INTRODUÇÃO
Lesões no terço distal dos membros inferiores, com exposição de ossos, articulações,
tendões e vasos sanguíneos, não são passíveis do uso de enxertos de pele. Isto
ocorre porque o leito vascular é exíguo e pela pobre granulação das feridas, podendo
apenas ser corrigidas com retalhos musculares, miocutâneos, fasciocutâneos ou
transferência microcirúrgica1-3.
Adequada proteção a estas estruturas com mínima sequela na área doadora e
vascularização constante são alguns dos fatores que se têm buscado na cobertura
ideal. Os principais fatores limitantes são as dimensões, a profundidade da lesão
e
a presença de osteomielite4. O retalho
fasciocutâneo reverso da panturrilha contraria dois princípios: primeiro, o conceito
da proporção comprimento x largura do retalho e, segundo, que o retalho deve ser
baseado em um pedículo proximal5.
A partir dos anos 80, com um bom entendimento da anatomia dos membros inferiores e
o
aperfeiçoamento dos retalhos miocutâneos, foram propostas várias técnicas para
reconstrução do terço distal destes. Em 1983, Pontén descreve os retalhos de perna
de maiores dimensões com inclusão da fáscia. No mesmo ano, Donski & Fogdestam
propuseram o retalho fasciocutâneo de pedículo distal baseado na artéria fibular.
O
retalho fasciogorduroso reverso baseado nos ramos perfurantes da artéria tibial
posterior foi descrito por Gumener e colaboradores, em 1990, para a reconstrução das
regiões maleolar e calcânea, acompanhado de fechamento primário da área doadora6.
Ainda em 1990, Carriquiry5 propôs um retalho
fasciocutâneo reverso baseado em dois suprimentos sanguíneos, perfurantes
miocutâneas e septocutâneas (provenientes das artérias fibular e tibial posterior),
isolando e preservando o nervo sural e artéria sural superficial mediana (que
acompanha o nervo). Masquelet e colaboradores, em 1992, descreveram o retalho sural
reverso fasciocutâneo baseado no pedículo neurovascular sural5.
OBJETIVO
Demonstrar a viabilidade do retalho fasciocutâneo reverso descrito por Carriquiry
para cobertura de lesões em pé e terço inferior da perna.
MÉTODOS
Oito casos foram operados. Os pacientes foram internados no Hospital de Base de São
José do Rio Preto, SP, para o Serviço de Cirurgia Plástica da FAMERP/FUNFARME no
período de 2013 a 2018. Todos apresentavam exposição de ossos e tendões em região
distal da perna, dorso do pé ou ambos, nos quais foram utilizados o retalho
fasciocutâneo reverso da panturrilha com a técnica proposta por Carriquiry, em
1990.
O trabalho seguiu os princípios de Helsinque.
Anatomia regional
A pele, tecido celular subcutâneo e a fáscia muscular da região da panturrilha
são amplamente vascularizadas. O denso plexo vascular suprafascial, cujas
principais anastomoses são orientadas longitudinalmente, e o rico sistema de
perfurantes septocutâneas, juntamente com os sistemas bem conhecidos e
amplamente utilizados, musculocutâneo e axial, contribuem para a confecção de
retalhos fasciocutâneos seguros nessa região5 .
O retalho descrito por Carriquiry baseia-se nas artérias septocutâneas medial e
lateral da região posterior da perna, que se anastomosam entre si e com a
artéria sural superficial através de arcadas suprafasciais orientadas
longitudinalmente5 (Figura 1).
Figura 1 - Representação esquemática do suprimento cutâneo arterial da
perna. Medial (msc) e lateral (lsc), anastomoses septocutâneas,
perfurantes musculocutâneas (mc) e artéria sural superficial (a).
Fonte: Carriquiry CE. Heel coverage with a deepithelialized distally
based fasciocutaneous flap. Plast Reconstr Surg.
1990;85(1):116-9.
5
Figura 1 - Representação esquemática do suprimento cutâneo arterial da
perna. Medial (msc) e lateral (lsc), anastomoses septocutâneas,
perfurantes musculocutâneas (mc) e artéria sural superficial (a).
Fonte: Carriquiry CE. Heel coverage with a deepithelialized distally
based fasciocutaneous flap. Plast Reconstr Surg.
1990;85(1):116-9.
5
Deve-se observar que a entrada realmente significativa para o plexo suprafascial
na metade inferior da perna vem do sistema septocutâneo, vasos axiais não
atingem tão distalmente, e perfurantes musculocutâneos são infrequentes a esse
nível5.
Portanto, na elevação do retalho fasciocutâneo de base distal, o suprimento
sanguíneo é fornecido pelos vasos septocutâneos distais por meio das anastomoses
longitudinais no plexo suprafascial5.
Na fossa poplítea o nervo tibial emite o nervo cutâneo sural medial, o qual se
une com o nervo cutâneo sural lateral, proveniente do nervo fibular comum, para
formar o nervo sural. Este nervo supre a pele nas faces posterior e lateral da
perna e lateral do tornozelo e pé, sendo sua preservação importante na
manutenção da sensibilidade desta região7
(Figura 2). O retalho descrito neste
estudo preserva o nervo sural em seu leito original, mantendo sua função
sensitiva.
Figura 2 - Representações esquemáticas dos vasos e nervos da fossa poplítea
(esquerda) e nervos cutâneos do membro inferior, vista posterior
(direita). Fonte: Sobotta J, Waschke J. Sobotta Atlas de Anatomia
Humana. 23ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.
8
Figura 2 - Representações esquemáticas dos vasos e nervos da fossa poplítea
(esquerda) e nervos cutâneos do membro inferior, vista posterior
(direita). Fonte: Sobotta J, Waschke J. Sobotta Atlas de Anatomia
Humana. 23ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.
8
Técnica cirúrgica
O retalho em seu limite inferior é demarcado a partir de 5cm acima dos maléolos
lateral e medial (pivô de rotação). Superiormente, é marcado num comprimento
suficiente para cobertura total da lesão, ou seja, é medida a distância do
pedículo do retalho ao ponto mais distal da lesão, contando-se com o giro
necessário para cobrir o defeito, sendo esta distância o comprimento do retalho.
Realizada incisão em demarcação prévia, e elevados pele e tecido subcutâneo
juntamente com a fáscia muscular.
Deve-se preservar em média 1cm de cada lado das bordas laterais do tendão do
calcâneo, pois é onde emergem as artérias septocutâneas medial e lateral da
região posterior da perna. O nervo sural é preservado em seu leito original,
sendo posteriormente mergulhado entre os músculos gastrocnêmicos e coberto por
eles para evitar sua exposição. A elevação do retalho se dá até o ponto inferior
marcado - o pivô, no terço inferior da perna (Figura 3).
Figura 3 - Representação esquemática da elevação do retalho fasciocutâneo de
pedículo distal. Fonte: Carriquiry CE. Heel coverage with a
deepithelialized distally based fasciocutaneous flap. Plast Reconstr
Surg. 1990;85(1):116-9.5
Figura 3 - Representação esquemática da elevação do retalho fasciocutâneo de
pedículo distal. Fonte: Carriquiry CE. Heel coverage with a
deepithelialized distally based fasciocutaneous flap. Plast Reconstr
Surg. 1990;85(1):116-9.5
Neste ponto, o retalho é transposto numa angulação suficiente para alcançar a
lesão (em torno de 150 graus). Não é necessário manutenção de borda
fasciossubcutânea além da ilha de pele, podendo o tecido subcutâneo e a fáscia
possuir o mesmo tamanho da porção cutânea do retalho. Após 3 semanas desta
primeira etapa, o retalho é liberado (tamanho suficiente para manter a lesão
coberta), e sua outra parte retorna ao leito doador. Realiza-se também, neste
momento, enxertia de pele total da região inguinal para dar cobertura à área
doadora do retalho.
RESULTADOS
Os casos operados pela técnica descrita apresentaram resultado funcional satisfatório
(Figuras 4 a 6).
Figura 4 - A: Pré-operatório; B: Pós-operatório
imediato; C: Pós-operatório imediato; D:
Pós-operatório tardio; E: Pós-operatório tardio.
Figura 4 - A: Pré-operatório; B: Pós-operatório
imediato; C: Pós-operatório imediato; D:
Pós-operatório tardio; E: Pós-operatório tardio.
Figura 5 - A: Pré-operatório; B: Pós-operatório
imediato; C: Pós-operatório imediato; D:
Pós-operatório tardio; E: Pós-operatório tardio;
F: Pós-operatório tardio; G:
Pós-operatório tardio.
Figura 5 - A: Pré-operatório; B: Pós-operatório
imediato; C: Pós-operatório imediato; D:
Pós-operatório tardio; E: Pós-operatório tardio;
F: Pós-operatório tardio; G:
Pós-operatório tardio.
Figura 6 - A: Pré-operatório; B: Pré-operatório;
C: Pós-operatório imediato; D:
Pós-operatório imediato; E: Pós-operatório imediato;
F: Pós-operatório tardio; G:
Pós-operatório tardio; H: Pós-operatório tardio.
Figura 6 - A: Pré-operatório; B: Pré-operatório;
C: Pós-operatório imediato; D:
Pós-operatório imediato; E: Pós-operatório imediato;
F: Pós-operatório tardio; G:
Pós-operatório tardio; H: Pós-operatório tardio.
Para tais resultados, foram tomados alguns cuidados que julgamos importantes no
manejo destes pacientes, como: 1) cuidados com o pedículo, atentando para que não
houvesse afilamento, torção ou compressão do mesmo - tanto no intraoperatório quanto
no pós; 2) identificação do nervo sural medial para que o mesmo permaneça em sua
topografia original e não seja seccionado ou dissecado junto com o retalho; 3)
estimulação da drenagem venosa através de massagem retrógrada do retalho; 4)
imobilização da articulação do tornozelo.
Apenas um caso apresentou complicação no pós-operatório, evoluindo com isquemia e
necrose superficial de pele da porção distal do retalho, solucionado com
debridamento e enxertia de pele posteriormente (Figura 7). Os demais casos apresentaram evolução satisfatória com cobertura
total das lesões.
Figura 7 - A: Caso que apresentou complicação; B: Caso
que apresentou complicação; C: Caso que apresentou
complicação, pós-operatório tardio.
Figura 7 - A: Caso que apresentou complicação; B: Caso
que apresentou complicação; C: Caso que apresentou
complicação, pós-operatório tardio.
DISCUSSÃO
O terço distal do membro inferior é frequentemente exposto a traumatismos e, quando
há necessidade de cobertura cutânea, é difícil a reconstrução desta região6. Os acidentes com motocicletas são os maiores
responsáveis por essas lesões9; dos oito casos
operados neste estudo, cinco foram causados por esse tipo de trauma.
A cobertura cutânea dessa área é sempre de difícil solução. Neste segmento, não há
interposição de tecidos musculares entre as estruturas nobres e o tegumento, e este
possui distensibilidade e mobilidade limitadas. Tais características tornam o uso
de
enxertos de pele e retalhos de rotação ao acaso inadequados para ferimentos que
atingem toda a espessura da pele10. É
necessário optar por retalhos distantes, sejam eles fasciocutâneos ou livres11.
O retalho fasciocutâneo reverso descrito por Carriquiry é de fácil execução,
confiável e de pós-operatório simples. Apresenta amplo arco de rotação (até 150º),
sem grande volume pedicular. Cuidados especiais devem ser tomados na dissecção
subdérmica do pedículo para minimizar a sequela estética final. Apesar de ser
semelhante ao retalho sural de fluxo reverso, sua principal diferença deste está na
preservação do nervo sural, mantendo sua função sensitiva. Difere ainda por não
necessitar de manutenção de borda fasciossubcutânea além da ilha de pele e
apresentar como parâmetro anatômico de preservação as bordas laterais do tendão do
calcâneo e não apenas a região próxima ao maléolo lateral como no retalho sural.
Representa uma boa alternativa aos retalhos microcirúrgicos, os quais são de alta
complexidade e dificuldade técnica, alto custo hospitalar, além de apresentarem
tempo cirúrgico elevado (média de 8 horas)12.
Traumas prévios em região medial ou lateral da perna que acometam o pedículo do
retalho contraindicam sua utilização, pois comprometem a vascularização do
mesmo5.
Este retalho foi utilizado em lesões localizadas na região distal da perna e dorso
do
pé com exposição óssea e tendínea, havendo, inclusive, fratura exposta ou lesão
tendinosa.
CONCLUSÃO
O retalho utilizado se presta a correção de lesões do terço inferior da perna e do
pé. É relativamente fácil de ser confeccionado, com bom suprimento vascular -
baseado em mais de um pedículo, e não há perda funcional do leito doador. A
desvantagem é a necessidade de mais de um procedimento para finalizá-lo, e uma
alteração da espessura final da lesão e da área doadora.
COLABORAÇÕES
CGS
|
Coleta de dados, concepção e desenho do estudo, gerenciamento do projeto,
metodologia, realização das operações e/ ou experimentos, redação -
preparação do original, redação - revisão e edição.
|
AMR
|
Realização das operações e/ou experimentos.
|
LAFK
|
Coleta de dados, concepção e desenho do estudo, realização das operações
e/ou experimentos.
|
CCF
|
Realização das operações e/ou experimentos.
|
VBC
|
Realização das operações e/ou experimentos.
|
ARB
|
Aprovação final do manuscrito, redação - revisão e edição,
supervisão.
|
REFERÊNCIAS
1. Kneser U, Bach AD, Polykandriotis E, Koop J, Horch RE. Delayed
reverse sural flap for staged reconstruction of the foot and lower leg. Plast
Reconstr Surg. 2005;116(7):1910-7. DOI:
https://doi.org/10.1097/01.prs.0000189204.71906.c2
2. Touam C, Rostoucher P, Bhatia A, Oberlin C. Comparative study of two
series of distally based fasciocutaneous flaps for coverage of the lower
one-fourth of the leg, the ankle, and the foot. Plast Reconstr Surg.
2001;107(2):383-92. DOI:
https://doi.org/10.1097/00006534-200102000-00013
3. Donski P, Fogdestam I. Distally based fasciocutaneous flap from the
sural region. A preliminary report. Scand J Plast Reconstr Surg.
1983;17(3):191-6. PMID: 6673085
4. Attinger A, Cooper P. Soft tissue reconstruction for calcaneal
fractures or osteomyelitis. Orthop Clin North Am. 2001;32(1):135-70. PMID:
11465125
5. Carriquiry CE. Heel coverage with a deepithelialized distally based
fasciocutaneous flap. Plast Reconstr Surg. 1990;85(1):116-9. PMID: 2293720 DOI:
https://doi.org/10.1097/00006534-199001000-00022
6. Braga-Silva J, Martins PDE, Román JA, Gehlen D. Utilização do
Retalho Adipofascial Reverso nas Perdas de Substância Cutânea do Terço Distal da
Perna e Pé. Rev Soc Bras Cir Plást. 2005;20(3):182-6.
7. Moore KL, Dalley AF. Anatomia orientada para a clínica. 5a ed. Rio
de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007.
8. Sobotta J, Waschke J. Sobotta Atlas de Anatomia Humana. 23a ed. Rio
de Janeiro: Guanabara Koogan; 2012.
9. Motoki THC, Carvalho KC, Vendramin FS. Perfil de pacientes vítimas
de trauma em membro inferior atendidos pela equipe de cirurgia reparadora do
Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência. Rev Bras Cir Plást.
2013;28(2):276-81. DOI:
https://doi.org/10.1590/S1983-51752013000200018
10. Rezende MR, Rabelo NTA, Benabou JE, Wei TH, Mattar Junior R,
Zumiotti AV, et al. Cobertura do terço distal da perna com retalhos de
perfurantes pediculados. Acta Ortop Bras. 2008;16(4):223-9. DOI:
https://doi.org/10.1590/S1413-78522008000400007
11. Quirino AC, Viegas C. Retalhos fasciocutâneos para cobertura de
lesões no pé e tornozelo. Rev Bras Ortop. 2014;49(2):183-8. DOI:
https://doi.org/10.1016/j.rbo.2014.01.017
12. Souza Filho MVP, Santos CC. Microcirurgia em reconstruções
complexas: análise dos resultados e complicações. Rev Bras Cir Plást.
2009;24(2):123-30.
1. Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto,
São José do Rio Preto, SP, Brasil.
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São
Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Camila Garcia Sommer, Avenida
Brigadeiro Faria Lima 5544, Vila São Manoel, São José do Rio Preto, SP, Brasil.
CEP 15090-000. E-mail: camisommer@hotmail.com
Artigo submetido: 12/11/2018.
Artigo aceito: 21/04/2019.
Conflitos de interesse: não há.