ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175
Reconstrução de Pé com Retalho Livre de Grande Dorsal Pós-Amputação do Membro Inferior Contralateral
Foot reconstruction using a free latissimus dorsi muscle flap post-amputation of the contra-lateral extremity
Case Reports -
Year2005 -
Volume20 -
Issue
2
Débora Alves CamargoI, Geraldo Antônio E. ScozzafaveII, Jorge Luiz AbelIII, Wilson Rubens SndreoniIV
RESUMO
Os autores relatam um caso de reconstrução do pé com retalho muscular livre do grande dorsal seguida de enxertia dermoepidérmica, após trauma extenso e amputação do membro contralateral. Destacam-se as indicações, técnica operatória e evolução clínica da paciente.
Palavras-chave:
Pé, cirurgia. Traumatismos do pé, cirurgia. Retalhos cirúrgicos. Músculos, transplante
ABSTRACT
The authors report on a case of foot reconstruction using a free latissimus dorsi muscle flap followed by split-thickness skin grafting, after an injury and contralateral extremity amputation. They describe the indications, surgical procedure and the patient's evolution.
Keywords:
Foot, surgery. Foot injuries, surgery. Surgical flaps. Muscles, transplantation
INTRODUÇÃO
As reconstruções do segmento distal dos membros inferiores sempre constituíram um grande desafio para a cirurgia plástica reparadora.
As restrições de opções de retalhos na região e os casos de freqüentes insucessos levavam a amputações dos segmentos do pé remanescentes, por falta de alternativa para reconstruí- lo.
A partir de 1973, com a publicação do primeiro caso de realização de um retalho livre por Daniel e Taylor1, os horizontes das reconstruções de membros inferiores mais distais ampliaram-se muito.
O retalho grande dorsal, muscular ou miocutâneo, tornou-se uma das principais indicações nas reconstruções com retalhos livres por apresentar grande volume e pela pequena seqüela deixada na área doadora, principalmente quando constituído apenas por músculo. Além disso, há substituição de suas funções de abdução, extensão e rotação interna do úmero pelos músculos peitorais maior e menor, subescapular e redondo maior.
As primeiras descrições anatômicas do retalho do grande dorsal foram de De Coninck et al.2, Taylor e Daniel3 e as primeiras aplicações clínicas são atribuídas a Fujino e Saito4, Boeckx e De Coninck5, além de Baudet et al.6.
A reconstrução do apoio do pé e a manutenção do equilíbrio do corpo constituem procedimentos complexos, tornando-se particularmente difícil nos casos em que não existe o membro inferior contralateral, com resultados que envolvem, com freqüência, o componente emocional.
O objetivo deste trabalho é relatar um caso de reconstrução do pé em paciente com amputação em terço proximal da coxa contralateral.
RELATO DO CASO
S.R.S., 15 anos de idade, sexo feminino, raça branca, estudante, natural de São Paulo, com história de esmagamento dos membros inferiores direito e esquerdo (mais intenso), após ter sido arrastada por um trem.
Deu entrada no Hospital da Penha onde foi realizado o primeiro atendimento, com sutura simples do membro inferior direito. A perna esquerda, sem condições de recuperação, foi amputada ao nível do joelho.
Ficou internada na Unidade de Terapia Intensiva por dois dias, recebendo alta para a enfermaria. Evoluiu com febre alta, edema no coto da amputação da perna esquerda e pé direito, seguido de drenagem de secreção purulenta e necrose local bilateral. Foram realizados curativos diários com soro fisiológico e povidine® tópico, associados a antibioticoterapia sistêmica, sem sucesso.
A paciente passou a apresentar piora do quadro clínico e alterações atribuídas à infecção como torpor e confusão mental.
Nessas condições, com franca evolução do pé direito para necrose (Figura 1), foi transferida para o nosso serviço (Hospital e Maternidade São Cristóvão), sendo submetida a nova amputação de membro inferior esquerdo até terço medial da coxa e encaminhada para a Unidade de Terapia Intensiva. Após três dias de internação, foi realizado desbridamento cirúrgico no pé direito, acompanhado de amputação de todos os dedos do pé e retirada de todo o revestimento de pele das faces dorsal e lateral do mesmo (Figura 2).
Figura 1 - Pé direito com extensa área de necrose, incluindo os dedos do pé.
Figura 2 - Vista frontal do desbridamento do pé direito, inclusive os dedos do pé.
Após dez dias na enfermaria, a paciente foi submetida a novo procedimento cirúrgico, sendo realizado um retalho muscular livre do grande dorsal para reconstrução da forma do pé (com exceção dos dedos). No sétimo pós-operatório, foi realizado enxerto dermo-epidérmico para cobertura do músculo (Figura 3).
Figura 3 - Vista frontal do retalho muscular livre do músculo grande dorsal coberto por enxerto dermo-epidérmico.
No trigésimo dia de pós-operatório, a paciente realizou nova amputação do membro inferior esquerdo até o terço proximal da coxa, e cobertura da área do coto com enxerto dermo-epidérmico, preparando-o para a colocação da prótese.
Continuou o tratamento com sessões diárias de fisioterapia e curativo local, tendo evolução satisfatória e boa aceitação da prótese (Figura 4).
Figura 4 - Pós-operatório de 5 anos mostrando o pé direito reconstruído e a área amputada da coxa esquerda.
DISCUSSÃO
Com o advento da microcirurgia, um músculo com pedículo vascular dominante extenso pode ser elevado até um local distante da sua área doadora e ser transplantado em outra área, por meio de anastomoses microvasculares entre o pedículo vascular do retalho e os vasos da área receptora (retalho livre)7.
O retalho livre para reparação de perda de substância no pé é indicado quando a extensão da lesão ou sua localização impede o uso de um retalho de vizinhança muscular, fasciocutâneo ou miocutâneo8.
Neste caso, além da restrição de indicação local, a paciente apresentava uma área extensa a ser recoberta pelo retalho (grande parte do pé, incluindo região plantar).
Áreas mais extensas podem ser tratadas pela transferência de tecidos à distância. O procedimento mais utilizado para resolver essa situação é o retalho cruzado de perna5 que, além de apresentar o inconveniente da imobilização, era impossível de ser realizado nesta paciente, pois a mesma já tinha sua perna contralateral amputada.
Embora o músculo reto abdominal tenha um bom suprimento sangüíneo, ele é muito estreito para ser usado na reconstrução de lesões extensas no pé9.
Optou-se, então, pela realização do retalho muscular do grande dorsal recoberto por enxerto dermo-epidérmico, por ser um retalho grande, extenso e espesso, que tem um pedículo vascular constante baseado na artéria toracodorsal. Além disso, este procedimento é indicado para cobertura de áreas extensas da planta do pé que são submetidas a grande pressão ou com infecção crônica, já que a massa muscular é útil no combate às infecções9,10.
As vantagens desse retalho são múltiplas, por ser um procedimento relativamente simples, rápido e com a possibilidade de se trabalhar com duas equipes simultaneamente, uma vez que a área doadora encontra-se distante do leito receptor11.
A fáscia muscular deve ser dissecada junto com o retalho, pois esta camada pode ser usada para manter o músculo firmemente aderido. Um contorno cuidadoso é importante para evitar os acidentes constantes dos pacientes, nos quais este não foi adequadamente realizado12, uma outra grande preocupação no caso que estamos relatando, pois a paciente não apresentava a perna contralateral para servir como apoio.
Realizou-se anastomose arterial término-lateral com a artéria tibial posterior, juntamente com as veias concomitantes. Embora haja uma discussão muito grande quanto a isso, acreditamos que, em grandes troncos vasculares da extremidade inferior, as anastomoses términolaterais são mais adequadas do que as término-terminais quanto à qualidade de fluxo8.
Não foi realizada reinervação do transplante. Embora se acredite que a sensação cutânea seja necessária para prevenir acidentes e ulcerações nos pés, estudos prévios não confirmam isso12. O fator mais importante na estabilidade da cobertura cutânea é representado pelos cuidados de higiene e proteção dispensados pela paciente. A reinervação profunda, do tipo propriocepção, seria suficiente para manutenção do resultado10. Essa paciente não apresentou ulceração secundária da superfície de apoio dos pés.
Para fechamento da área doadora realizamos sutura simples, com um bom resultado estético se comparado ao fechamento por enxertia de pele dermo-epidérmica.
CONCLUSÃO
A transferência do retalho muscular livre do grande dorsal recoberto por enxerto dermo-epidérmico para cobertura de extensas áreas do pé, inclusive região plantar, é um método seguro, confiável e com resultados satisfatórios do ponto de vista funcional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Daniel RK, Taylor GI. Distant transfer of an island flap by microvascular anastomoses: a clinical technique. Plast Reconstr Surg. 1973;52(2):111-7.
2. De Coninck A, Boeckx W, Vanderlinden E, Claessen G. Autotransplants avec microsutures vascularies: anatomie des zonas donneuses. Ann Chir Plast. 1975;20(2):163-70.
3. Taylor GI, Daniel RK. The anatomy of several free flap donor sites. Plast Reconstr Surg. 1975;56(3):243-53.
4. Fujino T, Saito S. Repair of pharyngoesofageal fistula by microvascular transfer of a free skin flap. Plast Reconstr Surg. 1975;56(5):549-53.
5. Boeckx WD, De Coninck A, Vanderlinden E. Ten free flap transfers: use of intra-arterial dye injections to outline a flap exactly. Plast Reconstr Surg. 1976;57(6):716-21.
6. Baudet J, Guimberteau JC, Nascimento E. Successful clinical transfer of two free thoraco-dorsal axillary flaps. Plast Reconstr Surg. 1976;58(6):680-8.
7. Aston SJ, Beasley RW, Thorne CHM. Muscle flaps and their blood supply. In: Grabb and Smith's Plastic Surgery. 5th ed. Philadelphia:Lippincott-Raven;1997. p.68.
8. Ferreira MC, Monteiro Jr. AA, Morais-Besteiro J. Free flaps for reconstruction of the lower extremity. Ann Plast Surg. 1981;6(6):475-81.
9. Ferreira MC, Morais-Besteiro J, Monteiro Jr. AA, Zumiotti AK. Reparação do revestimento cutâneo de pé com retalhos microcirúrgicos. Rev Bras Ortop. 1986;21(2):47-50.
10. Ferreira MC, Morais-Besteiro J, Monteiro Jr. AA, Zumiotti A. Reconstruction of the foot with microvascular free flaps. Microsurgery. 1994;15(1):33-6.
11. Ikeda K, Tsuchiya H, Shimozaki E, Tomita K. Use of latissimus dorsi flap for reconstruction with prostheses after tumor resection. Microsurgery. 1994;15(1):73-6.
12. May Jr. JW, Halls MJ, Simon SR. Free microvascular muscle flaps with skin graft reconstruction of extensive defects of the foot: a clinical and gait analysis study. Plast Reconstr Surg. 1985;75(5):627-41.
I. Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica; Ex-Residente do Serviço de Cirurgia Plástica Zona Leste - Hospital Heliópolis.
II. Mestre em Técnica Operatória e Cirurgia Experimental - UNIFESP/EPM; Chefe da Clínica de Cirurgia Plástica do Hospital Heliópolis; Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
III. Preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica Zona Leste - Hospital Heliópolis; Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
IV. Regente do Serviço de Cirurgia Plástica Zona Leste - Hospital Heliópolis; Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
Correspondência para:
Débora Alves Camargo
Rua Cananéia, 331 - Vila Prudente
São Paulo, SP - Brasil - CEP: 03132-040
Tel: 0xx11 272-8864 - Fax: 0xx11 272-3340
E-mail: dra.deby@terra.com.br
Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital e Maternidade São Cristóvão - São Paulo.
Artigo recebido: 20/01/2005
Artigo aprovado: 11/03/2005
All scientific articles published at www.rbcp.org.br are licensed under a Creative Commons license