INTRODUÇÃO
A cobertura de defeitos causados por queimadura elétrica em membros superiores é desafiadora,
especialmente quando há exposição óssea, tendínea ou articular. Dentre as opções de
retalhos locais para a cobertura de lesões profundas nas mãos, destacam-se os pediculados
na artéria radial ou ulnar1; entretanto, ambos acarretam grande morbidade à área doadora, além do sacrifício
de uma das principais artérias responsáveis pela irrigação da mão2. Já os retalhos a distância, como o groin flap e os abdominais, são alternativas confiáveis; porém, requerem mais de uma cirurgia
e podem resultar em tempo prolongado de imobilidade, prejudicando a reabilitação3.
O retalho interósseo posterior reverso do antebraço é uma alternativa reprodutível
para a cobertura de lesões da mão, com pequena morbidade à área doadora, baixas taxas
de perda e excelentes resultados estéticos4. Originalmente descrito como um retalho fasciocutâneo, com rotação para a área do
cotovelo, mantido pela artéria interóssea posterior do antebraço, apresenta uma modificação
baseada no fluxo reverso dessa artéria, através de sua anastomose distal para a artéria
interóssea anterior, permitindo a rotação em direção à mão; no entanto, em 18% dos
casos essa anastomose inexiste, impossibilitando sua realização5.
Trata-se de um retalho comumente utilizado para a cobertura de lesões em dorso do
punho e da mão, polegar e primeira comissura, visto que não alcança habitualmente
a região palmar6. Dessa forma, apresentamos o uso do retalho interósseo posterior reverso do antebraço
para cobertura da palma da mão direita em paciente com trauma elétrico, apresentando
queimadura de terceiro grau.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 33 anos, hígido, deu entrada no Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), 40 minutos após
sofrer queimadura elétrica, causada por contato de objeto metálico em rede elétrica
de alta tensão - 10.000 volts. Após medidas inicias de atendimento ao politraumatizado,
foi transferido para leito de terapia intensiva da Unidade de Queimados, para monitorização
cardíaca e vigilância da função renal.
Apresentava 3% da superfície corporal queimada, acometendo: a palma da mão direita
(Figura 1A), ponto de entrada; e, a face posterior do ombro esquerdo, ponto de saída; ambas
de terceiro grau. Além disso, havia queimadura de segundo grau profundo na face anterior
do braço esquerdo.
Figura 1 - A: Área de queimadura em face palmar da mão direita no momento da admissão. B: Aspecto evolutivo da lesão após primeiro debridamentos, no 7o dia pós-queimadura
(DPQ). C: Evolução após debridamento realizado no 10o DPQ. D: Defeito resultante após terceiro debridamentos no 14o DPQ.
Figura 1 - A: Área de queimadura em face palmar da mão direita no momento da admissão. B: Aspecto evolutivo da lesão após primeiro debridamentos, no 7o dia pós-queimadura
(DPQ). C: Evolução após debridamento realizado no 10o DPQ. D: Defeito resultante após terceiro debridamentos no 14o DPQ.
O paciente foi submetido a três debridamentos conservadores da área de queimadura
da mão, delimitando uma lesão palmar de aproximadamente 8,5cm x 3,5cm e 1,5cm de profundidade
(Figuras 1B, 1C e 1D). Na face posterior do ombro esquerdo, o defeito possuía 2,5cm de profundidade e,
aproximadamente, 8cm de diâmetro.
Optou-se pela realização de um retalho interósseo posterior reverso do antebraço direito
do tipo peninsular, no 14º dia após o trauma (Figura 2). O retalho dissecado, de 15cm x 4 cm, permitiu cobertura adequada de toda a lesão
na face palmar, sendo necessário enxerto de pele obtido da região inguinal, para fechar
a área doadora do retalho no antebraço. A lesão do ombro foi fechada com retalho local
de avanço no mesmo ato. No 5º dia pós-operatório, o retalho interósseo estava viável,
sem congestão ou isquemia e a área enxertada teve integração de 100% (Figura 3).
Figura 2 - A: Retalho peninsular fasciocutâneo interósseo posterior reverso do antebraço dissecado
e mantido em seu leito. B: Nervo interósseo posterior do antebraço preservado, após a dissecção do retalho.
C: Defeito resultante na face posterior do antebraço após transposição do retalho. D: Retalho posicionado no defeito em face palmar da mão direita.
Figura 2 - A: Retalho peninsular fasciocutâneo interósseo posterior reverso do antebraço dissecado
e mantido em seu leito. B: Nervo interósseo posterior do antebraço preservado, após a dissecção do retalho.
C: Defeito resultante na face posterior do antebraço após transposição do retalho. D: Retalho posicionado no defeito em face palmar da mão direita.
Figura 3 - A: Aspecto do retalho no 1o dia pós-operatório (DPO), ainda congesto. B: Retalho com redução do edema e excelente aspecto no 5o DPO, sem áreas de necrose.
C: Área doadora enxertada, evoluindo com boa integração do enxerto; e, visão parcial
de perfil do retalho transposto para a região palmar.
Figura 3 - A: Aspecto do retalho no 1o dia pós-operatório (DPO), ainda congesto. B: Retalho com redução do edema e excelente aspecto no 5o DPO, sem áreas de necrose.
C: Área doadora enxertada, evoluindo com boa integração do enxerto; e, visão parcial
de perfil do retalho transposto para a região palmar.
O paciente iniciou, após a alta hospitalar, fisioterapia para melhorar a motricidade
da mão direita. Mantém evolução satisfatória nos últimos 3 anos (Figura 4), com funcionalidade da mão direita preservada e aspecto estético adequado, sem queixas.
Figura 4 - A: Face ventral do antebraço e da mão mostrando retalho com excelente aspecto após 03
anos de seguimento. B: Visão da face dorsal do antebraço, sem cicatrizes. C: Área doadora do retalho com cicatriz discreta; e, visão de perfil do retalho, evidenciando
boa cobertura
Figura 4 - A: Face ventral do antebraço e da mão mostrando retalho com excelente aspecto após 03
anos de seguimento. B: Visão da face dorsal do antebraço, sem cicatrizes. C: Área doadora do retalho com cicatriz discreta; e, visão de perfil do retalho, evidenciando
boa cobertura
DISCUSSÃO
Lesões profundas da mão tendem a causar exposição de estruturas nobres, requerendo
retalhos para cobertura adequada e melhor reabilitação. O retalho utilizado deve ser
versátil para cobertura das mais variadas lesões, de execução técnica reprodutível
e vascularização confiável7.
O retalho interósseo posterior reverso do antebraço é um retalho longo e com muitas
vantagens, tendo sido descrito pela primeira vez por Zancolli e Angrigiani, em 19868, mostrando-se útil para a cobertura de defeitos do dorso da mão e do punho. Tem proximidade
com o leito receptor da mão, amplo arco de rotação, mínima lesão aos vasos linfáticos,
preservação dos principais vasos que perfundem o antebraço e a mão (artéria radial
e ulnar), ausência de necessidade de técnica microcirúrgica, além de potencial fechamento
primário da área doadora, o que não foi observado no nosso caso3. Além disso, é pouco espesso, tem boa flexibilidade, textura de pele mais semelhante
à da mão e permite carrear tecidos variados, como ossos, músculo, tendão e fáscia.
Apesar de ser um retalho considerado na literatura como de simples execução e reprodutibilidade,
já foram descritas variações anatômicas do vaso perfurante, bem como lesões do nervo
interósseo posterior do antebraço e ruptura da anastomose distal, sendo importante
o cuidado na dissecção e o conhecimento anatômico da região9.
A principal complicação do retalho interósseo posterior reverso do antebraço é a congestão
por oclusão do retorno venoso após sua rotação, podendo evoluir para necrose7. A ocorrência de necrose parcial foi de 15% e total em 5% na casuística de Neuwirth
et al., em 20134, após avaliar 40 retalhos para cobertura de lesões em punho e dorso da mão. A dissecção
de um retalho peninsular, como no caso descrito, possibilita a inclusão de perfurantes
localizadas distalmente, reduzindo a possibilidade de ocorrência de congestão e necrose5.
No estudo de Kai et al., em 20136, que avaliou o retalho reverso do antebraço baseado na artéria interóssea posterior,
para reconstrução de primeira comissura da mão em 12 pacientes pós-queimadura, demonstrou
sua segurança em pacientes queimados, não havendo nenhum caso de congestão ou necrose
na sua casuística. O mesmo preconiza um intervalo de duas semanas para a reconstrução
após queimaduras elétricas, quando há melhor delimitação da área de necrose, que é
evolutiva nas duas primeiras semanas, necessitando de múltiplos debridamentos, como
observado em nosso caso. Em pacientes queimados graves esse intervalo pode ser estendido
até 3 a 4 semanas6.
De acordo com Gavaskar, em 201010, o alcance distal do retalho em sua série foi até a articulação proximal do polegar.
Defeitos além desse ponto podem ser de difícil cobertura, uma vez que a tração no
pedículo pode causar insuficiência vascular. No caso relatado, o retalho manteve sua
irrigação pela artéria interóssea anterior, com excelente perfusão mesmo após sua
rotação para face palmar e posicionamento anterior.
CONCLUSÃO
O retalho interósseo posterior do antebraço com arco de rotação reverso constitui
uma boa opção de tratamento de lesões profundas da palma da mão, permitindo cobertura
adequada e preservando sua funcionalidade.
COLABORAÇÕES
RCL
|
Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados, Realização das operações e/ou
experimentos, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
|
WMM
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados,
Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
|
PTJ
|
Aprovação final do manuscrito, Realização das operações e/ou experimentos, Redação
- Revisão e Edição
|
DAM
|
Aprovação final do manuscrito, Realização das operações e/ou experimentos, Redação
- Revisão e Edição
|
HAN
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Realização das
operações e/ou experimentos, Redação - Revisão e Edição
|
RG
|
Aprovação final do manuscrito, Redação - Revisão e Edição
|
REFERÊNCIAS
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conditions of the forearm territory as a reliable substitute for free tissue transfer.
Acta Chir Plast. 2012;54(2):53-8. PMID: 23565845.
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Burns. 2016 Mar;42(2):e24-30. PMID: 26652146. DOI: https://doi.org/10.1016/j.burns.2015.06.020
4. Neuwirth M, Hubmer M, Koch H. The posterior interosseous artery flap: clinical results
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May;66(5):623-628. PMID: 23375239. DOI: https://doi.org/10.1016/j.bjps.2012.12.018
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6. Kai S, Zhao J, Jin Z, et al. Release of severe post-burn contracture of the first
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7. Acharya AM, Bhat AK, Bhaskaranand K. The reverse posterior interosseous artery flap:
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8. Zancolli E, Angrigiani C. Posterior interosseous island forearm flap. J Hand Surg
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9. Zaidenberg EE, Farias-Cisneros E, Pastrana MJ, Zaidenberg CR. Extended posterior interosseous
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PMID: 28259275. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jhsa.2017.01.004
10. Gavaskar AS. Posterior interosseous artery flap for resurfacing posttraumatic soft
tissue defects of the hand. Hand. 2010 Apr;5(4):397-402. PMID: 22131922. DOI: https://doi.org/10.1007/s11552-010-9267-7
1. Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil.
Autor correspondente: Rodolfo Costa Lobato Rua Doutor Melo Alves, nº 55, CJ 23, Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil. CEP:
01417-010. E-mail: rodolfolobato49@yahoo.com.br
Artigo submetido: 22/10/2018.
Artigo aceito: 21/4/2019.
Instituição: Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Conflitos de interesse: não há.