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Case Report - Year2022 - Volume37 - Issue 2

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2022RBCP0040

RESUMO

Introdução: A doença de Milroy manifesta-se como linfedema de membros inferiores e região genital, o que provoca prejuízos físicos e sociais.
Relato de Caso: Reporta-se um caso de linfedema penoescrotal severo em um paciente com doença de Milroy. Foi realizada a ressecção cirúrgica do tecido afetado e a reconstrução com retalhos locais e enxerto de pele.
Discussão: A doença de Milroy é rara, de caráter autossômico dominante. Sua apresentação clínica é progressiva e decorre da hipoplasia dos vasos linfáticos dos membros inferiores. O tratamento em casos avançados é iminentemente cirúrgico.
Conclusão: No caso apresentado, o tratamento cirúrgico é uma boa opção. O uso de retalho paraescrotal para escrotoplastia associado ao enxerto para cobertura do pênis proporciona bom resultado funcional.

Palavras-chave: Linfedema; Escroto; Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos; Procedimentos cirúrgicos urológicos masculinos; Doenças dos genitais masculinos; Anormalidades congênitas

ABSTRACT

Introduction: Milroy disease manifests itself as lymphedema of the lower limbs and genital region, which causes physical and social damage.
Case Report: A case of severe-scrotal lymphedema in a patient with Milroy disease. Surgical resection of the affected tissue and reconstruction with local flaps and skin graft were performed. Discussion: Milroy disease is a rare autosomal dominant disease. The clinical presentation is progressive and results from hypoplasia of the lymphatic vessels of the lower limbs. Treatment in advanced cases is mainly surgical.
Conclusion: In the case of a patient with Milroy disease and severe penoscrotal lymphedema, surgical treatment is a good option. The use of parascrotal flaps for scrotoplasty associated with a graft to recover the penis provides a good functional result.

Keywords: Lymphedema; Scrotum; Reconstructive surgical procedures; Urologic surgical procedures, male; Genital diseases, male; Congenital abnormalities.


INTRODUÇÃO

O linfedema penoescrotal é relativamente raro, sobretudo em países desenvolvidos1. É categorizado como primário, em decorrência de obstrução, hipoplasia ou malformações linfáticas, ou secundário a diversas causas como filariose, linfogranuloma venéreo, radiação e malignidade2. Frequentemente, afeta a função sexual, miccional, predispõe a infecções e dificulta a locomoção, o que diminui a qualidade de vida, com repercussões físicas e psicossociais3.

O tratamento cirúrgico se apresenta como a melhor alternativa, nos casos com grandes dimensões, por meio da excisão cirúrgica seguida de reconstrução com retalhos e enxertos4. Apesar disso, o manejo é desafiador. Este trabalho objetiva apresentar uma alternativa cirúrgica para doença incomum e de abordagem terapêutica não padronizada na literatura. Segue-se de uma breve discussão mediante revisão bibliográfica atualizada.

RELATO DE CASO

Trata-se de um paciente masculino, 22 anos, natural de área não endêmica de filariose em Minas Gerais, encaminhado para avaliação da cirurgia plástica no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Relatou que, desde o nascimento, seus membros inferiores, escroto e pênis começaram a edemaciar progressivamente (edema frio e mole), com evolução para prejuízo estético e funcional (miccional, sexual e locomotor). Informou que sua família, por parte de mãe, é acometida há três gerações pelo mesmo quadro e que seus irmãos também foram afetados, porém evoluindo com quadros de menores proporções.

Ao exame físico, observava-se linfedema maciço escrotal com dimensões de 50cm x 30cm x 20cm, linfedema do prepúcio com glande não visível e não exteriorizável. A pele dos membros inferiores, escroto e pênis apresentava-se infiltrada, endurecida e com nódulos exofíticos, hiperceratóricos, alguns com úlceras centrais, secas. Os testículos não eram palpáveis e com transiluminação negativa (Figura 1). Havia necessidade de cadeira-de-rodas para percorrer grandes distâncias e não suportava a ortostase por tempo prolongado.

Figura 1 - Apresentação do paciente.

O paciente não apresentava comorbidades, sendo a propedêutica para filariose negativa e a tomografia computadorizada de abdome e pelve demonstrava imagem compatível com linfedema penoescrotal. Em sua avaliação pré-anestésica foi considerado como ASA (American Society of Anesthesiologists) II.

Em 16 de abril de 2019, iniciou-se a cirurgia com antibioticoprofilaxia com cefazolina. O paciente foi posicionado em litotomia, realizou-se antissepsia extensa, biópsia de nódulos pubianos e swab uretral (para anatomopatologia e cultura, respectivamente), prosseguindo-se à sondagem vesical de demora com auxílio de suturas de reparo prepuciais às 3 e 9h. Procedeu-se à incisão longitudinal na rafe mediana escrotal até a base peniana, com exploração bilateral pela dissecção em planos. Assim, foram identificados os testículos em posição cranializada, próximos ao anel inguinal externo, fixando-os nesta posição. O testículo direito apresentava tamanho reduzido e o esquerdo tamanho habitual.

Realizou-se a postectomia sob técnica de dupla incisão circular, com preservação de uma faixa circular de prepúcio original de aproximadamente 3cm de extensão desde o novo sulco coronal (Figura 2).

Figura 2 - Identificação dos testículos. Postectomia realizada pela técnica de dupla incisão circular.

Seguiu-se a dissecção subdérmica de dois retalhos paraescrotais na transição com a pele sadia (24cm x 10cm) e um retalho perineal em “V” invertido (7cm), com posterior exérese dos excessos escrotais (Figura 3). Os retalhos paraescrotais foram bipartidos, sendo a parte cranial utilizada para síntese pubopeniana ao nível da porção superficial do ligamento suspensor e do corpo do pênis, com suturas sagitais dorsais e ventrais (nylon 4-0 na região pubiana e poliglactina 4-0 na região peniana).

Figura 3 - Exposição dos retalhos paraescrotais após remoção dos tecidos excedentes.

A bolsa escrotal foi refeita unindo-se a porção caudal dos retalhos paraescrotais na linha média, fixando a porção cranial na base peniana com suturas de adesão (poliglactina 3-0) e fechando a porção caudal em “W” junto ao retalho perineal (nylon 4-0).

Concluiu-se com a aposição de dois drenos laminares na nova bolsa escrotal e síntese habitual das incisões remanescentes em dois planos. O pênis foi imobilizado na posição vertical, com auxílio de curativo com gazes, e o curativo do escroto feito com bandagem estéril, na forma de suspensório escrotal (Figura 4).

Figura 4 - Síntese dos retalhos para confecção da nova bolsa escrotal.

As culturas colhidas no intraoperatório não resultaram em crescimento bacteriano. Manteve-se a sonda vesical por dois dias. O curativo foi trocado diariamente a partir do 3° dia de pós-operatório (DPO). Os drenos foram retirados no 5° DPO, após débito menor que 30ml nas 24h prévias. No 7° DPO, apresentou saída de secreção fétida, esverdeada, pela porção ventral da sutura peniana, sendo colhidas culturas de secreção, retirados pontos de sutura alternadamente, iniciada antibioticoterapia empírica (ceftriaxona + gentamicina) e trocados curativos a intervalos menores (8h).

Na manhã seguinte, pôde-se perceber os retalhos escurecidos e edemaciados, sobretudo na porção que cobria a metade esquerda da superfície peniana (Figura 5). O restante da sutura ventral foi retirado, observando-se piora do aspecto da ferida. As culturas foram positivas para Klebsiella sp., o que suscitou o escalonamento antibiótico segundo antibiograma (piperacilina-tazobactam + vancomicina).

Figura 5 - Área necrótica demarcada na superfície esquerda do corpo peniano.

No 10° DPO, já havia delimitação da necrose, sendo realizada reabordagem para desbridamento dos tecidos necróticos até a fáscia de Buck (Figura 6), coleta de novas culturas e cobertura com enxerto de espessura parcial (0,6mm), retirado da coxa esquerda e suturado de forma circunferencial ao pênis, com sutura na sua linha média ventral. Foi realizado novo curativo com gaze petrolatada + algodão hidrofóbico estéril, mantido por cinco dias.

Figura 6 - Desbridamento cirúrgico de área necrosada, com identificação da fáscia de Buck.

À primeira troca deste curativo, foram observadas perdas difusas do enxerto colocado, com coleções esverdeadas puntiformes sob alguns locais. A nova cultura veio positiva para Pseudomonas aeruginosa, sendo requerido novo escalonamento antibiótico (tigeciclina). Evoluiu com boa cicatrização das áreas não afetadas, porém com áreas cruentas das 12-5h na base peniana, porém de aspecto granulante (Figura 7).

Figura 7 - Tecido de granulação no corpo peniano.

Recebeu alta no 25° DPO, com retornos seriados em 15, 30, 60 e 120 dias. Paciente apresentou micção voluntária, com controle miccional satisfatório, e ereção não dolorosa, funcional e com ejaculação preservada. Esteticamente, o resultado final foi pobre, com cicatrizes dorsolaterais no pênis, cicatrizes hipertróficas na região pubiana e desvio da haste peniana flácida para a esquerda em 90° no plano axial (Figura 8). O paciente, contudo, optou por não realizar novas abordagens, relatando estar satisfeito com os resultados.

Figura 8 - Aspecto final com 120 dias de pós-operatório.

O estudo anatomopatológico evidenciou linfedema crônico, com peso da peça de 15,736 quilogramas e dimensões de 48 x 28 x 17cm. Não havia presença de microfilárias. Aos três meses de pós-operatório, o espermograma evidenciou oligospermia, com vitalidade reduzida na amostra, e cultura do líquido seminal sem crescimento bacteriano. O teste urodinâmico apresentava-se dentro da normalidade.

DISCUSSÃO

No caso apresentado o paciente é acometido pela doença de Milroy, um linfedema primário, raro, de herança autossômica dominante que afeta membros inferiores e região genital. É caraterizada por mutações no gene do receptor do fator de crescimento vascular endotelial 3 (VEGFR-3), responsável pelo desenvolvimento dos vasos linfáticos5. Esses pacientes são afetados por um edema maciço, fibrose e endurecimento da pele que compromete a função miccional, sexual, prejudica a mobilidade e a interação social6.

A abordagem do linfedema penoescrotal de grandes dimensões é desafiadora. Pela fisiopatologia da doença de Milroy, o quadro não obtém resultados por terapia conservadora como a linfangioplastia, já que há hipoplasia dos vasos linfáticos dos membros inferiores7. Assim, a literatura atual descreve a linfangiectomia (excisão cirúrgica da pele e tecido subcutâneo acometido) como o tratamento de escolha, sobretudo em casos de doença avançada e com fibrose associada8.

O paciente previamente ciente dos riscos de orquiectomia, má evolução das cicatrizes e retalhos foi submetido ao manejo cirúrgico. A abordagem escalonada permitiu o uso de métodos reconstrutivos relativamente simples quando da ocorrência de complicações, algo que poderia ter sido impossibilitado caso já se tivesse dispensado o uso de opções reconstrutivas mais complexas desde o início (retalhos de grácil, retalhos de Cingapura ou retalhos microcirúrgicos). Experiências satisfatórias com ressecção radical e reconstrução com retalhos e enxertos foram descritas por diversos autores. As técnicas são similares e com frequência a escrotoplastia é realizada com retalhos perineal posterior e paraescrotais, como no caso apresentado9.

A técnica de cobertura do pênis é variável, porém as experiências pregressas demonstram resultados estéticos e funcionais superiores no uso de enxertos com espessura parcial4. A opção por reconstruir a cobertura peniana com retalhos paraescrotais não proporciona uma boa mimetização da pele original do pênis, sendo rugosa e escurecida, pois há acometimento da pele do escroto pela doença. O uso de enxertos, apesar de ser visto com maus olhos por não ter a segurança vascular proporcionada por um retalho, foi o que apresentou o melhor resultado estético no caso em questão, mesmo tendo sido afligido por um processo infeccioso.

A cicatrização por segunda intenção de pequenas áreas no pênis é possível, visto que não houve formação de retrações ou de cicatrizes hipertróficas, mas não é desejável, pela perda de homogeneidade estética do corpo peniano. O uso da pele do prepúcio também não é recomendado nesse caso, pois, ao remover todo o tecido da base do pênis, a drenagem linfática da pele remanescente é interrompida ou inevitavelmente evolui para recorrência de edema10. A área doadora do enxerto, na doença de Milroy, se comprometida pela fibrose, pode resultar em cicatriz extensa e hipertrófica4.

O ambiente operatório é contaminado por bactérias de pele que ficam sob dobras úmidas, expostas ao conteúdo urinário e possivelmente fecal, na dependência da extensão da afecção, além disso, a própria imunidade do paciente é comprometida pelo acometimento linfático. Dandapat et al.4 reportaram, na maior série de casos descrita, a ocorrência de infecção em 10,6% do casos.

É comum a incontinência urinária por transbordamento nestes pacientes, assim como diversos níveis de acometimento testicular, ao comprometer a manutenção da temperatura e prejudicar a espermogênese. Uma das alternativas que parecem amenizar a perda de fertilidade é o uso de retalho de pele escrotal, já que possui o músculo cremastérico, que é termossensível11.

No caso do paciente com doença de Milroy, os tecidos regionais também se encontram acometidos, limitando a opção de retalhos pediculados para reconstrução, além de dificultar o processo cicatricial nas áreas manipuladas. Evidências histológicas demonstram que a remoção de toda a derme acometida pode estar associada a melhores resultados estéticos, apesar disso, a recorrência do linfedema na doença de Milroy chega a 50%12.

A intervenção cirúrgica, apesar de não prevenir a recorrência de linfedema, proporciona ao paciente melhor qualidade de vida. A maioria dos estudos prévios demonstram melhora na função sexual, miccional, na mobilidade, atividades de vida diária, socialização e diminuição de dor por meio da avaliação subjetiva dos pacientes13. Os pacientes devem ser aconselhados no pré-operatório aos riscos inerentes e à possibilidade de longa internação pós-operatória para os cuidados necessários, como no caso reportado, em que o paciente permaneceu 25 dias internado3.

CONCLUSÃO

O tratamento cirúrgico de linfedema genital na doença de Milroy é complexo. Pôde-se evidenciar que a utilização de enxertos proporciona o melhor aspecto estético local para cobertura do pênis, porém requer a presença de uma cicatriz de tamanho considerável na área doadora, especialmente se a doença compromete a cicatrização.

Os retalhos paraescrotais apresentaram bons resultados apenas na porção escrotal da ferida, resistindo ao processo infeccioso, o que não foi verdade para a utilização destes retalhos no corpo peniano.

Não houve regressão do edema na porção subglandar (causado possivelmente pela própria doença de base), o que gerou um aspecto estético desagradável na transição corpo-glande, permitindo-se avaliar que a manutenção de pontes de pele durante a postectomia seja desaconselhável do ponto de vista estético.

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1. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
2. Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, AM, Brasil
3. Universidade Federal de Minas Gerais, Hospital das Clínicas, Belo Horizonte, MG, Brasil

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais, Hospital das Clínicas, Belo Horizonte, MG, Brasil.

COLABORAÇÕES

JRFS Coleta de Dados, Investigação, Redação - Preparação do original.

MLMR Redação - Preparação do original.

SASRF Análise e/ou interpretação dos dados, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original.

LDC Realização das operações e/ou experimentos.

CLT Realização das operações e/ou experimentos.

ACJ Gerenciamento do Projeto, Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

Autor correspondente: Sergio Antonio Saldanha Rodrigues Filho Av. Professor Alfredo Balena, 110, Santa Efigênia, Belo Horizonte, MG, Brasil, CEP: 30130-100, E-mail: jrfsouza97@gmail.com

Artigo submetido: 01/02/2021.
Artigo aceito: 14/07/2021.

Conflitos de interesse: não há.

 

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