INTRODUÇÃO
As infeções de pele e tecidos moles constituem um grupo de patologias de elevada prevalência,
com uma miríade de apresentações clínicas e graus de severidade. Estas podem ir de
uma foliculite, passando por uma celulite até a uma fasceíte necrotizante dependendo
de quão profunda foi a invasão microbiana.
O desafio para o cirurgião plástico é a diferenciação dos casos que necessitam de
um tratamento mais agressivo como a fasceíte necrotizante. A fasceíte necrotizante
é a infeção rápida e destrutiva do tecido subcutâneo e fáscia superficial com elevada
taxa de morbimortalidade1.
Inicialmente descrita por Hipócrates, no século V a.C., ficou conhecida como gangrena
hospitalar durante a Guerra Civil Americana. Em 1883, um cirurgião francês batizou-a
com o seu próprio nome, gangrena de Fournier. Em 1294, Meleney designou-a de fasceíte
necrotizante2.
Mais frequente na região perineal e extremidades inferiores, é de ocorrência rara
na região periorbitária devido ao seu rico suprimento vascular1.
A reparação dos defeitos resultantes segue a escada da reconstrução tendo como auxílio
inovador o uso da matriz de regeneração dérmica.
Produto da engenharia de tecidos, as matrizes dérmicas são substitutos cutâneos que
mimetizam a derme e/ou a epiderme promovendo uma melhor cicatrização. Podem ter origem
biológica e/ou sintética e o seu uso pode ser temporário ou permanente.
Um exemplo é a matriz usada no caso relatado: PELNAC®. Esta é constituída por uma camada de colágeno derivada de tendão porcino e uma fina
camada de silicone.
Posteriormente a reconstrução poderá ser finalizada com a autoenxertia cutânea sobre
a neoderme.
RELATO DE CASO
Paciente de 66 anos, obesa, hipertensa e diabética com história de queda de uma escada
com traumatismo craniano leve de que só resultaram escoriações na face e região occipital.
Após 5 dias iniciou um quadro de dor, hiperemia, edema e calor, tendo sido diagnosticada
como celulite de face. Iniciou tratamento antibiótico endovenoso com oxacilina.
Após 48 horas foi transferida para o Hospital Municipal Souza Aguiar (HMSA) em mau
estado geral, desidratada, embora hemodinamicamente estável. Apresentava edema e hiperemia
de metade superior da face. Com intensa leucocitose com neutrofilia (leucócitos [leuc.]
38.000 com 8% bastões). A tomografia de face evidenciou intensa infiltração do subcutâneo
com extensão até a região cervical sem comprometimento dos globos oculares. Iniciou
tratamento com vancomicina e meropenem.
Evoluiu desfavoravelmente com piora do estado geral, aumento da leucocitose (leuc.
60.400 com 22% bastões) e agudização da insuficiência renal (creatinina 5,9), iniciando
hemodiálise sob constante vigilância na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e foi
prescrito o tratamento antibiótico com linezolida.
Neste momento da internação, evoluiu com o aparecimento de necrose palpebral bilateral
com flutuação e área adjacente violácea. Após avaliação pela cirurgia plástica e melhoria
clínica e laboratorial da paciente, optou-se pela realização de desbridamento cirúrgico
das áreas de necrose (Figuras 1 e 2).
Figura 1 - Necrose palpebral bilateral - visão frontal.
Figura 1 - Necrose palpebral bilateral - visão frontal.
Figura 2 - Necrose palpebral bilateral - visão oblíqua.
Figura 2 - Necrose palpebral bilateral - visão oblíqua.
A necrose envolvia as camadas superficiais das pálpebras superiores bilaterais e inferior
à direita comprometendo até a camada muscular (Figura 3). Realizou-se a cobertura dos defeitos das pálpebras superiores com matriz de regeneração
dérmica PELNAC® (Figura 4).
Figura 3 - Desbridamento cirúrgico da área de necrose.
Figura 3 - Desbridamento cirúrgico da área de necrose.
Figura 4 - Reconstrução palpebral com a matriz dérmica.
Figura 4 - Reconstrução palpebral com a matriz dérmica.
Após 15 dias da cirurgia inicial realizou-se a autoenxertia cutânea das pálpebras
superiores tendo como área doadora a face interna do braço esquerdo (Figura 5).
Figura 5 - Segunda etapa da reconstrução palpebral com autoenxertia cutânea.
Figura 5 - Segunda etapa da reconstrução palpebral com autoenxertia cutânea.
Com uma boa evolução clínica e melhoria dos parâmetros infecciosos, a paciente recebeu
alta hospitalar trinta dias após a primeira intervenção pela cirurgia plástica (Figura 6).
Figura 6 - Pós-operatório de 30 dias do desbridamento cirúrgico inicial.
Figura 6 - Pós-operatório de 30 dias do desbridamento cirúrgico inicial.
É seguida, atualmente, no ambulatório de cirurgia plástica do HMSA com uma boa recuperação
estética e funcional (Figuras 7 e 8).
Figura 7 - Pós-operatório de 60 dias do desbridamento cirúrgico inicial.
Figura 7 - Pós-operatório de 60 dias do desbridamento cirúrgico inicial.
Figura 8 - 90 dias de pós-operatório do desbridamento cirúrgico e boa oclusão palpebral.
Figura 8 - 90 dias de pós-operatório do desbridamento cirúrgico e boa oclusão palpebral.
DISCUSSÃO
A infeção de tecidos moles resulta de dois processos fundamentais: a invasão microbiana
e a interação entre as defesas do organismo e o invasor.
A quebra da barreira cutânea pode dever-se a mordeduras, lacerações, feridas ou queimaduras
que permitem a invasão bacteriana. Depois desta, ocorre a resposta inflamatória do
organismo1,2.
Comum a todas as infeções de pele encontram-se: edema, calor, rubor e dor tornando
difícil a diferenciação entre uma celulite periorbitária e a própria fasceíte necrotizante2,3.
Na fase inicial de internação no HMSA o diagnóstico presumível era de celulite periorbitária.
No presente caso, foi esta a apresentação inicial da paciente; embora calculado a
posteriori, podemos verificar que o LRINEC (laboratory risk indicator for necrotizing fasciitis) proposto por Wong era sugestivo de fasceíte necrotizante. Este índice por pontos
engloba a leucocitose, aumento de PCR, anemia, hiponatremia, hiperglicemia e aumento
de creatinina4.
A fasceíte necrotizante também ocorre com mais frequência em pacientes com algum grau
de imunossupressão devido ao alcoolismo, diabetes, doença reumatológica ou maligna,
ou uso de corticoterapia2-4. A paciente era diabética.
Num segundo momento ocorreu uma piora da sua condição clínica com febre, hipotensão,
taquicardia e insuficiência renal aguda com o desenvolvimento de choque séptico o
que pode ocorrer como resposta a infeções mais profundas2-5.
A infeção progrediu produzindo uma aparência violácea da pele, o aparecimento de flutuação
e a posterior necrose cutânea o que é compatível com o curso habitual desta afeção;
também o fato de ter uma apresentação bilateral corrobora este diagnóstico4,5.
Esta patologia pode ser dividida consoante os microrganismos causadores. A tipo I
deve-se a uma infeção polimicrobiana com uma mistura de anaeróbios, bacilos Gram-negativos
e enterococos e a tipo II representada fundamentalmente pela infeção por Streptococos
beta hemolíticos2-4. Devido à certa indefinição diagnóstica não se realizou a cultura do material excisado,
o que poderia ter confirmado em definitivo esta enfermidade.
O defeito resultante envolvia toda a pálpebra superior bilateralmente até à camada
muscular, optando-se pela colocação de matriz de regeneração dérmica de origem porcina
para facilitar a cicatrização e com vista a obtenção de um melhor leito para posterior
enxertia cutânea6,7.
Na década de 70, do século XX, deu-se o aparecimento da matriz dérmica INTEGRA® para o tratamento dos grandes queimados através dos estudos de Yannas e Burke8. Aperfeiçoada ao longo da década de 80 teve a sua aprovação pela FDA, em 19968.
Suzuki et al.9, já no início da década de 90, publicaram um estudo sobre melhoramentos que conduziram
na INTEGRA®, culminando na matriz PELNAC®. Esta atuava sob os mesmos princípios, mas com vantagens, como a menor antigenicidade
e a maior porosidade da membrana10.
A matriz de regeneração dérmica PELNAC® é constituída por duas camadas: a primeira camada é formada por uma lâmina de silicone,
que atua temporariamente como a epiderme, prevenindo a perda de líquido e a invasão
microbiana; e a segunda camada é constituída por uma estrutura porosa, composta por
ligações cruzadas de colágeno porcino. Esta estrutura é infiltrada pelos fibroblastos
que sintetizam a nova derme, bastante semelhante à derme humana6.
Num segundo tempo, realizou-se a autoenxertia cutânea sobre uma derme viável, o que
facilitou a pega dos enxertos. Ainda que com um edema residual no pós-operatório,
a paciente não apresentou sequelas no acompanhamento posterior com a obtenção de um
bom resultado estético e funcional.
CONCLUSÃO
As infeções de tecidos moles são comuns na prática do cirurgião plástico. É necessário
um elevado grau de suspeição para os casos mais graves com provável comprometimento
sistêmico, sendo exemplo a fasceíte necrotizante.
Quando diagnosticada é essencial a antibioticoterapia endovenosa, estabilização hemodinâmica
e desbridamento cirúrgico.
Nos defeitos resultantes desta enfermidade podemos recorrer ao auxílio da matriz de
regeneração dérmica para a promoção de uma melhor cicatrização com menor morbidade
para o paciente e recuperação mais rápida da função.
A matriz de regeneração dérmica tem-se constituído como um auxiliar importante na
prática do cirurgião plástico, possibilitando uma melhor recuperação funcional e estética
nas mais diversas áreas, sendo imperativo a universalização do seu acesso.
REFERÊNCIAS
1. Lazzeri D, Lazzeri S, Figus M, Tascini C, Bocci G, Colizzi L, et al. Periorbital necrotising
fasciitis. Br J Ophthalmol. 2010 Dez;94(12):1577-85.
2. Amrith S, Pai VH, Ling WW. Periorbital necrotizing fasciitis - a review. Acta Ophthalmol.
2013 Nov;91(7):596-603.
3. Costa I, Cabral ALSV, Pontes SS, Amorim JF. Fasceíte necrosante: revisão com enfoque
nos aspectos dermatológicos. An Bras Dermatol. 2004;79(2):211-24.
4. Hakkarainen T, Kopari NM, Pham TN, Evans HL. Necrotizing soft tissue infections: review
and current concepts in treatment, systems of care, and outcomes. Curr Probl Surg.
2014 Ago;51(8):344-62.
5. Overholt E, Flint PW, Overholt EL, Murakami CS. Necrotizing fasciitis of the eyelids.
Otolaryngol Head Neck Surg. 1992 Abr;106(4):339-44.
6. Cruz LGB. Uso de matriz dérmica acelular heteróloga em cirurgia plástica reparadora.
Rev Bras Cir Plást. 2016;31(1):88-94.
7. Ferreira M, Paggiaro AO, Isaac C, Teixeira Neto N, Santos GB. Substitutos cutâneos:
conceitos atuais e proposta de classificação. Rev Bras Cir Plást. 2011;26(4):696-702.
8. Moiemen N, Vlachou E, Staiano J, Thawy Y, Frame JD. Reconstructive surgery with Integra
dermal regeneration template: histologic study, clinical evaluation, and current practice.
Plast Reconstr Surg. 2006 Jun;117(7 Supl 1):160-74.
9. Suzuki S, Matsuda K, Isshiki N, Tamada Y, Ikada Y. Experimental study of a newly developed
bilayer artificial skin. Biomaterials. 1990 Jul;11(5):356-60.
10. Scuderi N, Fioramonti P, Fanello B, Fino P, Spalvieri C. The use of dermal regeneration
template (Pelnac(r)) in a complex upper limb trauma: the first Italian case report.
Eur Rev Med Pharmacol Sci. 2019 Jul;23(13):5531-4.
1. Hospital Federal Ipanema, Serviço Cirurgia Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2. Hospital Souza Aguiar, Serviço Cirurgia Plástica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Autor correspondente: Carlos Miguel Pereira, Avenida Veríssimo de Amaral, 580, Jardim Europa, Porto Alegre, RS, Brasil. CEP:
91360-470. E-mail: carlosmppereira@hotmail.com
Artigo submetido: 09/12/2019.
Artigo aceito: 29/02/2020.
Conflitos de interesse: não há.
COLABORAÇÕES
CMP Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados, Concepção e desenho do estudo,
Redação - Preparação do original
IDB Redação - Revisão e Edição, Supervisão
KAB Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados, Supervisão