INTRODUÇÃO
O Brasil é um dos países mais organizados quanto ao tratamento de pacientes HIV positivos,
com sua política de acesso de saúde universal e de distribuição de fármacos como destaques,
resultando em redução da letalidade e aumento da sobrevida1,2. Porém, mesmo com o estruturado programa, houve uma alta na incidência de HIV nos
últimos anos, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, com maior percentual de
mulheres infectadas e interiorização da doença3.
Assim como o HIV, acidentes por queimaduras constituem um importante tema de saúde
pública, principalmente para países com baixa e média renda. No Brasil são estimados
aproximadamente 100.000 de acidentes por ano, com uma média de 40.000 internações4. Estas lesões podem causar incapacidade funcional aos pacientes, alterações estéticas
estigmatizantes, sequelas psicológicas e óbito5.
Apesar dos fatores acima, não há na literatura um relato sobre a prevalência de pacientes
HIV em Unidades de Terapia de Queimados no Brasil. A importância do conhecimento de
dados epidemiológicos, como incidência e prevalência, é analisar a amplitude deste
problema, e identificar as características de acometimento e causas, auxiliando na
melhor alocação de recursos e na criação de programas de prevenção6.
OBJETIVO
Este artigo tem por finalidade analisar os dados clínico-epidemiológicos de pacientes
HIV positivos internados em uma Unidade de Terapia de Queimados.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo descritivo, transversal e retrospectivo, que busca analisar
a prevalência de pacientes com diagnóstico de HIV internados na Unidade de Terapia
de Queimados do Hospital Estadual de Bauru, entre os anos de 2008 e 2018.
A Unidade de Queimados (UTQ) está localizada no Hospital Estadual de Bauru, em Bauru,
SP. Foi fundada em 2004 e é uma das 19 unidades de tratamento de queimados em São
Paulo e referência para pacientes dos 645 municípios do estado. O Centro de Queimados
é composto por uma unidade de terapia intensiva (UTI) e enfermaria com 4 e 12 leitos,
respectivamente, e tem estrutura para tratar todas as faixas etárias.
Todos pacientes no momento da internação na UTQ são testados para HIV.
As variáveis analisadas nos prontuários foram: idade, sexo, local, comorbidades, etiologia
de queimaduras, superfície corpórea queimada, regiões anatômicas envolvidas, necessidade
de leito de UTI, lesão por inalação, número de intervenções cirúrgicas, complicações
e mortalidade.
Os dados foram coletados em tabela de Excel e analisados descritivamente.
Todos os procedimentos realizados neste estudo foram de acordo com a declaração de
Helsinque de 1964 e suas alterações posteriores. O Comitê de Ética local aprovou este
estudo (número do protocolo: 35971220.4.0000.5411).
RESULTADOS
No total, foram revisados 2364 prontuários e encontrados 14 (0,6%) pacientes com diagnóstico
de HIV (Figura 1). A idade média foi 43,1 anos. Quanto ao gênero, nove (64,3%) eram masculinos e cinco
(35,7%) femininos (Tabela 1).
Figura 1 - Foram revisados 2364 prontuários de pacientes internados na Unidade de Terapia de
Queimados e encontrados 14 (0,6%) com diagnóstico de HIV.
Figura 1 - Foram revisados 2364 prontuários de pacientes internados na Unidade de Terapia de
Queimados e encontrados 14 (0,6%) com diagnóstico de HIV.
Tabela 1 - Dados gerais de pacientes HIV positivos admitidos na Unidade de Terapia de Queimados
do Hospital Estadual de Bauru.
|
Dados Gerais |
|
Idade (Média) |
|
43,1 (30 - 56) |
Gênero |
|
|
Homem |
|
9 (64,3%) |
Mulher |
|
5 (35,7%) |
Comorbidades |
|
|
Sim |
|
4 (28,6%) |
Não |
|
10 (71,4%) |
%SCQ |
|
|
Média |
|
16,90% |
0-10% |
|
5 (35,7%) |
11-20% |
|
3 (21,4%) |
>20% |
|
5 (35,7%) |
Desconhecido |
|
1 (7,14%) |
Lesão de Via Área |
|
4 (28,6%) |
Tabela 1 - Dados gerais de pacientes HIV positivos admitidos na Unidade de Terapia de Queimados
do Hospital Estadual de Bauru.
O mecanismo foi por chama direta em 11 (78,7%) casos, um (7,1%) por escaldo, um (7,1%)
por contato e um (7,1%) desconhecido. A etiologia foi álcool (42,9%) em seis pacientes,
em três explosão (21,5%) e os demais foram gasolina, cigarro e contato com escapamento,
todos com um (7,1%) caso, além de um não informado (Tabela 2).
Tabela 2 - Dados sobre o mecanismo e etiologia das queimaduras de pacientes HIV positivos admitidos
no Hospital Estadual de Bauru.
Características das Queimaduras |
Mecanismo |
|
Fogo |
11 (78,7%) |
Escaldo |
1 (7,1%) |
Contato |
1 (7,1%) |
Desconhecido |
1 (7,1%) |
Etiologia |
|
Álcool |
6 (42,9%) |
Água |
1 (7,1%) |
Explosão |
3 (21,4%) |
Gás de Cozinha |
1 (7,1%) |
Cigarro |
1 (7,1%) |
Escapamento |
1 (7,1%) |
Desconhecido |
1 (7,1%) |
Causa |
|
Acidente |
9 (64,3%) |
Tentativa de Suicídio |
1 (7,1%) |
Tentativa de Assassinato |
2 (14,3%) |
Tabela 2 - Dados sobre o mecanismo e etiologia das queimaduras de pacientes HIV positivos admitidos
no Hospital Estadual de Bauru.
Quando avaliada a causa destas queimaduras, nove (64,3%) foram por acidentes, seja
no trabalho ou domicílio, duas (14,3%) por tentativa de homicídio, uma (7,1%) por
autoextermínio, e dois (14,3%) casos não tinham informações.
Em relação a comorbidades prévias à internação, dois (14,3%) pacientes eram usuários
de crack, sendo que um destes também era portador de hepatite C, e dois (14,3%) etilistas.
Quanto à superfície corporal queimada (%SCQ), a média foi de 16,9%. Cinco (37,5%)
apresentavam queimaduras de 0-10%, três (21,4%) de 11-20%, cinco (35,7%) maiores que
20%, e em um era desconhecida. Lesões de vias aéreas foram diagnosticadas em quatro
(28,6%) pacientes.
Os locais anatômicos que mais apresentaram lesões foram membros superiores (10), seguidos
por tronco (9), face/pescoço (4) e membros inferiores (4).
Tratamento cirúrgico, desbridamento ou enxerto foi necessário em dez pacientes (71,4%),
e internação em unidade de terapia intensiva em nove (64,3%).
Durante a internação, seis (42,9%) pacientes apresentaram complicações, sendo a mais
comum pneumonia, em quatro (24,6%) casos. Dois (14,3%) pacientes foram a óbito.
DISCUSSÃO
Este é o primeiro estudo brasileiro a analisar a prevalência de pacientes HIV positivos
em uma UTQ. Outros sete artigos na literatura abordaram esta temática, sendo que a
maioria destes foi realizado no continente africano - África do Sul, Malaui, Uganda,
Zâmbia, Zimbábue e Uganda, com prevalência entre 0,5-33,3%7-13. Essa variância pode ser explicada pela diferença nas prevalências de HIV na população
geral entre os países, com África do Sul e Uganda apresentando 22% e 6,5%, respectivamente7,12. No Brasil a prevalência é aproximadamente 0,5%, valor este semelhante ao encontrado
em nosso estudo, 0,6%14.
A média de idade dos pacientes avaliados foi 43,1 anos, superior à média relatada
na literatura, que variou entre 28,4 e 39,47-9,12. Em relação ao gênero, houve predominância do sexo masculino, em 64,3% dos pacientes,
diferentemente do relatado em outros seis estudos, nos quais entre 57,6% e 100% eram
do sexo feminino7,11,12. A diferença na idade e no sexo pode ser explicado por dois motivos. Devido à maior
prevalência no Brasil de pacientes HIV na faixa etária entre 30-49 anos e do sexo
masculino15, e pela predominância de internações de queimaduras em homens em território nacional,
conforme reportado por Arruda et al.16, em que 61,3% dos pacientes hospitalizados eram do sexo masculino.
O principal mecanismo da queimadura foi por chamas, em 78,7% dos pacientes. Na literatura
quatro estudos sobre queimaduras em HIV relataram a etiologia e esta foi a mais comum
em todos, variando entre 41,2% e 100%7,11,12. Dentre as causas, 21,4% dos casos foram por agressões, seja tentativa de autoextermínio
ou de homicídio, o que expõe a vulnerabilidade social e psicológica que a população
vivendo com HIV enfrenta, como estigma, preconceito, estresse e condições econômicas
desfavoráveis17.
O consumo de álcool e o uso de crack foram as comorbidades mais prevalentes em nosso
estudo, com 14,3% cada. Ikeda et al.18 demonstraram uma prevalência de etilismo de 5,6% na população infectada por HIV,
menor que na população geral. Esta diferença pode ser explicada pelo fato de que queimaduras
relacionadas ao consumo de álcool têm aumentado em todo o mundo, variando de 1-50%19,20. Quanto ao uso de crack, Carvalho & Seibel21 demonstraram uma prevalência de 6,6% de pacientes HIV nesta população, porém não
encontramos dados sobre a possível relação entre queimaduras e o uso crack.
A mortalidade foi de 14,3%, acima do descrito por Santos et al.22, quando analisada a população geral brasileira hospitalizada por queimadura, 8,3%.
Porém, dentro da faixa de valores encontrada na literatura em estudos de queimaduras
em HIV positivos - 9,6% a 50%. HIV não é descrito como fator de risco para mortalidade,
mas sim o estado do sistema imunológico do paciente, como contagem de CD410,12.
Este trabalho não é excluso de limitações. O caráter retrospectivo através da coleta
de dados em prontuários limita o alcance das informações coletadas e a forma de análise
descritiva não permite correlações estatísticas. Não tivemos acesso ao valor de CD4
e carga viral dos pacientes. A amostra é restrita, porém esta é uma característica
dos estudo de queimaduras nesta população, onde o n variou de 5 a 73 indivíduos7-13.
CONCLUSÃO
A prevalência de pacientes HIV positivos queimados internados em uma UTQ, assim como
características como gênero e idade, é semelhante às taxas do Brasil de pacientes
soropositivos. A importância deste artigo é a possibilidade de utilizar estes dados
para focos de campanha de prevenção e alocação de recursos em relação a queimaduras
nesta população.
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1. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Medicina de Botucatu, Botucatu, SP,
Brasil
2. Hospital Estadual de Bauru, Bauru, SP, Brasil
Autor correspondente: Murilo Sgarbi Secanho Av. Prof. Montenegro s/n, Botucatu, SP, Brasil, CEP: 18618-687, E-mail: murilosecanho@gmail.com
Artigo submetido: 09/05/2021.
Artigo aceito: 15/10/2021.
Conflitos de interesse: não há.