INTRODUÇÃO
As cicatrizes, muitas vezes, causam profundas comoções. Para os médicos, as
cicatrizes representam o ponto final na cicatrização dos tecidos. Para os pacientes,
frequentemente, as cicatrizes apresentam significados mais profundos e pessoais.
Deformidades por doenças, traumas violentos ou malformações no desenvolvimento podem
resultar em sequelas físicas e psicológicas ao longo da vida1.
O tratamento de cicatrizes requer uma compreensão da dificuldade psíquica e social
que o paciente pode vivenciar, e um bom resultado no tratamento raramente é obtido
sem o conhecimento inicial dos antecedentes ocorridos com o paciente, suas queixas
atuais e expectativas futuras.
As cicatrizes podem resultar em problemas funcionais, estéticos ou emocionais. Na
maioria das vezes, os pacientes incorrem em dificuldades através de uma relação
complexa e alternada entre todas as três dimensões. Antes de iniciar o tratamento,
o
médico deve ter um tempo para entender e diagnosticar cada elemento1.
Para determinar se uma pessoa é uma candidata adequada para o procedimento cirúrgico
desejado, os cirurgiões plásticos devem ter um olho treinado, boa intuição, saber
o
que perguntar e ter bons critérios, aprendendo com suas experiências passadas,
especialmente aquelas em que cometeu erros.
OBJETIVO
O propósito deste estudo é relatar à comunidade científica um caso operado em nosso
serviço, de correção de cicatriz deformante em abdome anterior com a técnica de
abdominoplastia em flor-de-lis, que evoluiu com grande deiscência de ferida
operatória vertical, de modo a discutir as condutas pré e pós-operatórias que possam
ter contribuído para a ocorrência dessa complicação, bem como as táticas utilizadas
no seu tratamento.
MÉTODO
Trata-se de paciente do sexo feminino, 35 anos, encaminhada ao serviço para avaliação
de possível correção cirúrgica para cicatriz inestética em abdome, resultante de
cirurgia ginecológica realizada dois anos antes (miomatose uterina/histerectomia).
Reside em cidade do interior de Minas Gerais, localizada a 180 km de distância do
nosso Serviço. Apresentava, ao exame, cicatriz xifopúbica e cicatriz transversa
suprapúbica associadas a retração e distorção da parede abdominal com aspecto de
abdome “em avental” bipartido, que causava grande desconforto e insatisfação à
paciente (Figura 1).
Figura 1 - Aspecto pré-operatório.
Figura 1 - Aspecto pré-operatório.
Histórico de tabagismo e transtorno bipolar misto em uso de múltiplas medicações,
referindo, inclusive, tentativas prévias de autoextermínio devido a grande
descontentamento com o contorno corporal. No momento, referindo bom controle da
doença.
Paciente foi orientada quanto à perda de peso para melhora do resultado estético
(apesar de a intervenção programada ter primordialmente intenção reconstrutora),
cessação de tabagismo e controle/manutenção do tratamento psiquiátrico, para
definição do momento cirúrgico.
Após 105 dias do primeiro contato, estando há 30 dias sem fumar e após ter passado
por três consultas para preparo pré-operatório, a paciente foi submetida à
dermolipectomia abdominal com técnica de marcação em flor-de-liz (Figura 2)2,
para correção da cicatriz e distorção abdominal, com preservação da cicatriz
umbilical. O procedimento foi realizado sob anestesia peridural associada a sedação
venosa, sem intercorrências.
Figura 2 - Esquema da marcação pré-operatória.
Figura 2 - Esquema da marcação pré-operatória.
A marcação foi feita no pré-operatório imediato, inicialmente com a paciente em pé.
A
abordagem inicial foi semelhante à da técnica convencional, com marcação da incisão
inferior a 6 cm acima da comissura vulvar anterior; as marcações dos limites
laterais foram feitas no ápice da dobra cutânea, com a paciente sentada, e
estimou-se a excisão em sentido horizontal unindo esses pontos com a linha média.
A
excisão vertical foi estimada por pinch test com a paciente
deitada2.
Durante o procedimento, associamos a plicatura do músculo retoabdominal, mas optamos
por não associar lipoaspiração devido aos riscos inerentes ao aumento do tempo
operatório, além de risco maior de sofrimento dos retalhos. Foi utilizado dreno de
Portovac® 4,8 mm no plano supramuscular.
RESULTADOS
A paciente evoluiu bem no pós-operatório imediato, apenas com dor difusa e mínima
secreção sero-hemática pelo dreno (30 mL/24 h). Recebeu alta no 2º DPO,
bem-disposta, sem queixas, sem o dreno, em uso de malha compressiva abdominal.
No 6º DPO, apresentava pequena área de sofrimento de pele em região infraumbilical
com necrose de borda da FO, sem secreções, e foi orientada a descontinuar o uso da
malha cirúrgica.
Após sete dias, no 13º DPO, entrou em contato telefônico com equipe referindo piora,
com perda da continuidade da ferida cirúrgica. Relatava deiscência superficial em
grande parte da incisão vertical, incluindo cicatriz umbilical (Figura 3).
Figura 3 - Aspecto no 13º DPO – em uso de rifamicina tópica (foto enviada pela
paciente).
Figura 3 - Aspecto no 13º DPO – em uso de rifamicina tópica (foto enviada pela
paciente).
Na ocasião, referiu ter passado por intercorrências pessoais, tendo, por isso,
retomado tabagismo, passando a fumar quatro maços de cigarro por dia. Apresentava
discurso melancólico, derrotista, deprimido e persecutório, chegando inclusive a
mencionar desejo de morte e ameaça de autoextermínio. Foi orientada a retornar ao
serviço para avaliação, mas a paciente se recusou.
No 19º DPO, mantendo evolução desfavorável, concordou em retornar ao hospital e
optamos por internar a paciente para observação mais criteriosa. Apresentava
deiscência quase completa da FO vertical (Figura 4) e foi submetida a debridamento da ferida no Centro Cirúrgico com
confecção de sutura elástica para aproximação das bordas (conforme esquema na Figura 5)3
e drenagem com dispositivo laminar siliconado. Recebeu alta após cinco dias de
internação, em uso de antibioticoterapia sistêmica, ferida com bom aspecto, sem
secreções, com curativo com loção de A.G.E. Nexcare®.
Figura 4 - 19º DPO (foto enviada pela paciente).
Figura 4 - 19º DPO (foto enviada pela paciente).
Figura 5 - Sequência da sutura elástica: A: Pontos iniciais no
ângulo; B: Giro de 180° da borracha e aplicação de novos
pontos de sututra; C: Sutura elástica finalizada. Sutura
elástica confeccionada utilizando o punho da luva de látex
estéril.
Figura 5 - Sequência da sutura elástica: A: Pontos iniciais no
ângulo; B: Giro de 180° da borracha e aplicação de novos
pontos de sututra; C: Sutura elástica finalizada. Sutura
elástica confeccionada utilizando o punho da luva de látex
estéril.
Sete dias depois, apresentava deiscência de parte da sutura elástica, mantendo áreas
de perda de continuidade na ferida operatória e necrose do coto da cicatriz
umbilical (Figura 6). Foi, então, submetida a
novo debridamento com reavivamento das bordas e ressutura. Optamos por
reconfeccionar a sutura elástica sobre a ferida suturada, com o objetivo de manter
a
tração contínua nas bordas e tentar prevenir nova deiscência. Em posição
correspondente à cicatriz umbilical necrosada, foi deixada área cruenta para que,
cicatrizando por segunda intenção, pudesse haver retração e formação de nova
cicatriz. Este procedimento foi realizado em caráter ambulatorial.
Figura 6 - A: Aspecto 14 dias após sutura elástica; B:
Em detalhe.
Figura 6 - A: Aspecto 14 dias após sutura elástica; B:
Em detalhe.
No prazo de uma semana, a paciente apresentava áreas de maceração na epiderme devido
ao atrito com o material da sutura elástica; mantinha área cruenta na região
umbilical e pequena deiscência suprapúbica. Foi, então, retirado o elástico e
orientada troca, duas vezes por dia, de curativos com creme à base de urucum
(Bixa orellana).
Passados mais 15 dias, a paciente já estava com ferida cicatrizada, sem área cruenta,
mas começou a apresentar retração em região suprapúbica, além de hipertrofia da
cicatriz vertical (Figura 7), com grande
insatisfação com aspecto estético da cicatriz.
Figura 7 - Aspecto da FO no último contato com a paciente – 90º DPO da
dermolipectomia para correção de cicatriz abdominal.
Figura 7 - Aspecto da FO no último contato com a paciente – 90º DPO da
dermolipectomia para correção de cicatriz abdominal.
DISCUSSÃO
Controvérsias existem na literatura sobre os fatores preditivos de complicação. O
peso em excesso, o tabagismo, o diabetes mellitus e/ou a HAS
(hipertensão arterial sistêmica), a deficiência nutricional, a classificação de ASA
(American Society of Anestesiology), o total de tecido removido, o tempo
intraoperatório, a associação de múltiplos procedimentos e o IMC (índice de massa
corporal) são fatores variáveis de risco nas dermolipectomias abdominais4.
O tabagismo é conhecido por impactar negativamente a cicatrização pós-operatória e
aumentar o risco de infecção. Estudo recente com 40.467 pacientes demonstrou que ele
aumenta a chance de uma infinidade de complicações pós-operatórias em Cirurgia
Plástica5, e o tempo adequado de suspensão
do tabagismo no período pré-operatório, para maior segurança, tem sido revisto.
Geralmente, é conhecido que pacientes com grandes doenças psiquiátricas ou com
expectativas vagas e não realistas sobre os procedimentos de cirurgia plástica
apresentam maior probabilidade de insatisfação com seus resultados cirúrgicos.
Entretanto, não existem critérios definíveis para a distinção dos pacientes que
ficarão satisfeitos com seus resultados cirúrgicos e aqueles que ficarão
insatisfeitos1.
Estudos em psiconeuroimunologia destacaram os efeitos negativos da depressão no curso
da cicatrização e recuperação pós-operatória, e em seu impacto na morbidade e
mortalidade. A atividade das células natural killer, a atividade de
células helper (CD4) e supressoras (CDS), o número de linfócitos T
e a resposta mitogênica dos linfócitos são afetados negativamente pela depressão.
Como consequência, o cirurgião plástico deve tentar evitar a realização de um
procedimento eletivo em indivíduos com depressão1.
A opção pela utilização da sutura elástica é baseada na experiência do serviço e
levou em consideração que este artifício simples, proposto por Raskin, em 1993, para
fasciotomias, tem evitado suturas sob tensão ou a necessidade de enxertos de pele
para cobertura cutânea de ferimentos deixados abertos3.
O creme de urucum utilizado na última etapa do tratamento, Creme Profitus Millitus
Derm®, contém extrato natural de Bixa
orellana (urucum) e atua no reequilíbrio das células estimulando a
formação de colágeno e o aumento da circulação sanguínea, o que contribui para a
reparação dos tecidos. A solução de bixina inibe a inflamação aguda, promove
resposta muscular com menor número médio de neutrófilos e acelera a reepitelização,
a contração da ferida e maturação do colágeno, ilustrando assim que esta solução
representa, de fato, um adjuvante importante no tratamento de úlceras6. Desenvolvido na Universidade Federal de
Viçosa (MG), possui registro na Anvisa como cosmético e já está sendo
comercializado. Ainda carece de estudos com maior grau de evidência científica para
seu uso como medicamento, mas os resultados preliminares obtidos em nosso serviço
têm sido promissores.
Na última consulta, após cicatrização completa das áreas cruentas da ferida, foi
prescrito para a paciente o uso de placa de silicone sobre as lesões hipertróficas,
além de extensa orientação sobre complicações, possibilidades de resultados, opções
de tratamento e a importância do seguimento por período mínimo de um ano para
controle mais rigoroso da cicatrização. O desfio atual tem sido a adesão da paciente
ao tratamento.
CONCLUSÃO
Cicatrizes que causam desfiguração podem levar a pesados fardos pessoais e sociais.
O
cirurgião deve ser simpático e imparcial, pois essas cicatrizes podem ser lembranças
de traumas do passado. O tratamento em conjunto com um profissional de saúde mental
pode ajudar a distinguir e identificar complicações por problemas psicológicos. Para
o cirurgião, um cuidado especial deve ser tomado nessas circunstâncias, para
confirmar as expectativas realistas e reforçar as metas do tratamento1.
Avaliação cuidadosa durante a avaliação inicial deve ser conduzida para assegurar
a
viabilidade do paciente como um candidato à cirurgia.
A melhora do humor foi observada no pós-operatório de uma variedade de pacientes
submetidos a procedimentos estéticos. Mesmo os pacientes considerados de alto risco,
aqueles considerados como os mais prováveis de apresentar um resultado psicológico
ruim, podem demonstrar benefícios após cirurgias estéticas. Com isso, a cirurgia
plástica pode ser psicologicamente benéfica mesmo para pacientes com distúrbios
psiquiátricos, considerando que eles sejam acompanhados adequadamente por seus
médicos e psiquiatras1. Entretanto, é
necessário um cuidado especial na orientação quanto às possíveis complicações e
deve-se certificar se o paciente estará preparado para lidar com elas.
Os efeitos do tabagismo nos resultados da cirurgia plástica devem ser usados para
orientar os pacientes no abandono do tabagismo no pré-operatório e avaliar
protocolos para o manejo de pacientes que fumam5. No caso apresentado, somou-se o risco aumentado de complicação do
tabagismo com o transtorno psiquiátrico de base, levando a um quadro de difícil
condução devido à baixa adesão da paciente ao tratamento.
Apesar de todos os contratempos ocorridos no tratamento desta paciente, e desafios
que ainda teremos na condução do caso, pudemos comprovar mais uma vez a eficácia da
sutura elástica como um recurso simples, acessível e poderoso na abordagem de
feridas com tensão. Além disso, o uso do creme de urucum tem sinalizado, para a
nossa equipe, como uma arma poderosa no tratamento de feridas complexas.
REFERÊNCIAS
1. Neligan PC. Cirurgia plástica: princípios. Vol. 1. Neligan PC,
Gurtner GC (eds.). Tradução: Taís Facina, Douglas Futuro, et al. 3 ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2015.
2. Marshall MRT, Peter RJ. Clinics the fleur-de-lis abdominoplasty.
Plast Surg. 2014 Oct; 41:673-80. doi: 10.1016/j.cps.2014.07.007. pii:
S0094-1298(14)00098-4.
3. Leite NM, Reis FB, Christian RW. Tratamento de ferimentos deixados
abertos com o método de sutura elástica. Rev Bras Ortop. 1996;
31(8).
4. Grando MC. Dermolipectomia em âncora após cirurgia bariátrica:
complicações e índice de satisfação dos pacientes. Rev Bras Cir Plást. 2015;
30(4):515-21.
5. Goltsman D, Munabi NCO, Ascherman JA. The Association between
smoking and plastic surgery outcomes in 40,465 patients: an analysis of the
american college of surgeons national surgical quality improvement program data
sets. Plast Reconstr Surg. 2017 Feb; 139:503-11. doi:
10.1097/PRS.0000000000002958. pii: Base: PUBMED Língua: eng PMID/ID:
28121897.
6. Piva RM, Johann ACBR, Costa CK, Miguel OG, Rosa ER, Azevedo-Alanis
LR, Trevilatto PC, Ignacio SA, Bettega PVC, Gregio AMT. Bixin action in the
healing process of rats mouth wounds. Curr Pharm Biotech. 2013; 14:785. doi:
10.2174/1389201014666131227111026.
1. Hospital Universitário Ciências Medicas, Belo
Horizonte, MG, Brasil.
Endereço Autor: Juliana Metzker Oliveira
Bergamo Rua dos Aimorés, 2896 - Santo Agostinho - Belo Horizonte, MG,
Brasil CEP 30140-073 E-mail: jumobergamo@gmail.com