das concentrações de cálcio e fosfato nos tecidos serem próximas dos seus
níveis de saturação, não é comum ocorrer deposição de sais, graças a mecanismos locais
inibitórios. A calcificação pode surgir por alguma alteração tecidual, mesmo com níveis
séricos normais. Mudanças na estrutura do tecido, redução da vascularização, hipóxia,
alterações próprias do envelhecimento e predisposição genética podem estar envolvidos
no processo de formação de depósitos de cálcio na pele5.
Para o diagnóstico da patologia, o exame mais sensível é a cintilografia óssea2 por meio da demonstração dos depósitos de cálcio nos tecidos. Entretanto, é o exame
anatomopatológico que confirma o diagnóstico2.
A calcinose pode causar atrofia muscular, contraturas articulares e úlceras cutâneas
com episódios recorrentes de extrusão de material cálcico e purulento da lesão2,6. Caso o diagnóstico seja tardio, tais complicações podem levar a quadros dolorosos
e debilitantes, resultando em incapacidade funcional2,6.
O tratamento da calcinose distrófica tem resultados variáveis2,3,7. Essa dificuldade na sua abordagem decorre da baixa incidência da afecção e da história
natural variável e pouco previsível. Portanto, até o presente momento, não existe
uma terapêutica reconhecida universalmente6.
São descritas como possíveis terapias a prescrição de corticoesteroides, diltiazem,
colchicina, probenecide, hidróxido de alumínio, bifosfonatos e antifator de necrose
tumoral, além dos procedimentos de exérese cirúrgica2,3,6,7. Áreas pequenas foram tratadas com sucesso com uso de varfarina, laser de dióxido
de carbono, ceftriaxona e imunoglobulina intravenosa8; já nos casos associados a doenças do tecido conjuntivo e calcifilaxia, o sódio tópico
e o tiossulfato têm sido eficazes.
Nos casos mais extensos associados a queimaduras, as áreas de calcinose foram tratadas
através da intervenção cirúrgica, desde a simples remoção do depósito de cálcio com
pinça, uso de enxertos até a aplicação de triancinolona intralesional8. Os resultados dessas terapias são contraditórios e benefícios consistentes não têm
sido relatados6.
No caso aqui descrito, a equipe optou por não iniciar terapêutica medicamentosa devido
à ausência de comprometimento sistêmico da paciente e por suas lesões cutâneas terem
se mantido estáveis durante o acompanhamento.
CONCLUSÃO
A calcinose apresenta-se como afecção cutânea pouco prevalente, com mecanismos subjacentes
não totalmente compreendidos. Há pouca descrição na literatura de calcinose como complicação
de queimaduras3. Embora a melhor escolha terapêutica ainda não seja clara, o tratamento de complicações
que possam culminar em incapacidade funcional é fundamental para reduzir a morbidade
e aumentar a qualidade de vida do paciente. Dessa forma, o presente estudo serve como
referência para futuros trabalhos, objetivando maior elucidação do processo fisiopatológico
desta correlação.
REFERÊNCIAS
1. Rosmaninho A, Carvalho S, Lobo I. Photoletter to the editor: Calcinosis cutis in a
burn scar. J Dermatol Case Rep. 2015;9(4):120
2. Ferrara FS, Souza BC, Alvarenga CO, Vidigal MR, Tebcherani AJ, Sanchez APG. Calcinose
cutânea distrófica em adolescente: relato de caso. Rev Med (São Paulo). 2012;91(3):215-8.
3. Lee HW, Jeong YI, Suh HS, Lee MW, Choi JH, Moon KC, et al. Two cases of dystrophic
calcinosis cutis in burn scars. J Dermatol. 2005;32(4):282-5.
4. Fabreguet I, Saurat JH, Rizzoli R, Ferrari S. Calcinose cutanée associée aux connectivites.
Rev Med Suisse. 2015;11(466):668-72.
5. Carocha APG, Torturella DM, Barreto GR, Estrella RR, Rochael MC. Calcinose cútis distrófica
universal associada a lúpus eritematoso sistêmico: um caso exuberante. An Bras Derm.
2010;85(6):883-7.
6. Castro TCM, Yamashita E, Terreri MTRA, Len CA, Hilário MOE. Calcinose na infância,
um desafio terapêutico. Rev Bras Reumatol. 2007;47(1):63-8.
7. Shinjo SK, Souza FHC. Atualização na terapêutica da calcinose em dermatomiosite. Rev
Bras Reumatol. 2013;53(2):211-4.
8. Lockwood KA, Oliphant T. Dystrophic calcinosis cutis within burns, successfully treated
with excision and secondary intention wound healing. Clin Exp Dermatol. 2018;43(5):648-9.
1. Hospital Universitário Evangélico Mackenzie, Curitiba, PR, Brasil
2. Faculdades Pequeno Príncipe, Curitiba, PR, Brasil
Autor correspondente: Mariana Cionek Simões Rua Professora Ephigenia do Rego Barros, 63, Bairro Mercês, Curitiba, PR, Brasil.
CEP: 80730-450, E-mail: mari_cionek@hotmail.com
Artigo submetido: 12/08/2021.
Artigo aceito: 13/12/2021.
Conflitos de interesse: não há.