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Case Report - Year2021 - Volume36 - Issue 2

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2021RBCP0070

RESUMO

As infeções de pele e tecidos moles constituem um grupo de patologias de elevada prevalência. A fasceíte necrotizante é a infeção rápida e destrutiva do tecido subcutâneo e fáscia superficial com elevada morbimortalidade. Mais frequente na região perineal é de ocorrência rara na região periorbitária. O relato deste caso ilustra um caso de necrose palpebral bilateral após traumatismo cranioencefálico leve com escoriações. Foi realizado tratamento clínico intensivo e desbridamento cirúrgico da área afetada. Na primeira fase da reconstrução palpebral foi usada matriz de regeneração dérmica. Este substituto cutâneo inicialmente descrito para queimaduras se reveste atualmente de grande importância em cirurgia plástica visando uma melhor e mais rápida cicatrização das feridas. Posteriormente, realizou-se a autoenxertia cutânea tendo-se obtido um bom resultado estético e funcional.

Palavras-chave: Necrose; Anormalidades da pele; Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos; Derme acelular; Celulite orbitária.

ABSTRACT

Skin and soft tissue infections are a group of pathologies of high prevalence. Necrotizing fasciitis is a rapid and destructive infection of the subcutaneous tissue and superficial fascia with high morbidity and mortality. It is frequent in the perineal region and of rare occurrence in the periorbital region. This report illustrates a case of bilateral eyelid necrosis after mild head trauma with abrasions. Intensive clinical treatment and surgical debridement of the affected area were performed. In the first phase of eyelid reconstruction, a dermal regeneration matrix was used. This cutaneous substitute initially described for burns is currently of great importance in plastic surgery, aiming to heal wounds better. Subsequently, cutaneous self-grafting was performed, and a good aesthetic and functional result was obtained.

Keywords: Necrosis; Skin abnormalities; Reconstructive surgical procedures; Acellular dermis; Orbital cellulitis.


INTRODUÇÃO

As infeções de pele e tecidos moles constituem um grupo de patologias de elevada prevalência, com uma miríade de apresentações clínicas e graus de severidade. Estas podem ir de uma foliculite, passando por uma celulite até a uma fasceíte necrotizante dependendo de quão profunda foi a invasão microbiana.

O desafio para o cirurgião plástico é a diferenciação dos casos que necessitam de um tratamento mais agressivo como a fasceíte necrotizante. A fasceíte necrotizante é a infeção rápida e destrutiva do tecido subcutâneo e fáscia superficial com elevada taxa de morbimortalidade1.

Inicialmente descrita por Hipócrates, no século V a.C., ficou conhecida como gangrena hospitalar durante a Guerra Civil Americana. Em 1883, um cirurgião francês batizou-a com o seu próprio nome, gangrena de Fournier. Em 1294, Meleney designou-a de fasceíte necrotizante2.

Mais frequente na região perineal e extremidades inferiores, é de ocorrência rara na região periorbitária devido ao seu rico suprimento vascular1.

A reparação dos defeitos resultantes segue a escada da reconstrução tendo como auxílio inovador o uso da matriz de regeneração dérmica.

Produto da engenharia de tecidos, as matrizes dérmicas são substitutos cutâneos que mimetizam a derme e/ou a epiderme promovendo uma melhor cicatrização. Podem ter origem biológica e/ou sintética e o seu uso pode ser temporário ou permanente.

Um exemplo é a matriz usada no caso relatado: PELNAC®. Esta é constituída por uma camada de colágeno derivada de tendão porcino e uma fina camada de silicone.

Posteriormente a reconstrução poderá ser finalizada com a autoenxertia cutânea sobre a neoderme.

RELATO DE CASO

Paciente de 66 anos, obesa, hipertensa e diabética com história de queda de uma escada com traumatismo craniano leve de que só resultaram escoriações na face e região occipital.

Após 5 dias iniciou um quadro de dor, hiperemia, edema e calor, tendo sido diagnosticada como celulite de face. Iniciou tratamento antibiótico endovenoso com oxacilina.

Após 48 horas foi transferida para o Hospital Municipal Souza Aguiar (HMSA) em mau estado geral, desidratada, embora hemodinamicamente estável. Apresentava edema e hiperemia de metade superior da face. Com intensa leucocitose com neutrofilia (leucócitos [leuc.] 38.000 com 8% bastões). A tomografia de face evidenciou intensa infiltração do subcutâneo com extensão até a região cervical sem comprometimento dos globos oculares. Iniciou tratamento com vancomicina e meropenem.

Evoluiu desfavoravelmente com piora do estado geral, aumento da leucocitose (leuc. 60.400 com 22% bastões) e agudização da insuficiência renal (creatinina 5,9), iniciando hemodiálise sob constante vigilância na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e foi prescrito o tratamento antibiótico com linezolida.

Neste momento da internação, evoluiu com o aparecimento de necrose palpebral bilateral com flutuação e área adjacente violácea. Após avaliação pela cirurgia plástica e melhoria clínica e laboratorial da paciente, optou-se pela realização de desbridamento cirúrgico das áreas de necrose (Figuras 1 e 2).

Figura 1 - Necrose palpebral bilateral - visão frontal.

Figura 2 - Necrose palpebral bilateral - visão oblíqua.

A necrose envolvia as camadas superficiais das pálpebras superiores bilaterais e inferior à direita comprometendo até a camada muscular (Figura 3). Realizou-se a cobertura dos defeitos das pálpebras superiores com matriz de regeneração dérmica PELNAC® (Figura 4).

Figura 3 - Desbridamento cirúrgico da área de necrose.

Figura 4 - Reconstrução palpebral com a matriz dérmica.

Após 15 dias da cirurgia inicial realizou-se a autoenxertia cutânea das pálpebras superiores tendo como área doadora a face interna do braço esquerdo (Figura 5).

Figura 5 - Segunda etapa da reconstrução palpebral com autoenxertia cutânea.

Com uma boa evolução clínica e melhoria dos parâmetros infecciosos, a paciente recebeu alta hospitalar trinta dias após a primeira intervenção pela cirurgia plástica (Figura 6).

Figura 6 - Pós-operatório de 30 dias do desbridamento cirúrgico inicial.

É seguida, atualmente, no ambulatório de cirurgia plástica do HMSA com uma boa recuperação estética e funcional (Figuras 7 e 8).

Figura 7 - Pós-operatório de 60 dias do desbridamento cirúrgico inicial.

Figura 8 - 90 dias de pós-operatório do desbridamento cirúrgico e boa oclusão palpebral.

DISCUSSÃO

A infeção de tecidos moles resulta de dois processos fundamentais: a invasão microbiana e a interação entre as defesas do organismo e o invasor.

A quebra da barreira cutânea pode dever-se a mordeduras, lacerações, feridas ou queimaduras que permitem a invasão bacteriana. Depois desta, ocorre a resposta inflamatória do organismo1,2.

Comum a todas as infeções de pele encontram-se: edema, calor, rubor e dor tornando difícil a diferenciação entre uma celulite periorbitária e a própria fasceíte necrotizante2,3.

Na fase inicial de internação no HMSA o diagnóstico presumível era de celulite periorbitária. No presente caso, foi esta a apresentação inicial da paciente; embora calculado a posteriori, podemos verificar que o LRINEC (laboratory risk indicator for necrotizing fasciitis) proposto por Wong era sugestivo de fasceíte necrotizante. Este índice por pontos engloba a leucocitose, aumento de PCR, anemia, hiponatremia, hiperglicemia e aumento de creatinina4.

A fasceíte necrotizante também ocorre com mais frequência em pacientes com algum grau de imunossupressão devido ao alcoolismo, diabetes, doença reumatológica ou maligna, ou uso de corticoterapia2-4. A paciente era diabética.

Num segundo momento ocorreu uma piora da sua condição clínica com febre, hipotensão, taquicardia e insuficiência renal aguda com o desenvolvimento de choque séptico o que pode ocorrer como resposta a infeções mais profundas2-5.

A infeção progrediu produzindo uma aparência violácea da pele, o aparecimento de flutuação e a posterior necrose cutânea o que é compatível com o curso habitual desta afeção; também o fato de ter uma apresentação bilateral corrobora este diagnóstico4,5.

Esta patologia pode ser dividida consoante os microrganismos causadores. A tipo I deve-se a uma infeção polimicrobiana com uma mistura de anaeróbios, bacilos Gram-negativos e enterococos e a tipo II representada fundamentalmente pela infeção por Streptococos beta hemolíticos2-4. Devido à certa indefinição diagnóstica não se realizou a cultura do material excisado, o que poderia ter confirmado em definitivo esta enfermidade.

O defeito resultante envolvia toda a pálpebra superior bilateralmente até à camada muscular, optando-se pela colocação de matriz de regeneração dérmica de origem porcina para facilitar a cicatrização e com vista a obtenção de um melhor leito para posterior enxertia cutânea6,7.

Na década de 70, do século XX, deu-se o aparecimento da matriz dérmica INTEGRA® para o tratamento dos grandes queimados através dos estudos de Yannas e Burke8. Aperfeiçoada ao longo da década de 80 teve a sua aprovação pela FDA, em 19968.

Suzuki et al.9, já no início da década de 90, publicaram um estudo sobre melhoramentos que conduziram na INTEGRA®, culminando na matriz PELNAC®. Esta atuava sob os mesmos princípios, mas com vantagens, como a menor antigenicidade e a maior porosidade da membrana10.

A matriz de regeneração dérmica PELNAC® é constituída por duas camadas: a primeira camada é formada por uma lâmina de silicone, que atua temporariamente como a epiderme, prevenindo a perda de líquido e a invasão microbiana; e a segunda camada é constituída por uma estrutura porosa, composta por ligações cruzadas de colágeno porcino. Esta estrutura é infiltrada pelos fibroblastos que sintetizam a nova derme, bastante semelhante à derme humana6.

Num segundo tempo, realizou-se a autoenxertia cutânea sobre uma derme viável, o que facilitou a pega dos enxertos. Ainda que com um edema residual no pós-operatório, a paciente não apresentou sequelas no acompanhamento posterior com a obtenção de um bom resultado estético e funcional.

CONCLUSÃO

As infeções de tecidos moles são comuns na prática do cirurgião plástico. É necessário um elevado grau de suspeição para os casos mais graves com provável comprometimento sistêmico, sendo exemplo a fasceíte necrotizante.

Quando diagnosticada é essencial a antibioticoterapia endovenosa, estabilização hemodinâmica e desbridamento cirúrgico.

Nos defeitos resultantes desta enfermidade podemos recorrer ao auxílio da matriz de regeneração dérmica para a promoção de uma melhor cicatrização com menor morbidade para o paciente e recuperação mais rápida da função.

A matriz de regeneração dérmica tem-se constituído como um auxiliar importante na prática do cirurgião plástico, possibilitando uma melhor recuperação funcional e estética nas mais diversas áreas, sendo imperativo a universalização do seu acesso.

REFERÊNCIAS

1. Lazzeri D, Lazzeri S, Figus M, Tascini C, Bocci G, Colizzi L, et al. Periorbital necrotising fasciitis. Br J Ophthalmol. 2010 Dez;94(12):1577-85.

2. Amrith S, Pai VH, Ling WW. Periorbital necrotizing fasciitis - a review. Acta Ophthalmol. 2013 Nov;91(7):596-603.

3. Costa I, Cabral ALSV, Pontes SS, Amorim JF. Fasceíte necrosante: revisão com enfoque nos aspectos dermatológicos. An Bras Dermatol. 2004;79(2):211-24.

4. Hakkarainen T, Kopari NM, Pham TN, Evans HL. Necrotizing soft tissue infections: review and current concepts in treatment, systems of care, and outcomes. Curr Probl Surg. 2014 Ago;51(8):344-62.

5. Overholt E, Flint PW, Overholt EL, Murakami CS. Necrotizing fasciitis of the eyelids. Otolaryngol Head Neck Surg. 1992 Abr;106(4):339-44.

6. Cruz LGB. Uso de matriz dérmica acelular heteróloga em cirurgia plástica reparadora. Rev Bras Cir Plást. 2016;31(1):88-94.

7. Ferreira M, Paggiaro AO, Isaac C, Teixeira Neto N, Santos GB. Substitutos cutâneos: conceitos atuais e proposta de classificação. Rev Bras Cir Plást. 2011;26(4):696-702.

8. Moiemen N, Vlachou E, Staiano J, Thawy Y, Frame JD. Reconstructive surgery with Integra dermal regeneration template: histologic study, clinical evaluation, and current practice. Plast Reconstr Surg. 2006 Jun;117(7 Supl 1):160-74.

9. Suzuki S, Matsuda K, Isshiki N, Tamada Y, Ikada Y. Experimental study of a newly developed bilayer artificial skin. Biomaterials. 1990 Jul;11(5):356-60.

10. Scuderi N, Fioramonti P, Fanello B, Fino P, Spalvieri C. The use of dermal regeneration template (Pelnac(r)) in a complex upper limb trauma: the first Italian case report. Eur Rev Med Pharmacol Sci. 2019 Jul;23(13):5531-4.











1. Hospital Federal Ipanema, Serviço Cirurgia Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2. Hospital Souza Aguiar, Serviço Cirurgia Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Instituição: Hospital Federal Ipanema, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Autor correspondente: Carlos Miguel Pereira, Avenida Veríssimo de Amaral, 580, Jardim Europa, Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 91360-470. E-mail: carlosmppereira@hotmail.com

Artigo submetido: 09/12/2019.
Artigo aceito: 29/02/2020.

Conflitos de interesse: não há.

COLABORAÇÕES

CMP Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados, Concepção e desenho do estudo, Redação - Preparação do original

IDB Redação - Revisão e Edição, Supervisão

KAB Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados, Supervisão

 

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