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Reviw Article - Year2017 - Volume32 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2017RBCP0096

RESUMO

A história da cirurgia plástica é muito rica, com a descrição de diversos tipos de retalhos e outras técnicas cirúrgicas ao longo dos séculos. Muitos autores, no século XIX e início do século XX, propuseram a confecção de retalhos cirúrgicos para reconstrução da região periorbital, que possibilitaram a reparação de deformidades palpebrais naquele momento e ainda hoje têm uma grande aplicabilidade clínica. Em meio a uma miríade de técnicas e epônimos, que muitas vezes descrevem técnicas idênticas ou muito semelhantes, o cirurgião plástico sente-se confuso ao ler a descrição de uma técnica que durante a sua formação aprendeu com outro nome. Por vezes, mesmo em concursos ou avaliações, essas técnicas podem se apresentar com nomenclatura pouco usual, fazendo alusão ao difusor ao invés do criador da técnica, levando a equívocos e erros. Este artigo de revisão tem o objetivo de corrigir alguns erros históricos, e servir de apoio aos novos cirurgiões que desejam trabalhar nesta área.

Palavras-chave: Pálpebras; Retalhos cirúrgicos; História da medicina; Cirurgia plástica; Neoplasias palpebrais; Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos.

ABSTRACT

The history of plastic surgery is very rich, with the description of various types of flaps and other surgical techniques over the centuries. Many authors in the nineteenth and early twentieth centuries proposed the development of surgical flaps for the reconstruction of the periorbital region, which allowed the repair of eyelid deformities at the time and still remain of great clinical applicability to date. Owing to the presence of myriads of techniques and eponyms, often describing identical or very similar techniques, a plastic surgeon often feels confused while reading the description of a technique that was learned under another name during training. Sometimes, even in academic applications and evaluations, these techniques may be presented with unusual nomenclatures, alluding to the diffuser rather than to the creator of the technique, leading to misunderstandings and errors. This review aims to correct some historical errors, assisting new surgeons who wish to work in this area.

Keywords: Eyelids; Surgical flaps; History of medicine; Plastic surgery; Eyelid Neoplasias; Reconstructive surgical procedures.


INTRODUÇÃO

A reconstrução dos defeitos da pálpebra inferior, sejam eles de origem congênita, neoplásica ou traumática, pode ser realizada por meio de uma variedade de técnicas já padronizadas, que possibilitam resultados seguros e confiáveis. Muitos autores descreveram as características únicas da anatomia palpebral, bem como suas abordagens para a reconstrução periorbital. Alguns criaram suas próprias técnicas e abordagens dos defeitos, enquanto outros apenas acrescentaram pequenos detalhes e modificações nas técnicas tradicionais já descritas para a reconstrução da complexa anatomia das pálpebras1.

Em meio a essa miríade de técnicas e epônimos, que muitas vezes descrevem técnicas idênticas ou muito semelhantes, o cirurgião plástico sente-se confuso ao ler a descrição de uma técnica que durante a sua formação aprendeu com outro nome. Por vezes, mesmo em concursos ou avaliações, essas técnicas podem se apresentar com nomenclatura pouco usual, fazendo alusão ao difusor ao invés do criador da técnica, levando a equívocos e erros.


OBJETIVO

O objetivo dessa revisão bibliográfica foi esclarecer a história da reconstrução da pálpebra inferior, e corrigir erros de nomenclatura da técnica que utiliza retalhos da pálpebra superior ou da região frontal para a reconstrução da pálpebra inferior.


REVISÃO DE LITERATURA

A história da cirurgia plástica se confunde com a história da própria Medicina. Referências ao uso de suturas para o fechamento de feridas na face, uso de talas para correção de diferentes fraturas nasais, e tópicos para o rejuvenescimento facial podem ser encontradas em antigas escritas egípcias ("papiro de Smith"), datados de aproximadamente 2000 anos A.C.2.

Carl Ferdinand von Graefe, muitas vezes designado como o fundador da cirurgia plástica moderna, recebeu o crédito de ter realizado a primeira blefaroplastia reconstrutora verdadeira, em 1809. Ele realizou a reconstrução de uma pálpebra inferior em uma jovem acometida de gangrena secundária à erisipela, e utilizou um retalho de avanço pediculado na pele da região da bochecha adjacente3. Desde então, diferentes técnicas para a reconstrução parcial ou total das pálpebras inferiores foram criadas.

A maioria das reconstruções da lamela anterior da pálpebra inferior podem ser realizadas por meio do fechamento direto de pequenos defeitos, enxertos, ou da rotação de retalhos baseados lateralmente e retalhos miocutâneos verticais para defeitos maiores4.

A confecção dos retalhos de transposição para o fechamento dos defeitos de pálpebra inferior teve seu início há quase dois séculos. Johan Karl Fricke, em 1829, descreveu extensamente o tratamento das deformidades palpebrais utilizando retalhos das regiões periorbitais. Ele descreveu em suas publicações a utilização de um retalho monopediculado baseado na região temporal5,6 (Figura 1) e que até os dias atuais é popularmente conhecido como retalho de Fricke.


Figura 1. Retalho de Fricke, publicado em 1829.
Confecção e aspecto final do retalho original de Fricke5.



Este tipo de retalho pode ser utilizado na reconstrução de grandes defeitos na pálpebra superior ou inferior. Um retalho cutâneo de base lateral utiliza a pele acima do supercílio e é transposto para cobrir o defeito de lamela anterior. Este retalho é elevado subcutaneamente para evitar aprofundar muito na região, o que poderia causar uma lesão do ramo temporal do nervo facial.

Dessa maneira, ele é utilizado apenas para a reconstrução de defeitos da lamela anterior e a reconstrução da lamela posterior deve ser realizada com enxertos se o defeito for de espessura total. A área doadora é usualmente fechada por meio de fechamento primário. Uma desvantagem desse tipo de retalho é a elevação do supercílio, uma vez que este acaba sendo mobilizado superiormente para possibilitar o fechamento primário.

A transposição da pele da pálpebra superior para inferior é frequentemente erroneamente chamada de retalho de Fricke. O desenho desse retalho foi descrito pela primeira vez por William Horner, em 1837, em uma universidade na Pensilvânia (EUA), para tratar um ectrópio na pálpebra inferior causado por queimadura7. De acordo com alguns autores8, este autor foi o primeiro a descrever acuradamente uma verdadeira Z-plastia (Figura 2).


Figura 2. Retalho descrito por Horner em 1837.
Retalho intercambiando pele da pálpebra superior para inferior (ou Z-plastia)7.



Somente anos depois, em 1854, Denonvilliers descreveu um procedimento similar. No entanto, muitos cirurgiões consideram ele o criador da técnica de Z-plastia. Denonvilliers utilizou esse retalho para reparar uma deformidade palpebral inferior, utilizando a pele da pálpebra superior para corrigir um ectrópio cicatricial9. No entanto, na ocasião ele jamais fez referência ao termo Z-plastia, que somente se tornou popular nos anos seguintes.

Uma vez que nenhuma ilustração foi demonstrada nas publicações originais de Denonvilliers, os primeiros desenhos que temos mencionando essa cirurgia para correção do ectrópio cicatricial vieram nos anos seguintes. Cazelles, em 1860, um dos pupilos de Denonvilliers, publicou sua tese de doutorado10 contendo muitos desenhos (Figura 3). Essa tese foi amplamente baseada no que o autor aprendeu com Denonvilliers acerca do tratamento do ectrópio palpebral e, sem dúvida, contribuiu para a propagação da fama de seu mentor.


Figura 3. Correção de ectrópio cicatricial descrita por Cazzeles em 1860.
Ilustração extraída da tese de Cazelles, discípulo de Denonvilliers, que demonstrou a correção do ectrópio cicatricial através de retalho da pálpebra superior para pálpebra inferior, conforme preconizado por seu mentor10.



Beard11 e Davis12, mais de meio século depois das descrições originais de Denonvilliers para o tratamento do ectrópio cicatricial, ajudaram a popularizar o nome do autor nos Estados Unidos (Figura 4)13.


Figura 4. Suposta Z-plastia original de Denonvilliers, publicada por Beard e Davis nos EUA, no início do século XX11,12.



Não há dúvidas que estas incisões em Z e confecção de retalhos para o alívio de contraturas teve Denonvilliers como um dos principais precursores da técnica. Devido às limitações da difusão da informação na época, foi frequentemente "redescoberta" por outros autores e publicada como um "novo procedimento"14.

Landolt, em 1885, foi o primeiro a descrever a utilização de um retalho bipediculado de pálpebra superior. Este cirurgião oculoplástico descreveu a possibilidade de se separar as lamelas anteriores e posteriores, permitindo a construção de dois retalhos bem vascularizados que poderiam ser facilmente deslizados um sobre o outro, permitindo o rearranjo entre as lamelas, possibilitando a correção de defeitos em uma das lamelas sem a necessidade de retalhos mais distantes15.

Este autor reconhecia a importância de se incluir o músculo no retalho cutâneo, objetivando uma boa vascularização, porém sem considerar a possibilidade do músculo permanecer inervado e funcional. O procedimento foi preconizado em 2 etapas, sendo que os pedículos da pálpebra superior deveriam ser seccionados em um segundo tempo.

Outro pioneiro na reconstrução da pálpebra inferior utilizando retalhos de pálpebra superior foi o francês Léon Tripier16. Acredita-se que este ele realizou o primeiro caso de reconstrução de pálpebra utilizando um retalho miocutâneo funcional17. Tripier, em 1888, descreveu a utilização de um retalho bipediculado da pálpebra superior com a conformação de uma ponte, baseado no músculo orbicular ocular para reparar grandes defeitos na pálpebra inferior.

Uma das intenções de Tripier era conseguir um retalho musculocutâneo que lesionasse o menor número de fibras nervosas possíveis e também mantivesse a continuidade das fibras do músculo orbicular visando restabelecer o correto funcionamento da pálpebra inferior. Essa tentativa havia fracassado nas mãos dos seus predecessores18. Tripier descreveu o sucesso no tratamento de três casos de reconstrução extensa de pálpebra inferior utilizando o retalho bipediculado de pálpebra superior (Figura 5). Nesta mesma publicação, ele descreveu a confecção de um retalho análogo bipediculado da região frontal logo acima do supercílio, para tratar defeitos com dimensões de metade até dois terços da pálpebra superior.


Figura 5. Descrição original do retalho miocutâneo bipediculado de Tripier.
Léon Tripier descreveu, em 1889, no jornal Gazette des Hôpitaux de Paris, um retalho miocutâneo bipediculado funcional, baseado no músculo orbicular ocular - não há desenho no artigo original16.



Na Figura 6, vemos representação esquemática do primeiro retalho bipediculado descrito por Tripier.


Figura 6. Retalho de Tripier.
Esquema do retalho miocutâneo bipediculado de Tripier. Adaptado de: Grabb & Smith's Plastic Surgery. 6ª Ed. 2007 by Lippincott Willians & Wilkins. Philadelphia, PA, EUA. p. 404.



Sir Harold Gillies, um otorrinolaringologista neozelandês baseado em Londres, considerado um dos maiores cirurgiões do último século, durante a época da primeira guerra utilizou dois moldes de cabeça e pescoço para ensinar a reconstrução utilizando retalhos aos cirurgiões das Forças Armadas (Figura 7). Nestes moldes claramente podem ser visualizados um exemplo do retalho bipediculado de Tripier modificado, sendo utilizado para transferir pele da região supraciliar para cobrir a região palpebral inferior18.


Figura 7. Moldes desenvolvidos por Gillies.
Notar na região periorbital esquerda, a confecção do retalho de Tripier modificado18.



Um aluno de Landolt, Dupuis-Dutemps, em 1901, descreveu uma modificação no retalho original de seu professor, utilizando apenas um pedículo da pálpebra superior para manter a vascularização do retalho19.

Outros autores subsequentemente modificaram estas primeiras descrições citadas. O mesmo retalho foi descrito por eles, porém com pequenas modificações.

A maioria das cirurgias aplicadas na reconstrução palpebral têm seus fundamentos em técnicas descritas já há quase dois séculos. Um grande número destas técnicas antigas continua tendo uma grande aplicabilidade nos dias atuais.

Não é raro encontrarmos na literatura cirúrgica o título de uma publicação sobre uma "nova técnica" descoberta. Entretanto, esta nova técnica descrita, às vezes representa somente uma pequena modificação de uma antiga operação que o autor nem sequer menciona, seja por desconhecimento ou por vaidade.

Finalizamos essa revisão fazendo uma alusão ao provérbio latim, "nihil sub sole novum", ou seja, não existe nada verdadeiramente novo na existência. Toda ideia nova tem algum tipo de precedente ou eco do passado.


COLABORAÇÕES

AAA
Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.

RSF Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.


REFERÊNCIAS

1. Rafii AA, Enepekides DJ. Upper and lower eyelid reconstruction: the year in review. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg. 2006;14(4):227-33. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/01.moo.0000233592.76552.d2

2. The Edwin Smith Surgical Papyrus. Bethesda: National Library of Medicine (US), History of Medicine Division; 2015. [acesso 2017 Out 27]. Disponível em: https://ceb.nlm.nih.gov/proj/ttp/flash/smith/smith.html

3. Rogers BO. History of oculoplastic surgery: the contributions of plastic surgery. Aesthetic Plast Surg. 1988;12(3):129-52. DOI: http://dx.doi.org/10.1007/BF01570922

4. McCord CD, Codner MA. Lower eyelid reconstruction. In: McCord C, Codner M, eds. Eyelid and Periorbital Surgery. 1st ed. St. Louis: Quality Medical Publishing; 2008. p. 543-76.

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8. Borges AF, Gibson T. The original Z-plasty. Br J Plast Surg. 1973;26(3):237-46. PMID: 4580014 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/0007-1226(73)90008-8

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10. Cazelles EH. Du traitement de l'ectropion cicatriciel [Thése pour le Doctorat en Médecine]. Faculte de Medecine de Paris. Rognoux, Imprimeur de la Faculté de Médecine. Paris; 1860.

11. Beard CH. Varieties of Blepharoplastly. In: Wood CA, ed. System of Ophthalmic Operations. Vol. 2, Chap. XIII. Chicago: Cleveland Press; 1911. p. 1435.

12. Davis JS. Plastic Surgery: Its Principles and Practice. Philadelphia: Blakiston's Son & Co.; 1919. p. 372-89.

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15. Landolt. Nouveau procéde de blepharoplastie. Archives d'Ophtalmologie 1881;1:9-13.

16. Tripier L. Lambeau musculo-cutané en forme de pont. Appliqué à la restauration des paupières. Gazette Hôpitaux Paris. 1889;62:1124-5.

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18. Elliot D, Britto JA. Tripier's innervated myocutaneous flap 1889. Br J Plast Surg. 2004;57(6):543-9. PMID: 15308402 DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.bjps.2004.02.021

19. Dupuy-Dutemps L. Autoplasties palpebro-palpebrale dans le traitement de l'ectropion cicatriciel de la paupiére inferieure. Arch Ophthalmol. 1901;21:518-25.










1. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São Paulo, SP, Brasil
2. Instituto Ivo Pitanguy, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3. 38ª Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
4. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
5. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
6. Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
7. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Instituições: Instituto Ivo Pitanguy, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.

Autor correspondente:
Alexei Almeida Andrade
Rua Sorocaba, 305, Apto 1808 - Botafogo
Rio de Janeiro, RJ, Brasil - CEP 22271-110
E-mail: alexeiandrade@yahoo.com.br

Artigo submetido: 31/5/2017.
Artigo aceito: 23/9/2017.

Conflitos de interesse: não há.

 

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