INTRODUÇÃO
A mielomeningocele, ou espinha bífida cística, caracteriza-se por defeito do fechamento
do tubo neural durante a vigésima semana de gestação. O líquido amniótico exerce efeitos
deletérios sobre o tecido neural desprotegido. Trata-se do defeito do tubo neural
mais comum e a segunda causa de deficiência crônica do sistema locomotor na faixa
pediátrica. Sua causa é multifatorial, tendo como fatores de risco a deficiência de
ácido fólico, hipertermia materna durante os primeiros estágios da gestação, uso de
drogas antiepilépticas1,2.
No Brasil a incidência de mielomeningocele é de 2,28 para cada 1000 nascimentos. É
altamente incapacitante, uma vez que resulta em tetraparesia ou paraparesia, bexiga
neurogênica e alterações cognitivas. Estima-se que dentre os portadores de lesão medular
85% irão desenvolver úlceras por pressão. Estas se formam devido à pressão constante
exercida por proeminências ósseas sobre a pele, levando à isquemia local e formação
de lesão ulcerada.
O tratamento desse tipo de lesão visa manter a funcionalidade do tecido, eliminar
tecidos desvitalizados e processos infecciosos, evitar complicações secundárias e
possibilitar melhora estética da região acometida quando possível3.
A técnica apresentada utiliza dois tipos de retalhos locorregionais para correção
de úlceras em região isquiática. O primeiro trata-se de retalho muscular confeccionado
com os músculos semimembranoso e bíceps femoral, que geram coxim protetor, além de
evitar espaço morto local. Para recobrir a área de fixação do retalho muscular, opta-se
pela utilização de retalho fasciocutâneo da face posterior da coxa.
Devido à alta incidência de lesões por pressão em paciente acamados e por gerar agravos
à saúde e piora da qualidade de vida desses pacientes, necessita-se implementação
de profilaxias e tratamentos mais adequados e com menor índice de recidiva.
OBJETIVO
Sendo assim, esse trabalho abrange a experiência inicial com a técnica de duplo retalho,
muscular e fasciocutâneo, do serviço de Cirurgia Plástica do Hospital São Paulo de
Muriaé, MG, Brasil.
RELATO DO CASO
Mulher, 23 anos, portadora de múltiplas sequelas devido à mielomeningocele, com cistostomia
e presença de úlcera profunda em região isquiática à direita. Segundo relatos da mãe,
a lesão possui cerca de sete anos de evolução, com várias tentativas malsucedidas
de tratamentos. Há aproximadamente um ano e meio, a paciente iniciou quadros de febre
vespertina diária e hiperemia em glúteo direito. Desde então, implementou-se, por
orientação de infectologista, tratamento com ciprofloxacino 500 mg, via oral, duas
vezes ao dia e alginato de cálcio tópico.
A paciente possuía lesão profunda e extensa em região isquiática à direita, com cerca
de oito centímetros em seu maior diâmetro e com exposição muscular subjacente, sem
sinais de tecidos desvitalizados ou secreções, porém com evolução crônica e sem possibilidade
de cicatrização sem intervenção cirúrgica apropriada. Não apresentava anemia e nem
leucocitose aos exames laboratoriais (Figura 1).
Figura 1 - Úlcera por pressão isquiática.
Figura 1 - Úlcera por pressão isquiática.
O procedimento foi realizado em 8 de abril de 2020.
Paciente em decúbito ventral sob anestesia geral, realizou-se assepsia e antissepsia,
marcação cirúrgica com azul de metileno, infiltração de solução anestésica contendo
epinefrina e debridamento com ressecção completa da bursa subjacente, uma vez que
a permanência da mesma está associada a alto índice de recidiva da lesão (Figura 2).
Figura 2 - Bursectomia total.
Figura 2 - Bursectomia total.
Procedeu-se com incisão que se estendia da margem inferior do glúteo direito à face
lateral da coxa ipsilateral e posterior confecção de retalho muscular utilizando-se
os músculos semimembranoso e bíceps femoral. Realizou-se rotação do retalho de forma
a acomodar tecido redundante em proeminência trocanteriana a fim de se evitar úlcera
trocantérica. Durante todo o procedimento, manteve-se hemostasia cuidadosa. Não havia
proeminências ósseas com necessidade de remoção. Após, fixou-se o retalho muscular
sobre a região isquiática (Figura 3).
Figura 3 - Rotação do retalho muscular.
Figura 3 - Rotação do retalho muscular.
Para o revestimento da área exposta, utilizou-se retalho fasciocutâneo por avançamento
da região posterior da coxa. Optou-se por inserção de dreno de Hemovac 4,8 mm com
fixação do mesmo por contra-abertura em face medial da coxa direita. A síntese foi
realizada por planos e finalizou-se com curativo local (Figura 4).
Figura 4 - À esquerda, avanço de retalho fasciocutâneo. À direita, síntese por planos e posicionamento
do dreno de sucção.
Figura 4 - À esquerda, avanço de retalho fasciocutâneo. À direita, síntese por planos e posicionamento
do dreno de sucção.
Manteve-se antibioticoterapia profilática durante a internação com cefazolina venosa
e a otimização do fluxo vascular foi feita com administração de pentoxifilina 400
mg via oral duas vezes ao dia.
No primeiro dia pós-operatório a paciente apresentava ferida operatória em bom aspecto,
sem sinais de hematoma ou secreções, débito de 250 ml em dreno, exames laboratoriais
sem queda significativa do hematócrito. No segundo dia pós-operatório recebeu alta
e a família foi orientada a manter o dreno em domicílio e retirar após oito dias em
ambiente hospitalar. A secreção pelo dreno apresentou queda progressiva e este foi
retirado com débito de 25 ml de secreção serosa em 24 horas no oitavo dia pós-operatório.
O orifício de exteriorização do dreno cicatrizou-se por segunda intenção. A paciente
apresentou adequada cicatrização de ferida operatória e sem necessidade de retirar
fios de sutura, já que a síntese foi realizada com fios absorvíveis.
DISCUSSÃO
Pacientes com sequelas de mielomeningocele são, na maioria das vezes, restritos ao
leito com comprometimentos neurológico e ortopédico graves. Dessa forma, estão mais
propícios ao desenvolvimento de úlceras por pressão. Dentre os locais acometidos,
a região isquiática é a mais frequente4.
São vários os procedimentos utilizados para o manejo cirúrgico desse tipo de lesão.
No entanto, a mobilidade diminuída dos pacientes acamados, além de técnicas, por vezes,
inadequadas, contribuem para a alta taxa de recidiva5,6.
Até o momento, a técnica demonstrada foi utilizada em dois pacientes, sendo o caso
descrito o mais recente. Na primeira experiência, o paciente tinha condições clínicas
semelhantes, como o fato de não deambularem, e seus resultados, em um ano e meio de
seguimento, foram satisfatórios.
Podemos citar como ponto fundamental para o sucesso a longo prazo o debridamento adequado,
com ressecção de tecidos até osso viável. Deve-se atentar para a ressecção total da
bursa subjacente às úlceras de pressão, uma vez que a permanência da mesma é fator
favorável à recidiva local. Também, o fato de se realizar hemostasia cuidadosa é fundamental
para a boa evolução dos retalhos e para não ocasionar um quadro anêmico em pacientes
já debilitados. Além disso, essa técnica conta com a associação de dois tipos de retalhos,
o muscular e o fasciocutâneo. Por se tratar de uma paciente acamada, que não deambula
e, dessa forma, mantém pressão constante sobre as superfícies de pele, optou-se por
uma técnica cirúrgica que fornece proteção muscular, preservando-se sua irrigação
arterial, associada ao retalho fasciocutâneo por formar um coxim maior, aumentando
a barreira de contato entre proeminência óssea e pele7.
CONCLUSÃO
A técnica cirúrgica acima, utilizando-se retalho muscular duplo e retalho fasciocutâneo,
concomitante à ressecção total da bursa sob a úlcera isquiática, é eficaz e reprodutível,
com resultados satisfatórios em curto e longo prazo.
Um maior número de pacientes está sendo submetido à mesma técnica para aprimorar as
estatísticas e confirmar os resultados aqui dispostos.
REFERÊNCIAS
1. Batista KT, Pereira ICC, Romano ACL. Tratamento cirúrgico de úlcera por pressão na
unidade de Pediatria de hospital de reabilitação. Rev Bras Cir Plást. 2017;32(4):570-8.
2. Borghardt AT, Prado TN, Bicudo SDS, Castro DS, Bringuente MEO. Úlcera por pressão
em pacientes críticos: incidência e fatores associados. Rev Bras Enferm. 2016;69(3):460-7.
3. Ferreira FR, Bexiga FP, Martins VVM, Favero FM, Sartor CD, Artilheiro MC, et al. Independência
funcional de crianças de um a quatro anos com mielomeningocele. Fisioter Pesqui. 2018;25(2):196-201.
4. Flávio Júnior WF, Bernardes BR, Silva TAS, Capanema HXM, Nishimoto F, Costa PR. Reconstrução
complexa de regiões glútea e perineal após ressecção de extenso carcinoma escamocelular
de borda anal: relato de caso. Rev Bras Cir Plást. 2016;31(4):586-90.
5. McKinley WO, Jackson AB, Cardenas DD, DeVivo MJ. Long-term medical complications after
traumatic spinal cord injury: a regional model systems analysis. Arch Phys Med Rehabil.
1999;80(11):1402-10.
6. Milchelski DA, Mendes RRS, Freitas FR, Zaninetti G, Moneiro Júnior AA, Gemperli R.
Protocolo de internação breve para tratamento cirúrgico de lesões por pressão: preparo
ambulatorial e cobertura em tempo único. Rev Col Bras Cir. 2017;44(6):574-81.
7. Salomão RM, Cervante TP, Salomão JF, Leon SV. The mortality rate after hospital discharge
in patients with myelomeningocele decreased after implementation of mandatory flour
fortification with folic acid. Arq Neuropsiquiatr. 2017;75(1):20-4.
1. Hospital São Paulo, Departamento de Cirurgia Plástica, Muriaé, MG, Brasil
Autor correspondente: Flávia Mesquita Soares, Rua João Marcelo Santoni, 296, Parque Renato Maia, Guarulhos, SP, Brasil., CEP:
07114-120, E-mail: flavia.soares.m93@gmail.com
Artigo submetido: 11/09/2020.
Artigo aceito: 15/10/2021.
Conflitos de interesse: não há.