INTRODUÇÃO
No final de 2019, o mundo viu surgir uma nova síndrome respiratória denominada Covid-19,
causada por um novo tipo de coronavírus, o Sars-CoV-2. Em março de 2020, a Organização
Mundial de Saúde classificou essa nova doença como uma pandemia, que tem causado impactos
de magnitude ainda imensuráveis1. Nos últimos meses, houve uma notória produção científica que procurou compreender
melhor a fisiopatologia dessa nova doença, a origem e sequenciamento genético do SARS-CoV-2,
características da sua disseminação, patogenia, meios de diagnóstico, protocolos de
suporte e tratamento dos doentes2.
Essa pandemia revelou que o mundo não estava preparado para uma crise de tamanha proporção.
A escassez de insumos necessários (equipamentos de proteção individual, ventiladores
mecânicos), estrutura sanitária (disponibilidade de leitos, sobretudo aqueles de terapia
intensiva) e recursos humanos treinados (médicos, equipe de enfermagem, fisioterapia,
etc.) é uma constatação frequente no enfrentamento da Covid-193. Muito além de ser apenas uma crise sanitária, a pandemia expõe a cirurgia plástica
a um novo desafio: como lidar com pacientes que necessitam de tratamento cirúrgico
no contexto de enfrentamento deste novo vírus?
A velocidade de disseminação do novo coronavírus foi superior à das medidas de precaução
e preparo dos agentes de saúde. Inúmeros esforços simultâneos foram realizados, tais
como distanciamento social, restrições de deslocamento, suspensão de atendimentos
ambulatoriais não prioritários, interrupção de cirurgias eletivas e manutenção apenas
de cirurgias de urgência/emergência ou casos oncológicos, além do estímulo ao uso
de equipamentos de proteção individual (EPIs) e treinamento das equipes. Apesar de
tudo isso, tem havido disseminação intrahospitalar do Sars-CoV-2 ou mesmo a admissão
de pacientes já infectados com o novo coronavírus, não só no Brasil como no mundo1.
É notória a importância da disseminação viral por pacientes, acompanhantes e profissionais
de saúde assintomáticos. Estima-se que cerca de 80% das transmissões são advindas
deste grupo4. Seguindo as orientações de autoridades sanitárias nacionais e internacionais, houve
a recomendação para suspensão de cirurgias eletivas e dos atendimentos não prioritários
em consultório, além de adesão ao distanciamento social. Tais medidas, além de reduzir
a exposição dos pacientes ao risco da infecção, também aumenta a disponibilidade de
leitos de enfermaria e de terapia intensiva para o enfrentamento da crise.
Neste artigo, relatamos o caso de um paciente com ferida complexa inguinal, tratado
pela equipe de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP). O paciente evoluiu com
insuficiência respiratória aguda, com necessidade de cuidados intensivos. A confirmação
diagnóstica de Covid-19 foi realizada “post mortem” após exame de RT-PCR positivo para o novo coronavírus.
RELATO DE CASO
Homem de 57 anos com doença arterial obstrutiva periférica, em pós-operatório de bypass femoro-poplíteo direito com prótese, foi internado dia 29/02/2020 devido à infecção
da prótese e iniciado antibioticoterapia endovenosa. Como antecedentes cirúrgicos,
foi submetido à amputação infrapatelar esquerda, em 2015; três bypass femoro-poplíteos à direita (2015, 2017, 2018); e, reabordagem desse by-pass, em 13/02/2020, com achado de prótese de PTFE trombosada, com sinais de infecção.
No dia 05/03/2020, a equipe da cirurgia vascular realizou exploração cirúrgica inguinal
direita com achados de infecção local, seguido de desbridamento cirúrgico, resultando
em uma ferida inguinal. No dia seguinte, o paciente evoluiu com obstrução arterial
aguda do membro inferior direito (MID), sendo tratado por meio de tromboembolectomia
com cateter, seguido de retorno do pulso no membro acometido. Contudo, houve piora
progressiva da perfusão tecidual e no dia 13/03/2020 foi realizado amputação suprapatelar
direita.
A equipe da cirurgia plástica, que já estava em regime de contingenciamento e remanejamento
com o mínimo possível de exposição individual devido à pandemia, foi convocada para
avaliar a ferida inguinal direita, no dia 31/03/2020. Ao exame, identificamos uma
ferida complexa de 10cm x 8cm, com presença de esfacelos e áreas com tecido de granulação,
sem sinais de infecção e ausência de exposição de grandes vasos (Figura 1). Optou-se pelo tratamento com desbridamento cirúrgico associado com terapia por
pressão negativa (TPN) para preparo do leito da ferida5,6 (Figura 2).
Figura 1 - Ferida em região inguinal direita com presença de esfacelos e áreas com tecido de
granulação.
Figura 1 - Ferida em região inguinal direita com presença de esfacelos e áreas com tecido de
granulação.
Figura 2 - Aplicação de terapia por pressão negativa sobre a ferida.
Figura 2 - Aplicação de terapia por pressão negativa sobre a ferida.
Após três dias, o paciente apresentou pico febril, taquicardia e taquipneia, evoluindo
com síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e necessidade de cuidados intensivos.
Após transferência para o centro de terapia intensiva (CTI), foi realizado intubação
orotraqueal e o paciente ficou em isolamento respiratório e de contato, de acordo
com o protocolo do HCFMRP-USP, durante a pandemia de Covid-19. A radiografia de tórax
realizada no leito demonstrou infiltrado intersticial bilateral (Figura 3). Segundo o sistema SAPS 3, o cálculo da probabilidade de óbito à admissão no CTI
foi de 90,98%7.
Figura 3 - Imagem da radiografia de tórax feita no leito mostrando infiltrado intersticial bilateral.
Figura 3 - Imagem da radiografia de tórax feita no leito mostrando infiltrado intersticial bilateral.
Devido à suspeita de SRAG pelo novo coronavírus, foi colhido amostra para RT-PCR do
Sars-CoV-2, e foi associado ao tratamento as medicações cloroquina e azitromicina,
conforme protocolo do HCFMRP-USP. No dia 04/04/2020, após manutenção de platô febril
refratário às medidas farmacológicas, o paciente evoluiu com hipotensão e necessidade
de droga vasoativa, mantendo ventilação protetora.
Apesar do tratamento intensivo e das medidas farmacológicas, o paciente manteve instabilidade
hemodinâmica com droga vasoativa em ascensão, sendo diagnosticado choque séptico refratário.
Simultaneamente, apresentou piora da função renal com indicação de terapia renal substitutiva,
porém sem condições hemodinâmicas para hemodiálise.
A evolução do quadro clínico foi desfavorável, com parada cardíaca em atividade elétrica
sem pulso. Optou-se pela não reanimação devido à refratariedade das medidas instituídas,
sendo então declarado óbito no dia 05/04/2020. O resultado do exame RT-PCR para o
novo coronavírus foi positivo, este foi liberado dois dias após a morte.
Dados de revisão de prontuário revelam que este paciente dividiu o quarto de enfermaria
com outro paciente, que também evoluiu com SRAG no dia 02/04/2020, também com necessidade
de cuidados intensivos e intubação orotraqueal. Tal paciente também teve diagnóstico
de infecção pelo novo coronavírus confirmado por RT-PCR.
DISCUSSÃO
O novo cenário apresentado pela pandemia do coronavírus levou a uma série de restrições
sociais e mudanças nas rotinas dos hospitais1. A rediscussão e elaboração continuada de protocolos de segurança do paciente e da
equipe de saúde são necessários, uma vez que cerca de 80% dos infectados pelo Sars-
CoV-2 podem ser assintomáticos, sendo, portanto, fonte relevante de transmissão4.
A análise deste relato permite supor que o paciente provavelmente contraiu o novo
coronavírus dentro do próprio hospital, pois o mesmo encontrava-se internado pelo
período dos 35 dias anteriores à evolução para insuficiência respiratória. Esse fato,
juntamente com sua evolução desfavorável, corrobora a orientação de minimizar ao máximo
as internações e os procedimentos cirúrgicos a fim de promover maior segurança ao
paciente e a equipe de saúde1. Além disso, a situação reforça a necessidade do uso de EPIs e reforço das medidas
de higiene8. Outro fator importante a ser considerado seria o remanejamento das equipes assistentes
e dos médicos residentes, a fim de obter uma menor exposição e reduzir a chance de
infecção por parte da equipe médica9. Até a finalização da redação deste artigo, nenhum membro da nossa equipe manifestou
quadro sugestivo de contaminação pelo novo coronavírus.
CONCLUSÃO
Como relatado neste caso, pacientes em regime de internação hospitalar estão susceptíveis
à infecção pelo novo coronavírus e podem configurar grupo de maior de risco, uma vez
que muitos deles já se encontram debilitados. A cirurgia plástica também está incluída
nesse contexto, uma vez que realiza tratamento de pacientes com feridas complexas,
que podem apresentar múltiplas comorbidades e que podem necessitar de internações
por períodos prolongados. Ressaltamos a necessidade de proteção dos pacientes e dos
profissionais, com uso de EPIs para minimizar o risco de contaminação pelo novo coronavírus,
causador da pandemia Covid-19.
REFERÊNCIAS
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ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1001/jamasurg.2020.1219
1. Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto,
SP, Brasil.
Autor correspondente: Pedro Soler Coltro, Av. Bandeirantes 3900, Câmpus Universitário, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
CEP: 14048-900. E-mail: psc@usp.br
Artigo submetido: 21/04/2020.
Artigo aceito: 30/04/2020.
Conflitos de interesse: não há.